Edição 27

Em discussão

A COGNIÇÃO, O SUJEITO E O LUGAR DO PROFESSOR

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Ana Cristina Emerenciano Alcoforado Fonseca

O tema da Educação está sempre pautado como área de interesse da Psicanálise. Kupfer (1997) descreve perfeitamente essa relação, contando que, na edição espanhola das Obras Completas de Freud, entre as 3.667 páginas que a compõem, apenas 200 delas possuem, em sua temática, reflexões, análises e críticas sobre a Educação. Ela constata que não existe uma organização em um volume destinado ao estudo do fenômeno da Educação; o assunto encontra-se de forma dispersa ao longo da obra de Freud, com questões postas aqui e ali, em textos variados. Nesta mesma direção, a autora segue avaliando o que essa constatação revela:

Essa dispersão, longe de indicar um descaso de Freud, mostra, ao contrário, que a Educação é um tema que o acompanhou por toda a extensão de sua obra e jamais deixou de ser para ele motivo de reflexão; uma reflexão contínua, que o levou a dizer, em uma de suas últimas obras, que educar, ao lado de governar e psicanalisar, é uma profissão impossível. (Kupfer, 1997: p.12).

Dentro dessa ótica, podemos entender a preocupação da Psicanálise com a organização psíquica do sujeito. Compreendemos que as operações de recalcamento, de castração, de inscrição do Nome do Pai e a introdução na cultura são decisivas e fundamentais no processo de aprendizagem.

A Psicanálise, diz Kupfer (1997:p.178),

Estuda não o desenvolvimento afetivo ou emocional de uma criança, mas a constituição do sujeito do inconsciente. Se, de um lado, as funções cognitivas se desenvolvem, evoluem, crescem, o sujeito, de outro, se constitui. A história da constituição do sujeito do inconsciente obedece a leis diversas daquelas que regem o desenvolvimento cognitivo. Não há um paralelismo entre eles.

O que está aí considerado é o que escapa da razão, é o não-dito, o indizível do sujeito, o indeterminado. O imprevisível que surge e surpreende a previsibilidade do processo de “aprendizagem”. O que não está exposto, o que se apresenta fora do campo do aparelho cognitivo, dos órgãos dos sentidos, das estratégias do ato pedagógico em si, do material didático, dos métodos de ensino e aprendizagem.

Utilizo-me da Psicanálise, nesta leitura do processo pedagógico, para apresentar suas contribuições ao campo da Educação.

São estudos que consideram o discurso social ou o Outro social na constituição da subjetividade como determinante deste mesmo sujeito, o qual, na perspectiva lacaniana, aparece na análise dos significantes presentes na cultura contemporânea.

Para Lacan, diz Mrech (1999:p.35),

A linguagem e a fala, através do social, tecem o Outro de cada cultura, o chamado Outro social ou Outro simbólico. (…) Do ponto de vista estrutural, o Outro não é fixo, transformando-se continuamente. Ele sofre influências tanto da sociedade quanto da estrutura familiar do sujeito (…) Na sociedade contemporânea, Lacan revela que o Outro tecido pelo social é o Outro que não existe. A sociedade contemporânea não atribui mais um valor ao Outro.

O “lugar do professor” vem sendo desinvestido pela cultura, pelo social e pelo político, ao longo de décadas. Em um maior grau, se encontra fragilizado, social e culturalmente, o professor de escolas públicas, já que essas instituições também perdem valor na sociedade a partir de um esvaziamento do ensino público, iniciado, pontualmente, na década de 60, com as mudanças políticas experimentadas no Brasil a partir do Golpe Militar.

Paradoxalmente, vivemos uma época em que o saber e a ciência tornam-se ideais a serem alcançados.

Mas qual o estatuto desse saber? O professor está contido nesse projeto ou é substituído pelos métodos científicos e equipamentos sofisticados?

No final da Idade Média, a idéia era que a escola fosse organizada com base em princípios de comando e de hierarquia autoritária (Ariés, 1991).

Esses “princípios de disciplina” pretendiam responsabilizar ou implicar os educadores pela “alma” dos alunos.

A partir do século XIX, surge, na França, uma nova tendência, que lança um novo olhar sobre as instituições educacionais. Finalmente, e a partir desse novo olhar, a organização hierárquica escolar adquire novo sentido, em que os métodos opressores de disciplina são substituídos por uma proposta do educador quanto ao despertar no aluno questões éticas, morais e de saberes, um processo de construção baseado na autoridade, e não no autoritarismo.

Em outro extremo, a história das instituições de ensino revela que o autoritarismo foi, em meados do século XV, um dos seus pilares básicos. A disciplina, as questões morais, a autoridade do professor passam por momentos diferentes na vida escolar.

Como admite Kupfer (1998: p.131), sabe-se que todo exercício profissional exige, para sua boa execução, que se estenda sob ele uma rede imaginária e simbólica que liga, articula, organiza, valoriza, prestigia e, portanto, atribui significação à prática individual de seus participantes. Pois bem: a rede estendida sob a Educação está aos pedaços,

Nestes tempos, muitas escolas mantêm com seus alunos apenas uma relação de pura prestação de serviços, por vezes fincada num manual de defesa do consumidor. Aí a violência é brutal, pois esvazia todo o campo simbólico do saber, levando-o a um real do produto da educação, transformado em objeto de consumo. Resta, nesse aspecto, uma violência velada e muitas vezes exposta a um contrato comercial que se torna mais significativo do que o próprio contrato pedagógico. Um real esmagador que condiciona o saber a mais um artigo de consumo e as escolas à sua estrutura arquitetônica e de equipamentos sofisticados. Num certo sentido, é mais um culto às máquinas, às estruturas, fruto da tecnologia. O que está ausente aqui é o que Gutierra (2003) chama de “transmissão viva”. A autora fala da relação dos professores com sua função, com o saber e com o ensinar como uma relação marcada pelo desejo que dá essa vivacidade e possibilita a transmissão desse desejo de saber aos seus alunos. É dessa maneira que o professor exerce função fundamental também na construção e manutenção dos laços sociais que vão além de modelos capitalistas selvagens e excludentes de um “apartheid” social que ausenta muitos do acesso à Educação.

Freud, em O Mal-estar na Civilização, explica que a civilização nasce à custa de uma insatisfação individual na direção da construção de um bem-estar coletivo. Ora, nesse sentido, se não há o respeito a essa regra fundamental da existência da civilização e se uns cidadãos aparecem excluídos dessa satisfação coletiva — o acesso à Educação — ou de uma justiça social, o princípio da ética está desfeito, dando lugar à violação de todas as regras preestabelecidas pela comunidade. Ao que parece, estamos vivendo isto que Freud já anunciava em 1929.

A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfação, ao passo que o indivíduo desconhece tais restrições. A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo (Freud, 1987: p.49).

Na ausência dessa lei, segue Freud dizendo, o que predomina é a violência ou a força bruta, e esse sentido tem sido observado também no ambiente escolar. Intervir nesse estado de coisas é, antes de se encontrar justificativas ou culpados, encontrar implicados reescrever e reinscrever essa história.

Os problemas de aprendizagem e o fracasso escolar também são uma mensagem codificada do aluno ao social em que está inserido.

De fato, o que constatamos é um declínio nesta que também é uma função paterna: a função do professor. Não é à toa, reflete Kupfer (1998: p.132),

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(…) Que os alunos não demonstram mais a antiga reverência diante do professor, reverência que, em tempos passados, os fazia tremer com um simples olhar que o professor lhes dirigia e que os chamava imediatamente à ordem. Agora não sabem mais o que estão fazendo na escola e não situam o professor em uma cadeia simbólica, que fica, por isso, entregue ao julgamento de suas idiossincrasias pessoais. O professor não representa mais nada, não fala mais em nome de uma ordem trans-histórica, que o supera, e está jogado à sua imediata e trágica particularidade. Cada um precisa sustentar em nome próprio a cultura construída por séculos — o que é tarefa hercúlea e quase impossível.

Os atos cometidos pelos alunos em oposição à escola e ao professor não fazem parte de um protesto político consistente ou de uma proposta de melhoria na qualidade do ensino. É a violência pela falta da violência simbólica; é desrespeito à Lei, por sua ausência. Nestas e em muitas situações, o autoritarismo tenta fazer suplência na ilusão de substituir a autoridade e o respeito. Esse movimento violento poderia anunciar uma busca dos jovens, de uma maneira desesperada, pela significação das funções dos pais, dos professores, da escola e da Educação e reconquista do seu conteúdo simbólico? Seria, possivelmente, um grito contra uma produção de sintomas que vem da sociedade em direção aos sujeitos, que carecem de contorno, de margens? A violência, muitas vezes, tem uma conotação simbólica. E em muitas situações, como sintoma, desempenha um papel saudável na psicodinâmica existente entre o professor e o aluno, pois pede um olhar sobre esse mal-estar.

Corroborando com o que Kupfer tem pesquisado, é Gutierra (2002: p.37) quem segue alertando para o perigo que consiste no declive em relação ao exercício da docência:

Nesta situação, o professor tem sucumbido à castração imaginária à qual é lançado, sofrendo por causa da sua condição financeira e social, identificando-se com esta menor valia e sentindo-se impotente em sua função educativa. Passa a exercer a docência de forma burocrática e automática, forcluindo seu desejo e de seus alunos.

Encontramos situações que indicam um esvaziamento do professor como Outro, o esgarçamento de sua função. Ser professor se tornou sinal de sofrimento e calvário. Conhecemos popularmente símbolos que denunciam um lugar incômodo, um crescente desinvestimento do professor, como, por exemplo, nos anos 80, quando foram criados slogans, prontamente transformados em adesivos para automóveis, em que estava escrito: “Não me seqüestre, sou professor”!

Por contingência econômica e exigência ideológica, a Educação passa à margem do investimento de recursos, como alardeado por Paulo Freire. Com a queda da Educação, os atores presentes neste cenário rolam precipício abaixo. Essas questões, presentes no Laço Social, revestem a subjetividade e a cognição.
Lembremos que, segundo Jerusalinsky e Tavares (2002: p.42),

Para que a criança fique em posição de vir, por si mesma, a se apropriar de um saber e eleger caminhos (etimologicamente, inteligência vem do latim legere, eleger), depende da posição em que o Outro se coloca em relação a esse saber. Depende de que aquilo que ela venha a receber do Outro, como significações que ordenem o real, esteja em posição significante, isto é, que essas significações possam mudar de sentido.

Seguindo ainda essa linha, Melman (2002: p.54) aborda diretamente o papel do professor:

O saber, que era o lugar e o privilégio do Outro, está desinvestido, e inclusive a dimensão da transferência. Creio serem esses alguns dos fenômenos que merecem nossa atenção. Dizer que hoje o saber não está mais investido é o que se verifica quando conversamos com os professores. O que os jovens querem hoje, o que eles respeitam, são as técnicas, os instrumentos que permitem agir direta e imediatamente sobre o Real.

Na esteira das discussões contidas neste trabalho, é possível, mais além de concluir, concordar com os que propõem uma conexão entre Educação e Psicanálise. Kupfer faz um percurso por toda a tentativa feita, desde Freud, de construir e manter essa conexão viva. Aponta para as possibilidades que dependem, sem dúvida, do entendimento de Educação como discurso social, num contexto que supõe uma transmissão de marcas do desejo.

Quando um educador opera a serviço de um sujeito, abandona técnicas de adestramento e adaptação, renuncia à preocupação excessiva com métodos de ensino e com os conteúdos estritos, absolutos, fechados e inquestionáveis. (…) Ao contrário disso, apenas coloca os objetos no mundo a serviço de um aluno-sujeito que, ansioso por fazer-se dizer, ansioso por se fazer representar nas palavras e objetos da cultura, escolherá nessa oferta aqueles que lhe dizem respeito, nos quais está implicado por seu parentesco com as primeiras inscrições significantes que lhe deram forma e lugar no mundo. (Kupfer,1999: p. 19)

Uma leitura do Laço Social denuncia que o lugar do professor está desinvestido de seu valor simbólico. O Outro tem sido esvaziado, como tem revelado importantes reflexões sobre a sociedade contemporânea. Numa pesquisa de escuta a alunos de escola pública, foi possível ouvir acerca desse sintoma. No entanto, também foi possível dizer do que há de preservado nos valores endereçados a um “lugar” Outro em que o educador pode também ser encontrado. Pois, para os alunos participantes dessa pesquisa, há ainda uma missão válida a ser cumprida pelo professor. Aos jovens alunos, foi permitido falar sobre o processo educativo e sua significação. Aos educadores, encontrar um lugar de onde falar aos alunos e à Educação.

O desafio de conectar Psicanálise e Educação precisa estar amparado nas experiências que vêm sendo arduamente propostas, cujos frutos vêm sendo colhidos ao lado da pesquisa. Portanto, propor que esse desafio seja aceito é propor que mais experiências, sob o viés da Psicanálise, continuem dando suas contribuições no âmbito da Educação, buscando, na história desse compromisso, as próprias questões que fazem as suas certezas e, ao mesmo tempo, mais importantes ainda, as suas contradições e dúvidas. É no encontro dessas discussões que tem nascido, crescido e dado bons frutos esta secular proposta: uma Educação psicanaliticamente orientada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARIES, Philippe (1981). História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos Editora.
FREUD, Sigmund (1930). O mal-estar na civilização. In Obras Completas. Rio de Janeiro, Imago, 1987.
GUTIERRA, Beatriz (1996). O Mestre (im)possível de adolescentes – uma especial posição subjetiva na transmissão. Estilos da Clínica, Ano VII, Número 12, São Paulo, USP.
JERUSALINSKY, Diana & TAVARES, Eda (1997). Que Rei é esse? In O sintoma na Infância. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, ano VII, N 13.
KUPFER, Maria C. (1995). Freud e a educação, dez anos depois. In Psicanálise e Educação: uma transmissão possível. Porto Alegre, Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
___________________ (1997) Afetividade e Cognição: Uma Dicotomia em Discussão. São Paulo, Revista Nº 28 da Fundação para o Desenvolvimento da Educação – FDE.
_________________ (1997) Freud e a Educação. São Paulo, Editora Scipione.
MELMAN, Charles (2000). Novas Formas Clínicas no Início do Terceiro Milênio. Porto Alegre, CMC Editora.
MOLINA, Sílvia (1999). O Sujeito cognoscente e a aprendizagem: conceitualizações inter e transdisciplinar. In Psicanálise e Educação: Uma transmissão Possível. Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
MRECH, Leny (1999). Psicanálise e Educação: Novos Operadores de Leitura. São Paulo, Editora Pioneira.

Ana Cristina Emerenciano Alcoforado Fonseca
Psicóloga: CRP – 02/11.749
Graduação na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda – Facho
Especialização em Psicologia da Educação – Fafire
Especialização em Psicologia Clínica – Facho
Assessora Técnica do Projeto Saúde na Escola – Unicef
Professora da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda – Facho
Assessora Técnica da Secretaria de Educação de Olinda
Membro do Centro de Estudos Freudianos – CEF, Recife
E-mail: aceafonseca@ig.com.br

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