Edição 108

A fala do mestre

A contação de histórias à luz de Paulo Freire: Uma estratégia de formação docente do ensino fundamental.

Rosa Costa Falcão
Targelia de Souza Albuquerque

INTRODUÇÃO

Paulo Freire: um contador de histórias do e no mundo

O conto e o reconto de histórias têm sido considerados, por grande parte dos linguistas, algumas das estratégias mais eficazes para a construção da linguagem oral e escrita e para a leitura de mundo e a aquisição de processos comunicativos dialógicos de reconhecimento de cada ser humano na sociedade. “A fala seria uma forma de produção textual-discursiva para fins comunicativos na modalidade oral (situa-se no plano da oralidade, portanto), sem a necessidade de uma tecnologia além do aparato disponível pelo próprio ser humano. Caracteriza-se pelo uso da língua na sua forma de sons sistematicamente articulados e significativos, bem como os aspectos prosódicos, envolvendo, ainda, uma série de recursos expressivos de outra ordem, tal como a gestualidade, os movimentos do corpo e a mímica” (MARCUSCHI, 2000, p. 25). Foram realizados estudos sobre narrativas orais e literatura infantojuvenil com as contribuições de Bettelheim (1979), Sisto (2012), Freire (2002), Abramovich (1997) e Matos (2009). A contação de histórias veicula e decodifica memórias, ideologias, conhecimentos, sentimentos e o imaginário de pessoas, povos e nações; por essa razão, constituem-se mecanismos que possibilitam a assunção da identidade cultural. Educadores críticos recomendam uma atenção muito acurada com relação às escolhas das histórias que serão contadas às crianças, aos jovens e aos adultos. Os cenários, as vivências dos personagens, as cenas explícitas e subliminares podem construir trilhas de descobertas. A contação de história pode ser um ato de libertação, se cada conto e reconto for momento de diálogo aberto e crítico com compromisso e responsabilidade de formação de um ser humano digno, fraterno e justo.

As obras de Paulo Freire são transpassadas de relatos, autobiográficos ou não; isso foi fruto de suas andanças como educador libertário pelo mundo. Ele é um contador de histórias humanas, de alegrias, de sofrimentos, de opressão e de lutas pela liberdade. Esse trabalho não pretende trazer o que se esconde nas entrelinhas dos contos infantis ou desmascarar verdades sociais disfarçadas em bruxas e fadas. Ele se propôs a compreender a repercussão do conto Paulinho: o menino que escreveu uma nova história (ABRAMOWICZ, 2010) em processos de formação de professores do Ensino Fundamental no Recife, em Pernambuco.

As questões norteadoras da investigação foram: será que a contação de história sobre a infância e os primeiros anos de adolescência de Paulo Freire poderiam contribuir para estimular o estudo de suas obras, como A importância do ato de ler e Pedagogia da autonomia, por exemplo? Como alcançar os docentes para que eles pudessem se reconhecer como educadores críticos à luz de Paulo Freire e exercer uma educação como prática de liberdade?30

Os objetivos dessa proposta investigativa de pesquisa-ação foram: a partir do estudo da obra sobre Paulo Freire: Paulinho: o menino que escreveu uma nova história (ABRAMOWICZ, 2010), trabalhar a categoria “memórias de infância e adolescência” e suas influências na construção de ações pedagógicas da juventude e vida adulta; resgatar a importância da oralidade no saber fazer freiriano; estudar histórias, poemas e discursos de autoria freiriana para construir novas visões de mundo e refletir questões culturais e sociais apresentadas pelo autor; e estimular o estudo de obras de Paulo Freire em oficinas literárias. “É, no entanto, bastante interessante refletir melhor sobre o lugar da oralidade hoje, seja nos contextos de uso da vida diária ou nos contextos de formação escolar formal. O tema não é novo e tem longa tradição” (MARCUSCHI, 2010, p. 24).

A importância da oralidade em Paulo Freire

O diálogo se constitui na e com as palavras, pois palavra é práxis e, como tal, possibilita a expressão dos seres humanos uns com os outros. O processo de contação de histórias é relacional, em que as palavras fluem na oralidade, em gestos corporais ou na palavra-silêncio (não falamos em silenciados, mas, sim, no silêncio da ouvirtude). Por exemplo: eu calo para escutar e falo com a vontade de ser escutado por quem se abre ao diálogo comigo; no reconto, a palavra escrita passa a ser a referência. A escrita ganha força no registro da memória. Paulo Freire, em seu livro A importância do ato de ler, destaca “A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de ‘ler’ o mundo particular em que me movia — e até onde não sou traído pela memória —, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra” (FREIRE, 2002, p. 12). Memórias da infância freiriana podem dar suporte a essa colocação: assim, dá-se início às histórias que envolviam as lembranças do autor Paulo Freire. Os detalhes como: “A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço — o sítio das avencas de minha mãe —, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi meu primeiro mundo”. E, à sombra da mangueira, o garoto se alfabetizou, com histórias que são contadas e recontadas com ênfase na oralidade peculiar da sua região. Relatos bem desenvolvidos no livro A importância do ato de ler, deixando desabrochar suas memórias e devaneios de toda uma história de vida. Ao expressar seus pensamentos, logo vêm a magia e a desenvoltura por meio da oralidade, confirmando “[…] o mundo de minhas primeiras leituras”. Trazer o grande mestre como temática nesse encontro de histórias, poemas e discursos faz do saber pedagógico uma vitrine de obras do autor Paulo Freire, com ênfase no seu legado, navegando nas obras culturais e sociais.

Metodologia

Inicialmente, a proposta assumiu um delineamento de “atividades de extensão”, em parceria com o Centro Paulo Freire – Recife. À medida que os círculos de cultura temáticos (FREIRE, 1987) iam acontecendo, surgiu a ideia de introduzir, como estratégia de formação de professores do Ensino Fundamental, oficinas de contação de histórias, tomando como base o livro Paulinho: o menino que escreveu uma nova história (ABRAMOWICZ, 2010).

A partir desse momento, configurou-se a possibilidade de desenvolver uma pesquisa-ação inspirada na metodologia freiriana dos passos do método de alfabetização e na análise de conteúdo temática proposta por Minayo (2008). Acreditamos no dito popular: “Quem conta um conto aumenta um ponto”. Recontar Paulo Freire é prazer, é criação, é retornar aos seus diálogos acreditando na veracidade do que foi dito ou mesmo do que não foi dito, do que ficou implícito em suas metáforas, a exemplo de: “Estarei preparando a tua chegada como o jardineiro prepara o jardim para a rosa que se abrirá na primavera” (FREIRE, 1971).

Discussão preliminar dos achados

Em cada encontro, os relatos das práticas pedagógicas, das experiências relacionais na escola entre docentes e destes com as crianças, das histórias contadas pelas crianças e das histórias validadas pela escola forneceram elementos de análise coletiva com o grupo, decodificando intencionalidades, ideologias e misticismos reguladores de conduta.31

Isso foi criando um caminho de descobertas: quem sou eu no mundo? O que faço? Quais meus medos? Por que eles fazem parte de meu cotidiano e me assustam tanto? Quais as forças que eu tenho para lidar com eles e enfrentá-los? O que significa estar com o outro na resistência e na luta? Por que causas devo reagir e lutar? Como fortalecer o coletivo desde a infância com os coleguinhas em sala de aula (para as crianças) e com nossos pares (adolescentes e adultos)? Por que falar sobre e falar com pode ajudar a compreender o mundo e nosso lugar no mundo? Como fortalecer relações dialógicas em sala de aula e na escola e/ou em outros espaços educativos de formação?

Cada oficina de contação de história, inspirada nos relatos sobre ou com Paulo Freire, vai abrindo trilhas de leitura crítica de mundo, em que a oralidade abre as portas para a expressão do sentir e do pensar. Foram momentos investigativos que corroboraram o que Paulo Freire relata em Pedagogia da autonomia: a pesquisa não é uma adjetivação ou qualidade da tarefa do professor; faz parte da natureza da prática educativa ser pesquisador (FREIRE, 1996).

Considerações finais

Paulo Freire (1996), ao afirmar que: “Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo”, convoca-nos a construir o inédito viável, ou seja, ao compreender as situações-limite em que vivemos, podemos construir trilhas de superação e transformação social. Talvez o inédito viável nesse percurso ora relatado tenha sido o desenvolvimento da prática avaliativa emancipatória, porque “Não é possível praticar sem avaliar a prática” (FREIRE, 2002). Cada momento de contação de história, a partir de relatos da vida de Paulo Freire, por ele mesmo ou por seus estudiosos, criaram e recriaram modos de contação de histórias de vida de professores e seus educandos. De fato, a história de Paulo Freire é inspiradora! É preciso viver a esperança da possibilidade, na conjuntura atual brasileira, de esperançar.

Rosa Costa Falcão é Mestra em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de Pernambuco; professora em cursos de formação de professores na UPE; professora convidada de pós-graduação (Fafire e UPE); membro do grupo de estudos do Centro Paulo Freire Estudos e Pesquisa – Recife/PE; contadora de histórias; e escritora de literatura infantil.
E-mail: rosacostafalcao@gmail.com.

Targelia de Souza Albuquerque é Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; professora visitante da pós-graduação da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda; membro da Cátedra Paulo Freire/UFPE; sócia-formadora do Centro Paulo Freire (UFPR); e professora aposentada da UFPE.
E-mail: targeliaalbuquerque@gmail.com.

Texto publicado e apresentado no IX Seminário Paulo Freire – VII Encontro de Cátedras e Grupos de Estudos – Leitura de Mundo e Educação: Tecendo Caminhos do Inédito Viável.

Referências

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. 4. ed. São Paulo: Scipione, 1997.

ABRAMOWICZ, Mere. Paulinho: o menino que escreveu uma nova história. Godoy. São Paulo: Cortez, 2010.

BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 1979.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz

___. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 43. ed. São Paulo Cortez, 2002.

MATOS, Gislayne Avelar; SORSY, Inno. O ofício do contador de histórias: perguntas e respostas, exercícios práticos e um repertório para encantar. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.). Pesquisa social. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

REVISTA LUMEN. FALCÃO, Rosa Costa. ALBUQUERQUE, Targelia de Souza. A avaliação na educação infantil: uma abordagem à luz da pedagogia de Paulo Freire. Fafire tradição e modernidade. 2016.

SISTO, Celso. Texto & pretextos sobre a arte de contar histórias. Belo Horizonte: Aletria, 2012.

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