Edição 63

A LEI Nº 11.645/08

A morte na cosmovisão afroafro-brasileira

Rosalira de Oliveira

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A morte é algo que preocupa a todos nas diferentes culturas, uma vez que não é apenas um acontecimento biológico, mas algo de profundo simbolismo. Isso explica por que os rituais funerários constituem, segundo os antropólogos, “universos culturais” presentes em todas as culturas. O modo como é tratado o corpo morto, os participantes da cerimônia e seus oficiantes, os cânticos, os ritos posteriores ao enterro ou à cremação, tudo isso traduz as concepções de cada grupo sobre o mundo, as relações entre as pessoas e destas com a divindade.

Os rituais funerários estão entre os ritos de passagem que, segundo o antropólogo francês Arnold Van Gennep (1873–1957), se constituem ao menos de três etapas: separação, margem e agregação. Nos ritos funerários, temos, inicialmente, a separação do mundo dos vivos, marcada por diferentes rituais em torno do corpo morto, cujas prescrições devem ser cumpridas à risca sob pena de comprometer o destino pós-vida do falecido ou acarretar riscos para os vivos. Em várias sociedades, tal separação se estende à família, que, marcada pelos símbolos do luto, está ritualmente afastada de determinadas atividades.

Ao longo do processo funerário, o cadáver é um ambíguo: não é “vivo”, mas também não é de fato “morto”, pois ainda não concluiu a sua passagem de um mundo a outro, o que corresponde à etapa denominada margem, situação social na qual o indivíduo não é mais o que era, contudo ainda não adquiriu um novo status. Ao fim dessa etapa, inicia-se o processo de agregação, através do qual o morto pode ser reinserido na vida social como um finado ou ancestral. É esse o sentido dos rituais celebrados após o sepultamento, como é o caso das missas póstumas católicas. Embora tais fases sejam consideradas invariáveis nos diferentes ritos de passagem, seu conteúdo varia em cada cultura/ grupo social, refletindo diretamente seus valores e suas crenças.

Vida e morte formam um ciclo que se alterna. Muitos valores e crenças atuais das religiões afro-brasileiras constituem uma atualização daqueles trazidos pelos africanos. Para os iorubas, que contribuíram com parte dessas tradições religiosas, vida e morte se alternam, formando um ciclo que se repete: a criança que nasce é o velho que retorna. Na cosmologia iorubana, existem dois mundos: o físico — aiê, dos vivos; e o espiritual — orum, dos mortos.

Ao morrer, a pessoa, independentemente de suas ações durante a vida, vai para o orum, pois não há concepção de julgamento, punições ou recompensas após a morte. No devido tempo, o morto reencarnará nascendo de novo no seio da sua própria família. Nessa visão, o ser humano é composto por uma parte material, o corpo físico, que se decompõe com a morte; e outra espiritual, composta por várias unidades, cujos destinos se diferenciam após a morte. Há o emi, sopro vital, que abandona o corpo no momento da morte; o ori, cabeça, personalidade individual, que também desaparece ao morrer; o orixá pessoal, a identidade sobrenatural retorna ao orixá geral, do qual é uma parcela; e, finalmente, o espírito propriamente dito, chamado egum. Este último constitui a memória da pessoa em sua passagem pelo aiê, a trajetória da vida. Após a morte, o egum vai para o orum, podendo, a partir de então, renascer entre seus parentes. Os espíritos de reis, grandes sacerdotes ou guerreiros, tornam- -se objeto de culto, uma vez que representam as raízes coletivas de uma linhagem ou grupo social.

A inculturação das religiões afro no Brasil

A religião trazida da África e reconstruída no Brasil não manteve sua originalidade nem poderia fazê- -lo, pois, numa sociedade na qual a religião católica era a fonte primordial de valores coletivos, as religiões afrodescendentes tiveram que reelaborar muitos aspectos da sua cosmovisão, sobretudo no que concorria diretamente com os ritos e as concepções cristãs.

No candomblé e em outras tradições religiosas afrodescendentes, a morte de um iniciado impõe a realização de um rito funerário, denominado axexê, que marca a separação entre o morto e os vivos, e corta os seus laços com o aiê — mundo físico — e com a comunidade de culto, a fim de que seu espírito possa seguir para o orum — o mundo dos mortos. Ao longo de sua vida religiosa, um iniciado passa por diversas cerimônias, que constituem o aprofundamento e a ampliação dos laços que o vinculam tanto aos orixás — que vão sendo assentados na sua cabeça e no peji (altar) — quanto à comunidade religiosa. Por isso, sua morte constitui um acontecimento que diz respeito não apenas aos membros da sua família, mas também às relações dele com seu orixá, com os outros membros da cadeia hierárquica e, finalmente, com o axé do terreiro. Quanto mais proeminente o adepto, mais vínculos a serem cortados, e, mesmo que seja recém- iniciado, ele fez o seu assentamento e possui vínculos com a comunidade. Cortar esses laços e liberar o egum para entrar no orum é um dos sentidos do ritual do axexê.

Estrutura comum entre os rituais

O axexê inicia-se logo após a morte, quando os sacerdotes retiram da cabeça do morto a marca simbólica da presença do orixá que ali havia sido implantada durante a iniciação, e, depois do enterro, realiza-se a cerimônia propriamente dita. Apesar das variações existentes entre os diferentes terreiros e nações, o ritual tem uma estrutura comum, da qual fazem parte a música, os cânticos e as danças; o transe, com a presença de forma incorporada dos orixás, particularmente daqueles associados à morte, como Iansã; os sacrifícios e as oferendas, oferecidos ao egum do morto; a destruição dos objetos rituais do falecido; o despacho desses objetos, juntamente com aqueles utilizados durante o ritual, para fora do terreiro/casa de culto. Ao final do rito, o morto não faz mais parte daquele terreiro. Depois, poderá ou não ser reincorporado à qualidade de ancestral da casa, sendo então cultuado como tal, mas, no momento, está desligado dos laços físicos e espirituais com o terreiro.

Para o especialista em religiões afro-brasileiras Reginaldo Prandi, o axexê representa uma inversão à iniciação, pois, se através desta o adepto se integra à comunidade de culto, pelo axexê ele é afastado. Assim como a iniciação assinala um novo nascimento, o axexê — morte ritual — fecha esse ciclo, completando a trajetória realizada no aiê e preparando para a vida no orum. Há uma simetria subjacente a esses dois momentos.

No pensamento religioso afro-brasileiro, nascimento implica um desprendimento da “fonte geradora de tudo”, uma transferência e uma perda de energia — axé — por parte dessa fonte primordial. O axexê ritualiza a liberação e a restituição dessa fonte original, implicando a transformação propiciada pela morte. Aquilo que vem do mundo espiritual deve ser devolvido para se fechar o ciclo. A morte, assim como o sacrifício — animal ou vegetal —, é apenas uma forma de retorno, parte constitutiva da dinâmica de circulação de energia entre o aiê e o orum, de modo que a morte não é destruição, mas transformação necessária ao equilíbrio do universo, e se constitui condição para a circulação da energia entre os mundos físico e espiritual.

Referências bibliográficas

CACCIATORE, Olga. Dicionário de Cultos Afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

DEL PRIORI, Mary. Passagens, Rituais e Práticas Funerárias entre Ancestrais Africanos: Outra Lógica sobre a Finitude. In: ISAIA, Artur Cesar (Org.). Orixás e Espíritos: O Debate Interdisciplinar na Pesquisa Contemporânea. Uberlândia: Edufu, 2006.

PRANDI, Reginaldo. Segredos Guardados: Orixás na Alma Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. VAN GENNEP, Arnold. Os Ritos de Passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.

Revista Diálogo. Ano XVI, n. 62. São Paulo: Paulinas. Maio–junho, 2011.

Rosalira de Oliveira é Doutora em Antropologia e pesquisadora adjunta da Fundação Joaquim Nabuco.

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