Edição 108

A fala do mestre

A escola do mundo real

Lécio Cordeiro

Os professores mais experientes ou os cinéfilos certamente se lembram de um filme clássico que estreou em 1973. Trata-se de Papillon, um épico baseado na história de René Belbenoît (chamado Papillon), que foi preso em Paris, em 1922, por um crime que jurava não ter cometido. Enviado para a Ilha do Diabo, uma cadeia de segurança máxima localizada na Guiana Francesa, para cumprir prisão perpétua, o personagem determina-se a fugir a qualquer custo. Nos 11 anos em que esteve preso, não passou um dia sequer sem pensar nisso. Obstinado, tentou e fracassou várias vezes até que conseguiu escapar e foi bater em uma paradisíaca ilha do Caribe, onde uma bela jovem indígena se apaixonou por ele. No entanto, rodeado pelo oceano, Papillon continuou se sentindo preso. Então, deixou tudo para trás e fugiu novamente. Na história real, esclarecida somente em 2005 pela Polícia Federal brasileira, depois de se livrar da Ilha do Diabo, René Belbenoît passou um tempo na Guiana Inglesa e, em 1940, radicou-se em Roraima, onde morreu em 1978, aos 73 anos. No tempo em que viveu em Roraima, usou identidades falsas, fez negócios com garimpos de ouro, diamantes e metais preciosos, liderou um assalto milionário. O que chama a atenção nessa história é a profunda necessidade de Belbenoît se sentir livre e, contraditória e inconscientemente, fazer de tudo para ser preso.

Em um dos pontos altos do filme, aquele que retrata os dias que Papillon viveu na ilha do Caribe, uma pergunta é incontornável: por que, mesmo no paraíso, ele decidiu fugir? No seu pensamento existencialista, o filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre (1905–1980), que certamente viu o filme, diria que Papillon estava, como todos nós, condenado a ser livre — livre para se moldar perante a sociedade a partir das suas escolhas. Para Sartre, essa liberdade tinha um contraponto: ao realizarmos nossas ações, estamos constantemente projetando um modelo de sociedade. O problema é que nosso projeto de vida entra em conflito com o projeto de vida dos outros. Simultaneamente, é pelo olhar dos outros que nos reconhecemos, com falhas e acertos. E como percebemos isso? Na convivência. É no dia a dia com os outros que vemos expostas nossas fraquezas, daí a célebre frase do pensador francês:21
“O inferno são os outros”.

Então, o que Papillon e Sartre nos ensinam? Uma das respostas possíveis tem a ver com o que muitos de nós, professores, experimentamos diariamente nas nossas salas de aula. Diz respeito ao sonho de, um dia, trabalhar em uma escola perfeita, onde só haverá alunos perfeitos. Àqueles que se sentem inseridos nessa perfeição, meus parabéns! Vocês alcançaram a meta mais alta que todo profissional deseja alcançar: estão no paraíso, como Papillon, e não querem fugir. Já àqueles que estão profundamente insatisfeitos com a realidade na qual estão inseridos, deixo o convite a uma autoanálise existencialista: quanto dessa insatisfação decorre das suas próprias fraquezas, reveladas diariamente no convívio com os alunos (os outros)? Mais especificamente: quanto da sua impaciência, intolerância, desalento é revelado na convivência com seus alunos? A apatia é causa ou consequência de uma aula desinteressante? Quantos de nós sentimos uma necessidade profunda de dar uma aula perfeita e, contraditória e inconscientemente, fazemos de tudo para passar incógnitos pelos alunos.

O exemplo do professor Peter Tabichi é emblemático. Vencedor do Global Teacher Prize de 2019, considerado o Prêmio Nobel da Educação, Peter tem 36 anos e é um monge franciscano que trabalha em uma comunidade localizada na porção rural mais remota do Quênia. Seu mérito: ensinar Matemática e Física de forma tão contagiante e altruísta que seus alunos desenvolvem e executam projetos de extrema relevância para a comunidade em que vivem, como gerar energia elétrica a partir das plantas, projeto que rendeu um prêmio da Royal Society of Chemistry. Em outro projeto, apresentado na Feira de Ciências e Engenharia do Quênia em 2018, eles desenvolveram um equipamento que ajuda pessoas cegas e surdas a medir objetos. Com esse trabalho, venceram a competição nacional e se classificaram para a Feira Internacional de Ciências e Engenharia 2019, realizada em maio deste ano no estado do Arizona, Estados Unidos.

Certamente há muitos professores brasileiros que, como Peter, ensinam com paixão. Não sei se têm a mesma determinação, entrega e amor ao próximo. Ele doa aos pobres quase todo o salário, trabalha em condições precárias e, nos fins de semana, costuma visitar as famílias dos alunos para identificar os desafios que eles enfrentam. Na escola, há apenas um computador, e a conexão com a Internet é intermitente. Apesar disso, dedica 80% de suas aulas às tecnologias da informação e comunicação, procurando salvar o máximo de conteúdo possível para usar offline. Tudo isso encanta todos aqueles que estão à sua volta. Para ele, o segredo é levar os alunos a confiar em si mesmos, a acreditar que podem ser o que quiserem.

Se não há muitos professores como Peter no Brasil, os alunos certamente são bem parecidos aos que encontramos em muitas das nossas salas de aula. Do mesmo modo que alunos do Capão Redondo, no Rio de Janeiro, ou de Marajá do Sena, no Maranhão, os alunos da Vila Pwani vivem em uma região onde a fome é naturalizada. Quase todos são pobres, um terço deles é órfão ou tem apenas um dos pais, a maioria não tem comida em casa, vários usam drogas, há inúmeros casos de gravidez indesejada, altos índices de evasão escolar, suicídio e violência.

Meus amigos, o professor que ama a profissão encanta os alunos pelo seu encanto. É impossível encantar um aluno pelo desânimo, pela falta de horizonte, pela apatia. Não haverá escola perfeita se o professor não estiver em paz. Assim, a escola perfeita, com alunos perfeitos, não está, necessariamente, na Finlândia ou no Japão. Ela está no mundo real, seja em São Paulo, seja em uma comunidade remota do Quênia. Isso significa que basta mudar o ponto de vista, por mais difícil que isso seja. Passar a ver os alunos não como o outro infernal que revela minhas fraquezas, mas como o outro divino, com quem sempre posso aprender e a quem sempre posso ensinar. Juntos, podemos até transformar a sociedade.

Você pode conhecer melhor o professor Peter Tabichi escaneando o código a seguir.

Lécio Cordeiro é formado em Letras pela UFPE, editor e autor de livros didáticos de Língua Portuguesa para os anos finais do Ensino Fundamental.
E-mail: leciocordeiro@editoraconstruir.com.br

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