Edição 32

Lá Vem a História

A Proeza de caçador contra o curupira

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Lá no coração da Floresta Amazônica, os velhos do povo tucano contam a história de um homem que saiu para caçar porque sua família estava com muita fome e nada tinha para comer.

O caçador saiu bem cedinho, andou o dia inteiro e só havia matado um único macaco. Mas era tão pequeno que não seria suficiente para alimentar sua família.

O dia foi passando bem rapidinho, e, quando o caçador se deu conta, já estava anoitecendo. Ele ficou aflito, pois sabia que passar a noite na mata é sempre muito perigoso. Além dos animais de hábitos noturnos, há os espíritos da floresta que habitam o lugar. Ficou especialmente com medo do espírito protetor dos animais: o curupira.

Ele já havia ouvido falar demais desse espírito que, segundo os velhos, enlouquece os caçadores desavisados que teimam em pernoitar no mato.

“Tomara que o curupira não me encontre”, pensava o homem enquanto procurava um lugar para se abrigar. “O que vai ser dos meus filhos se esse malvado me encontrar aqui?”, continuava matutando enquanto se deitava no oco da árvore e sobre o macaco que havia matado.

De nada adiantou seus lamentos. A noite já havia caído por completo, e nada podia fazer para encontrar o caminho de volta. De repente, ele ouve um farfalhar de folhas secas e uma batida: tum, tum, tum. Era a batida do curupira. Na aldeia, diziam que ele fazia isso para verificar quais árvores estariam abaladas pelo vento ou pela idade, já que seu trabalho é zelar pela segurança de toda a natureza.

O som da batida estava bem próximo do caçador. Um vulto se aproximou da árvore em que ele estava e sentou-se na raiz. Como estava muito escuro, o curupira não o conseguia ver, nem mesmo usando sua vasta cabeleira cor-de-fogo.

O caçador tentava esconder-se para não ser notado, mas foi tudo em vão. O espírito da floresta já o havia identificado pelo cheiro que a caça exalava.

— Como está você, meu neto?
— Estou bem, meu avô. E você, como está?
— Estou bem, meu neto.

Enquanto falava isso, o curupira começou a fungar e a arrastar os pés, sinal claro de que estava com fome, muita fome.

— Como é isso, meu neto? No mato, a essa hora da noite?
— Estou perdido, meu avô.
— Você não andou caçando meus animais na mata, andou?
— Eu? Nunca faria uma coisa dessas. Eu apenas estou perdido. Fui atravessar o mato, e escureceu muito rápido, e aí eu me perdi.
— Ah! Isso é bom, muito bom! Faz quanto tempo que saiu de casa?
— No dia que passou.
— Acho que realmente você deve estar perdido, pois, se fosse um bom caçador, não estaria aqui.

O curupira fungava cada vez mais forte e arrastava o pé. Sentia o cheiro do macaco exalando no ar.

— Estou com muita fome, meu neto. Você conseguiu alguma caça?
— Não vim caçar, meu avô, sustentou o homem.
— Então eu vou ter de comer sua mão.

O homem, mais que rapidamente, cortou a mão direita do macaco e deu para o curupira. Este devorou-a rapidamente.

— Agora quero comer a outra mão, meu neto.

Imediatamente o caçador cortou a mão esquerda e a entregou ao curupira, que se deliciou com a iguaria. Insatisfeito, o espírito pediu um pé e recebeu o direito; depois, recebeu o pé esquerdo, que devorou com sofreguidão.

— Está tudo muito delicioso, meu neto. Mais ainda lhe resta o coração. Pode me dar seu coração?

O caçador, extraindo o coração do macaco, o entregou ao curupira. Este satisfeito e com sono, falou que tudo o que o caçador quisesse ele daria.

O homem não se fez de rogado:

— Quero o coração do meu avô!
O curupira achou estranho o pedido, mas como havia empenhado sua palavra, pegou a faca do moço e a enterrou inteira no coração. Foi morte instantânea.

O caçador esperou o dia clarear e voltou para a aldeia. Chegando em casa, seus filhos reclamaram de sua demora e do fato de não ter trazido nada para comer.

— Pai, por que suas caçadas não têm sido boas?
— Não sei, meu filho. Acho que é por causa das pontas das flechas. Não consigo acertar em nada.
— Disseram para nós, meu pai, que osso de curupira dá ponta forte, certeira.

O homem pensou que podia voltar ao local e pegar os ossos do curupira que havia enganado. Deixou passar um bom tempo e depois foi para lá. Viu que os ossos estavam intactos e pensou nas flechas que iria conseguir fazer.

Decidiu começar pelos dentes. Bateu nos molares. Quando percebeu o que estava acontecendo, deu um salto para trás: o curupira estava revivendo. Como não esperava o ocorrido, o caçador até ensaiou uma fuga, mas foi logo sendo interrompido pelo espírito.

— Oh, que sono comprido eu tive. Puxa, meu neto, você ficou esse tempo todo aqui, vigiando meu sono? É bom ter um neto assim. Agora vá buscar um pouco d’água que estou morrendo de sede.

O homem foi até o rio e trouxe uma bilha toda cheia de água. O espírito bebeu com satisfação.

— Peça o que desejar, disse ao caçador.
— Eu vim procurar algo para fazer pontas bem fortes. Preciso dar comida para meus filhos, mas minha flecha é muito fraca.
— Vou lhe dar uma flecha que não erra o alvo nunca nem quebra. Mas é uma flecha única, não existe outra igual.

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Os dois saíram andando pela mata procurando árvore de fazer flecha forte. Finalmente, acharam a árvore.

— Eis sua flecha, meu neto. Mas cuidado. Não revele quem a fez nem de onde foi tirada. Esta flecha é sagrada e não deve ser levada para dentro de casa: deve ficar no oco da árvore. Ela só serve para você. Se outra pessoa usar, ela se transforma numa surucucu e mata a pessoa. Estarei sempre nesta mesma árvore. Quando precisar, venha até mim.

Depois desse dia, a família do caçador não passou mais fome. Todos os dias, ele saía para a caçada e sempre voltava com as mãos repletas de animais de todos os tamanhos.

Naturalmente, isso despertou inveja nos mais jovens caçadores, que não entendiam como um caçador mais velho e sempre panema estava voltando de mãos cheias e eles, vazias.

— Isso só pode ser coisa de feitiçaria, diziam uns.
— Vai ver que ele fez um acordo com anhangá, diziam outros.

Decidiram segui-lo para todas as partes. Vendo-se seguido, o homem foi até a grande árvore do curupira e lá conversou com ele:

— Não se preocupe, meu neto. Homens adultos não podem entrar nos mistérios da feitiçaria. Basta você dar uma volta e eles ficarão perdidos.

E assim aconteceu. Os jovens caçadores sempre perdiam a pista dele. Por isso, decidiram que mandariam dois meninos para segui-lo. E, dessa vez, deu certo, pois os dois eram muito silenciosos e ágeis. Seguiram o caçador para todas as partes até que descobriram qual o segredo: a flecha que ele usava tinha sido feita pelo próprio curupira, por isso era infalível!

Os dois meninos decidiram, então, não contar nada para ninguém e eles mesmos se apossarem da flecha.

No dia seguinte, foram ao local do esconderijo. Pegaram a flecha e foram caçar passarinho. Um dos meninos mirou no pássaro e soltou a flecha. Mas, para sua surpresa, surgiu, à sua frente, uma imensa surucucu que o picou, deixando-o morto no chão. Seu amigo saiu em disparada rumo à aldeia.

— Uma surucucu picou meu amigo; uma surucucu picou meu amigo!

Todos os velhos estranharam a notícia, pois não entendiam como uma cobra tão venenosa estava perto da aldeia. O menino explicou:
— Foi uma flecha que virou surucucu!

Ainda assim, ninguém acreditou na história do menino. Apenas o caçador sabia do que ele estava falando. Foi ao esconderijo e constatou que sua flecha não mais estava lá, ficando triste por muito, mas muito, tempo mesmo, triste e sem vontade de viver.

Glossário

Tucano – Povo indígena que habita o Estado do Amazonas quase na fronteira com a Bolívia. É historicamente identificado como povo das montanhas, tendo imigrado para terras brasileiras posteriormente. Sua filiação é da Família Tucano, que compreende, além da própria língua tucano, outras dez línguas faladas na mesma Região.

Curupira – É gênio tutelar da floresta, que castiga os que a destroem e premia os que a protegem e a respeitam. Pode ser encontrado no Brasil sob outras denominações: caapora, caiçara, entre outros.

Panema – Pessoa sem sorte, azarenta.

Anhangá – Espírito do mal e da maldade.

Contos Indígenas Brasileiros. São Paulo: Global. p. 52–58.

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