Edição 12

É dia...

A palavra: do sagrado ao poético

Joana Cavalcante, escritora, professora e assessora de Educação

A palavra mágica
Certa palavra dorme na sombra
De um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida,
A senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
No mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
Não desanimo;
Procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
Ficará sendo
Minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade

Desde sempre, a palavra foi de busca: pelo Sagrado e pelo Poético, juntam-se os mundos para dizer do homem e seu impulso infinito para o criar, agir, seguir e ser. No princípio, eram o céu, a terra e o mar. A Lua, as estrelas e o Sol moviam-se no espetáculo primordial. Era o início de tudo e uma longa caminhada deveria ser feita até que o animal humano se tornasse o Sujeito do Cogito ergo sum, o que representa ter o domínio da razão e a consciência do ser. Foi o início de tudo. Estávamos no “Era uma vez…”.

“E disse Deus: façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança: domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre todo réptil que se arrasta sobre a terra.”
(Gênesis 1.26)

E assim foi feito. O homem, por seu condicionamento de animal simbólico, na possibilidade de entrar no mundo da linguagem e, com isso, no mundo da cultura. O verbum, a ação se converteu em palavra e esse fato organizou o todo. O poder comunicar não foi suficiente para sair da “selvageria”. Foi necessário reconhecer-se como ser desejante e partir em busca da caça, mas também da partilha. Olhar a chegada do dia, a partida da noite, o Sol com poder de iluminar e passar calor, as estrelas, a Lua, ora redonda, outras vezes fiapo, réstia sobre o mar, chuvas, relâmpagos e trovão. Enfim, um universo a ser compreendido, dominado e explicado. Semeado pela palavra.

“O Semeador semeia a palavra. E os que estão junto do caminho são aqueles em que a palavra é semeada (…) Aqueles outros que foram semeados em boa terra são os que ouvem a palavra e a recebem, e dão fruto, a trinta, a sessenta, e a cem, por um.”
Palavra do Semeador, Marcos 4,1-20

A palavra semeada passa a ser metáfora e a carregar em si o sentido da existência; portanto, desde sempre, o sagrado deixou sua impressão e fez da palavra semente em campo fértil, pronta para brotar poesia, palavra multiplicada florando nos canteiros da alma humana.

Mas como explicar o que não se compreende? Assim, o sobrenatural celebrado pelos ritos passa a explicar a vida e a palavra converte-se em “realidade”, sendo o mito. Essa foi a primeira forma de narrar, de contar, de revelar e explicar o mistério da existência.

O frio, a fome, o medo, a alegria, a tristeza, a dor e o amor foram, então, tecidos no fio da palavra, que, desdobrando-se, multiplicou-se como numa teia de relações para explodir nas diversas narrativas e contar a história do Homem. Dessa existência plena e precária, capturada pela metáfora que transcende o sagrado para tornar-se poético, transbordante de humanidade.

Assim, o fantástico e o maravilhoso aproveitam-se da capacidade humana de fabular para (re)criar o mundo dos homens no atemporal, aespacial e universal que constitui a experiência simbólica.

Conforme Maria Emília Traça, pesquisadora portuguesa, no seu livro Do Conto Popular ao Fio da Memória, o mito simboliza as crenças de uma comunidade, acontecimentos fabulosos, sempre ligado a um ritual, a um conteúdo cosmogônico, que mais tarde irá, por vezes, se transformar em sagas, lendas e contos. Assim, “O ato de contar, narrar histórias, coloca-nos na presença de ritual sagrado, pois é presença de uma palavra enraizada numa voz e num corpo” (in TRAÇA, p. 38).

De acordo com muitos autores, todas as formas de contar têm uma origem nas narrativas primordiais, originadas dos mitos e convertidas em contos. Portanto, os contos se constituem, como afirma Stith Thompson, na forma mais universal de todas as narrativas.

Sabemos que essas narrativas tinham tanto caráter funcional como social. Eram recheadas de material proveniente da cultura oral, incluindo-se rituais, crenças, práticas sociais que seguiram redes de significação por meio dessas produções. Todas têm um conteúdo mítico, mesmo que aparentemente estejam longe de se apresentar sob a forma de narrativas com um conteúdo coletivo sagrado.

O próprio ato de contar, narrar histórias, utilizar uma palavra transcendente faz com que a dimensão do verbo extrapole o meramente cotidiano e fugaz para tornar-se revelação. Metáfora.

Assim, temos desde sempre a palavra envolta na aura do sagrado, representativa da alma humana, mergulho na intersubjetividade porque remete para a dimensão eu/outro.

Além do que, a palavra salva, regenera, transforma porque diz do outro em nós mesmos. O dito surge para explicar e redimensionar o vivido, o sentido e o aprendido, somente pelo convertido no dizer, em busca do projetarse, eternizar-se.

Vale lembrar os “contadores” no serão, nas festas coletivas, quando desempenhavam um papel regulador de tensões num espaço de ficção em que se exprimem conflitos, pulsões, o não-dito da realidade social. As histórias eram parte integrante da palavra livre, proposta pela sociedade aos indivíduos que vivem segundo as suas regras, através de formas rituais e culturalmente sancionadas. Os contadores, ao longo do serão, alternavam-se, alimentando os sonhos e a reflexão dos adultos, dos adolescentes e das crianças, desenvolvendo-lhes a memória e a imaginação.

O grande exemplo da palavra envolvida no ritual do sagrado pode ser representado pelos Toradjas, comunidade tribal habitante do sul da África. De acordo com Jeanina Koubi, essa sociedade agrária estabelece, pelas narrativas, o ritual sagrado do plantio e da colheita, e a palavra age sobre a fertilidade do solo. É tão sagrado que é proibido “contar” após as colheitas, pois isso pode implicar um castigo. A palavra tem que ser pronunciada no momento certo para fazer brotar o arroz, caso contrário crescerão ervas. “Contar” é cumprir um rito de fecundidade da terra e do crescimento da vida em todas as suas formas. É tão sagrado que aquele que porta a palavra serve como intercessor junto às potências divinas. Narrar é orar.

As narrativas se constituem em muitas culturas como oferendas, presentes do céu capazes de transformar a vida porque têm o poder de interferir no cosmos, pois possuem beleza e poesia, percorrem o sagrado e o poético.

Não é exagero afirmar que fabular, narrar e ler são condições existenciais do homem. Fazem parte da nossa história, da trajetória humana em busca de significado para a vida. Uma história, seja em prosa ou poesia, tem sempre a intenção de gerar sentido. Então, aí, na procura de sentido, já existe a intenção arquetípica de busca pela transcendência. No momento em que o homem se reconhece como sujeito do desejo, está traçado o caminho da representação poética. A realidade cotidiana e banal necessita ser redimensionada e experimentada de outra maneira. O gesto em busca de transcendência será aquele que nos fará contemplar a “terceira margem do rio”, como nos diz o grande Guimarães Rosa. Isso nos remeterá, irreversivelmente, para o universo da arte, garantindo a possibilidade de reinventar a vida e sonhar com o mundo para além do que somos e fazemos.

Tanto o sagrado quanto o poético estão envolvidos em algo que nos coloca numa dimensão de dignidade espiritual, porque nos fazem refletir sobre os mais variados aspectos da natureza humana: o que somos, para que somos e para onde vamos.

Quando alcançamos o sagrado, estamos no poético, e o contrário é verdadeiro, pois o re-ligare implica a união com o todo, mergulho cosmogônico no infinito, desdobramento do si para o outro. Busca por algo maior que nos possa explicar. Daí se comparar com freqüência a função do religioso com a do poeta. Ambos dão ao mundo a possibilidade de transcendência. No primeiro, tocaremos pela fé. No segundo, pela fruição estética. Quando estamos em oração, comungamos com os segredos da vida e da morte. Quando adentramos no universo da arte, abrimos janelas de par em par e colhemos o mundo no centro da alma, e o banal transfigura-se em poesia.

Parece que estamos sempre envoltos no sagrado, pois foi essa, possivelmente, a primeira forma de nos relacionar com o mistério da vida. Isso vai nos remeter para além do empírico, fazendo com que a realidade se converta em palavra. Tanto o sagrado como o poético são da ordem do ontológico.

O poeta Pablo Neruda nos diz, em um dos seus mais lindos poemas:

As Uvas e o Vento
(…) Tu perguntas o que a lagosta tece
Lá embaixo…
Com seus pés dourados.
Respondo que o oceano sabe.
E por quem a medusa espera,
em sua veste transparente?
Está esperando pelo
tempo, como tu.
Quem as algas apertam
Em seu abraço… perguntas…
Mais firme que uma hora e
Um mar certos? Eu sei.
Perguntas sobre a mesa
Branca do narval…
E eu respondo cantando como
Unicórnio do mar, arpoado, morre.
Perguntas sobre as plumas do rei
Pescador…
Que vibrou nas puras
Primaveras dos mares do sul.
Quero te contar que o oceano
Sabe isto: que a vida…
Em seus estojos de jóias,
É infinita como areia,
Incontável, pura; e o tempo,
Entre as uvas cor-de-sangue…
Tornou a pedra dura e lisa,
Encheu a água-viva de luz…
Desfez o seu nó, soltou
Seus fios musicais…
De uma cornucópia feia
De infinita madrepérola.
Sou só a rede vazia diante dos
Olhos humanos na escuridão…
E de dedos habituados à longitude
Do tímido globo de uma laranja.
Caminho, como tu, investigando
A estrela sem fim…
E em minha rede, durante
A noite, acordo nu.
A única coisa capturada
É um peixe…
Preso dentro do vento
Investigando a estrela sem fim…

Iniciamos com Drummond, anunciando a busca permanente por uma palavra que nos represente; não por coincidência, concluímos com Pablo Neruda em busca da estrela sem fim. Imersos no sagrado e no poético. Metáfora absoluta do que somos e desejamos. Sobre a estrela sem fim? Ou a palavra semeada? É a busca de cada um. Lembrem-se: a vida se sente quando é transformada em palavra no sagrado da poesia em tudo que se vê, se sente e se é.

Dois livros de Joana Cavalcante: O jornal como proposta pedagógica e Caminhos da literatura infantil e juvenil, ambos da Editora Paulus

Cavalcante, Joana – Caminhos da literatura infantil e juvenil: dinâmicas e vivências na ação pedagógica. São Paulo: Paulus, 2002 – (Pedagogia e educação)

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