Edição 18

Matérias Especiais

Alfabetização – arranque da escolarização

O desejo é de que os participantes de um programa de alfabetização ou de elevação de escolaridade possam desenvolver o máximo de sua capacidade expressiva na cultura letrada e com ela interagir para ampliar suas possibilidades de intervenção no mundo, construindo sua história, inseridos na história da humanidade.

João Francisco de Souza – UFPE

alfabetizacao-01Paulo Freire coordenou, enquanto responsável pela Divisão de Pesquisa, a partir de 1960, no Movimento de Cultura Popular (MCP), uma investigação sobre educação de adultos, especialmente sobre a alfabetização. Iniciou essa pesquisa com a realização de Círculos de Cultura, experiência similiar à vivida no Serviço Social da Indústria (Sesi), com trabalhadores rurais, pescadores e operários. Quis, no MCP, dar continuidade a essa experiência, introduzindo a variável alfabetização, pois, no trabalho anterior, realizado com temas escolhidos pelos próprios trabalhadores com os educadores, constatou que a maioria dos participantes não dominava os mecanismos da leitura, da escrita e dos cálculos da/na cultura letrada. Isso, além de ser uma razão da inibição deles, impedia-os de tomar nota dos debates.

O sucesso dos Círculos de Cultura o levou a pensar na experimentação de um método de alfabetização que, baseando-se na dinâmica dessa experiência, garantisse também a apropriação do domínio da leitura e da escrita alfabéticas pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras (FREIRE, 1967, p. 102-104). Esse processo de alfabetização foi largamente validado em Angicos, Rio Grande do Norte, com apoio do Governo Estadual (LYRA, 1996), através do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco, coordenado pelo próprio Paulo Freire desde o início de 1963.

Em janeiro de 1964, é nomeado coordenador do Programa Nacional de Alfabetização, do Ministério de Educação, no Governo João Goulart. Com o golpe militar, realizado pelos capitais internacional e nacional, através das Forças Armadas Brasileiras, no dia 1º de abril de 1964, o presidente da República é deposto. Paulo Freire e muitos outros brasileiros envolvidos nos programas, à época denominados de Reformas de Base, são presos. Alguns, assassinados; outros, exilados.

Liberto, Paulo Freire é alvo de perseguições contínuas. Essa pressão permanente, com o risco de nova prisão, levou amigos e familiares a convencê-lo a sair do País. Expulso do Brasil como subversivo e como uma ameaça à nacionalidade, é recebido pela embaixada da Bolívia. Vai para La Paz em outubro de 1964, onde permanece apenas um mês. Surpreendido por outro golpe de Estado, transfere-se, em novembro, para Santiago do Chile. Ali se envolve em várias atividades educativas, entre elas o assessoramento a educadores e agrônomos engajados com os processos de reforma agrária. Daí, com a ameaça de mais um golpe, passa pelos Estados Unidos da América, onde leciona na Universidade de Harvard. Em seguida, desloca-se para a Suíça, onde trabalha no Conselho Mundial de Igrejas e de onde assessora várias experiências de educação no mundo inteiro, de modo particular na África.

O crime que o levou a dar tantas voltas e que tanto contribuiu para seu crescimento humano e para sua produção intelectual: ajudar, por meio da educação, inclusive da educação escolar, as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros e, depois, do mundo, a abrirem os olhos, a compreenderem a vida de outro jeito e a se organizarem para torná-la mais agradável e viverem sua boniteza. Tentar tornar o mundo menos feio!

alfabetizacao-02Com a anistia, regressa, radicando-se em São Paulo, de onde continua assessorando inúmeras iniciativas educacionais no mundo e no Brasil. Consolida-se, então, como Educador do Mundo. Em São Paulo, além de professor na Unicamp e na PUC, trabalhou como secretário municipal de Educação da capital paulista, onde veio a falecer em 2 de maio de 1997.

A partir dessas experiências, contribuiu para reinventar a educação no mundo inteiro. Em Pernambuco, Nos Basais. Nas Américas. Nas Áfricas. Nas Europas. Nas Ásias. Educador do mundo!

Desde o início, suas atividades educativas foram permeadas pelas idéias de cultura e de outras relações entre as diversas culturas e, portanto, entre os distintos grupos humanos, mediados pelas diferentes linguagens, com ênfase na linguagem verbal. Sua pesquisa para escolha e organização dos temas a serem debatidos/estudados nos Círculos de Cultura, depois incorporados como dimensão essencial da proposição dos processos de alfabetização e de sua continuidade na escolarização popular, fundamentava-se neste desejo: a conformação de um ser humano cada vez mais humano e uma cultura capaz de garantir as condições dessa humanização. A construção da humanidade do ser humano em suas diferentes feições.

Essa perspectiva já se encontra formulada num documento de 1958, sintetizando a posição de Pernambuco, apresentado no II Congresso Nacional de Educação de Adultos, que se realizou no Rio de Janeiro, por convocação do MEC. Desde então, a insistência na atenção ao contexto, ao entorno, à realidade social, à questão cultural e às condições de existência de uma palavra passa a ser eixo de um trabalho pedagógico que queira contribuir para a construção da humanidade do ser humano e de uma sociedade que mereça o nome de humana. Isso com base na hipótese de que o processo educativo pode ser autêntico, como explicitava Freire naquele documento. Para atingir essa autenticidade, deve-se atentar a todos os aspectos do contexto em que podem acontecer os processos educativos e a todas as dimensões (econômicas, políticas, interpessoais, institucionais, cognitivas e pessoais, entre outras) dos sujeitos (educadores e educandos) envolvidos. Todas as dimensões e os aspectos do ser humano e de sua sociedade. Sem deixar de ser um processo especificamente acadêmico, intelectual, não pode a ele reduzir-se. Mas, para garantir sua especificidade, o processo educativo necessita não só atentar a todas as dimensões do ser humano e de sua sociedade, mas também realizar-se de acordo com as exigências identificadas no contexto histórico-cultural em que acontece. Não se pode, pois, simplesmente, transplantar uma concepção e uma prática pedagógicas de um tempo ou de um contexto a outros, com o argumento de que naquele “deu certo”.

Esse princípio orientador da pesquisa pedagógica e da prática educacional implica um conhecimento crítico, o mais exaustivo possível, das peculiaridades do contexto em que se pretende desenvolver o processo educativo integrado e integral. Essa realidade, sempre histórico-cultural, e, já naquele documento, compreendida como em mudança constante, deve não apenas ser o cenário no qual acontece o processo educativo, como também deve servir para contextualizar os conhecimentos escolares. Ela passa a ser identificada como o conteúdo substantivo dos processos educativos. É ela, “multifacêtica”, o objeto de conhecimento dos processos educativos. Passa a ser conteúdo básico de aprendizagem na experiência de pesquisa educacional desenvolvida no Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife, a partir de 1960, por Paulo Freire. Essa compreensão é incorporada ao método de alfabetização por ele proposto e passa a ser a sua perspectiva para todos e quaisquer processos educativos. O conteúdo básico da aprendizagem é a compreensão, interpretação, explicação e projeção da transformação da existência no sentido de torná-la cada vez mais humana (FREIRE, 1967, 1975, 1992, 1996).

Toda a finalidade acadêmica de quaisquer processos educativos é interpretação, compreensão, explicação e expressão (artística, matemática e verbal) da realidade pessoal, social e da natureza de que o ser humano necessita no seu processo de humanização. Entretanto, nos processos educativos escolares, essa construção tem que ser acompanhada de aquisição e domínio, o mais amplo possível, do código alfabético. A iniciação a esse processo é o que se pode denominar de processos de alfabetização, ainda que não haja consenso sobre o que podem vir a ser esses processos de alfabetização. Neles, tem início toda a trajetória escolar de qualquer ser humano. E não é por causa da verdadeira floresta conceitual e de debates intermináveis e pouco esclarecedores, existentes em torno deles, que se vai deixar de experimentar e avançar na criação de condições para que todos e todas, em todos os quadrantes da pós-modernidade/mundo, tenham acesso ao domínio da escrita e da leitura alfabéticas como forma de interação entre as culturas e o meio de crescimento humano. Afinal, a linguagem verbal é um dos meios de expressão da compreensão que se constrói da existência humana e de suas exigências de humanização.

alfabetizacao-03A polissemia do termo alfabetização apenas nos leva a mais uma necessidade: a de, ao falar ou escrever dos/sobre processos alfabetizadores, precisar o que estamos, por eles, entendendo. Quaisquer que sejam os conteúdos dos processos alfabetizadores, eles não podem deixar de ser iniciação ao domínio dos elementos da cultura escrita alfabeticamente. Há de se explicitar o alcance que atribuímos aos processos alfabetizadores, pois o termo alfabetização começou a adquirir novos usos e a invadir novos campos. Há quem fale, por exemplo, de alfabetização tecnológica; alfabetização computacional; alfabetização científica; alfabetização estética; e até alfabetização verde, vinculada à proteção do meio ambiente natural; alfabetização como início do domínio da codificação/decodificação de palavras escritas alfabeticamente, para o qual dois ou três meses são suficientes. Estamos diante de um verdadeiro pêndulo: ora se amplia demasiadamente a abrangência do termo alfabetização, ora se restringe exageradamente. Torna-se praticamente impossível sua operacionalização.

Para a colombiana Lola Cendales (1994), a alfabetização tem sido questionada na mesma proporção da reinvenção da educação popular. E, por conta dos processos de reinvenção, “se vê interpelada nos aspectos pedagógico-metodológicos e técnicos de seu saber específico; em relação à maneira de entender o político e a formação ideológico-política e à importância que adquire hoje na vida cotidiana, na cultura”. A busca de reconceituação da educação popular teve incidências significativas na reflexão e nas práticas da alfabetização, estimulando e marcando insucessos pelas dificuldades de identificar, por excesso ou por redução do conceito, quando alguém se encontra alfabetizado. Nesse sentido, conclui Cendales:

A alfabetização exige uma reconceituação e uma mudança de estratégia. Em relação a um novo conceito, a redefinição do que é ler e escrever ajuda a situar essas habilidades nos processos de pensamento e nos processos da produção de conhecimentos, superando o puramente instrumental e mecânico da tarefa.

alfabetizacao-04A dificuldade fundamental encontra-se, pois, na construção de uma compreensão do que pode ser, em seus diferentes alcances e níveis, o ler e escrever. Como afirma Rosa Maíra Torres (1994):

Definitivamente, ler e escrever podem ser entendidos de maneiras muito diferentes, que vão desde conhecimentos e habilidades de grandes níveis de complexidade e domínio, que habilitam as pessoas para manejarem em textos diversos e para aprenderem por si mesmas, até conhecimentos e habilidades rudimentares, sobre as quais não se chega a adquirir domínio ou autonomia, próximos ao reconhecimento e à repetição, umas quantas palavras e textos simples, como os que se encontram em silabários, cartilhas de adultos e textos escolares da primeira série. O campo da alfabetização tem estado dominado por uma concepção elementar, rudimentar, de leitura e de escrita. Como é de supor, e o evidenciam os fatos, essa é uma concepção de alfabetização que está na base dos censos nacionais e internacionais sobre o tema. Não é, pois, coincidência que o termo alfabetização se mantenha na indefinição e ambigüidade. Se se fosse discutir o que cada um entende por alfabetização, os consensos provavelmente desapareceriam. Finalmente, de fato, a alfabetização é um tema eminentemente político, no qual se definem posições ideológicas, econômicas e sociais de grande peso.

Essa diversidade de concepções, se do ponto de vista da pesquisa tem levado a vários aprofundamentos, do ponto de vista das políticas educacionais e da operacionalização de programas de alfabetização, tem acarretado graves conseqüências. Magda Soares (1992) afirma que a não-fundamentação das discussões sobre a qualidade da alfabetização — na natureza contínua do alfabetismo e na diversidade de conhecimentos, habilidades e usos nele envolvidos — provocou duas tendências opostas, como acima indicamos, mas, do mesmo modo, perigosas:
a) Pensar a alfabetização por meio de um conceito demasiado amplo (muitas vezes ultrapassando os limites do mundo da escrita).
b) Pensar a alfabetização por meio de um conceito excessivamente restrito (a mera codificação de fonemas e decodificação de grafemas).

São, como reconhece Soares (1992, p. 51-52), igualmente perigosas, porque, “no primeiro caso, a qualidade da alfabetização é constituída de tão numerosos e variados atributos que ela, sendo tudo, torna-se nada; no segundo caso, a qualidade da alfabetização é constituída de tão limitados e modestos atributos que ela, sendo pouco, torna-se também nada”.

Por outro lado, a não-consideração da natureza histórica da alfabetização, é ainda Soares que nos alerta, tem tido como conseqüência a discriminação que acaba ocorrendo entre escolas que servem a classes sociais diferentes ou a regiões diferentes ou a grupos sociais diferentes.

Essas discriminações têm, segundo a autora, duas causas principais:
a) A separação entre alfabetizado e analfabeto é feita em diferentes pontos do continuum, que é o alfabetismo, em função do estrato social a que pertence a criança, da região em que vive ou de outras características (sexo, cor, raça, etc.); o que beneficia uns e penaliza outros, resultando em injusta subescolarização, ou subalfabetização, de certos grupos sociais ou regionais.
b) Essa divisão, marcando um mesmo ponto para todos — o que, da mesma forma, beneficia uns e penaliza outros —, resulta em exclusão, evasão, repetência de certos grupos sociais e regionais, conseqüência de a escola desconhecer as relações entre o contexto em que vivem esses grupos e o acesso à escrita (SOARES, 1992, p. 52).

A partir desses estudos, Magda Soares (1999, p. 76-77) veio a indicar, posteriormente, que Paulo Freire,

… ao afirmar que ser alfabetizado é tornar-se capaz de usar a leitura e a escrita como meio de tomar consciência da realidade e de transformá-la [se tornou] um dos primeiros educadores a realçar esse poder “revolucionário” do letramento (…). Freire concebe o papel do letramento como sendo ou de libertação do homem ou de sua “domesticação”, dependendo do contexto ideológico em que ocorre, e alerta para sua natureza inerentemente política, defendendo que seu principal objetivo deveria ser o de promover a mudança social.

Então, em contextos como o da pós-modernidade/mundo, a busca de conhecimentos, de valores, atitudes e habilidades, numa palavra, competências, só tem sentido se contribuir para a promoção da mudança social. Mas uma mudança social direcionada para a construção da humanidade dos seres humanos. Sem essa perspectiva, a razão de ser de todos e quaisquer processos educativos desaparece. Nessa perspectiva se constituem os conteúdos essenciais de aprendizagem e os conteúdos substantivos dos processos educativos, como acima se indicou. Para expressar esses conteúdos educacionais, a Escola tem de garantir o desenvolvimento dos conteúdos instrumentais ou os instrumentos básicos de aprendizagens (linguagens verbais, linguagens matemáticas, linguagens artísticas), além dos conteúdos operacionais, que são as capacidades de formular projetos para a resolução de problemas identificados a partir dos conteúdos educacionais e instrumentais. Esses (conteúdos básicos, instrumentais e operacionais) são os conteúdos da Educação, e, a fortiori, da educação escolar.

alfabetizacao-05O processo trabalhará seu conteúdo básico: a compreensão da condição humana e das possibilidades de superação de suas limitações culturais, não só para melhor compreendê-la e nela intervir, mas, inclusive, para “criar novas disposições mentais no homem, capazes de inseri-lo melhor em sua contextura histórico-cultural”, como já afirmara Freire, em 1958 (SECRETARIA, 1998, p. 25). A educação social se caracteriza pelo desenvolvimento de uma melhor compreensão da situação do ser humano no contexto e desse mesmo contexto. É, pois, compreender-se, compreender o contexto e nele intervir de forma transformadora, no sentido do crescimento humano da sociedade e do ser humano. Intervir na direção da mudança social a favor das maiorias sociais significa humanizar-se e, portanto, significa também crescer intelectualmente pelo domínio maior dos dispositivos da cultura escrita alfabeticamente, hoje fundamental. É, além disso tudo, desenvolver as riquezas da cultura oral. Esse horizonte conforma e sintetiza as finalidades de todos e quaisquer processos educativos.

Emerge, assim, como tarefa central dos educadores e das educadoras, escolares ou não, no interior dessa percepção, a “dialogação com a nossa realidade ou o nosso contorno social e histórico, quais os objetivos fundamentais do nosso espaço e de nosso tempo. O que mais enfaticamente nos interessa, a nós e à nossa sobrevivência histórica, de povo que vem vivendo a sua promoção de ser colonial em ser nacional” (SECRETARIA, 1998, p. 26). Promoção do ser colonial em ser nacional, no caso do Brasil e de todas as regiões e países que foram se constituindo a partir da primeira globalização, arrancada com o expansionismo europeu do final do século XV e início do XVI.

Qualquer processo educativo com essa população “terá de se fundar na consciência dessas realidades” e “não pode se reduzir a um mero trabalho de alfabetização ou de simples suplementação, o que seria negar a existência daquele primeiro aspecto geral a que nos referimos” (ib: 28). Não pode se reduzir a um mero trabalho de alfabetização ou de simples suplementação. Não se trata apenas, portanto, de gerar uma capacidade mecânica de decodificação ou de expressão na linguagem escrita. Mas, sim, de proporcionar, com a aquisição dos mecanismos da leitura e da escrita no código alfabético, o início da ampliação do desenvolvimento das competências da compreensão, interpretação, explicação, proposição e intervenção das/nas realidades que educadores e educandos, além de estarem nelas inseridos, são responsáveis por sua transformação/construção e seus produtos/produtores.

Estabelece, assim, um princípio pedagógico central, já naquele momento. Princípio que o debate da intermulticulturalidade na educação vem a evidenciar com muita força, confirmando não apenas seu status de princípio educacional, mas elevando-o à condição de uma prática pedagógica que queira ser coerente com a situação de diversidade cultural em que nos encontramos. Numa palavra, autêntica. Portanto, como diria Paulo Freire, se quer essa prática pedagógica ser autêntica no locus em que acontece.

Na elaboração dessas hipóteses, leva-se em conta, de maneira especial, o que nos parece o cerne da proposta pedagógica de Paulo Freire, as probabilidades que podem ter os processos educativos de contribuírem com a construção da humanidade do ser humano, de todos os seres humanos, em todos os quadrantes da pós-modernidade/mundo, em sua integralidade. Então, a característica distintiva de quaisquer atividades que se queiram educativas e a sua qualidade acadêmico-social serão identificadas na contribuição que forem capazes de oferecer para o crescimento humano integral de trabalhadores e trabalhadoras (por conta própria, empregados ou desempregados) como seres humanos, enquanto indivíduos e membros da humanidade. Essa contribuição será validada, especialmente, no desenvolvimento de suas competências intelectuais e na sua inserção na transformação das relações sociais predominantes, que provocam as desigualdades econômico-sociais e as exclusões histórico-culturais (SANTOS, 1995).

Especificamente, temos que trabalhar para que os processos de escolarização de trabalhadores e trabalhadoras — através do que, no Brasil, é legalmente denominado Educação de Jovens e Adultos (EJA), enquanto Ensino Fundamental e Ensino Médio — tenham essa potencialidade.

alfabetizacao-06Suponho que a garantia dessa escolarização, além de ser questão de justiça em relação a amplos setores sociais subalternizados de nossos países, cria um ambiente favorável à escolarização de crianças e adolescentes desses mesmos setores. Essas condições e o envolvimento de trabalhadores e trabalhadoras (por conta própria, empregados ou desempregados) nesses processos podem possibilitar a luta pela efetivação de uma sociedade democrática, na qual se respeitem e promovam os Direitos Humanos de todas as pessoas da pós-modernidade/mundo.

Uma democratização ampla, radical, profunda, consistente e criadora das condições de desenvolvimento da competência humana de todos os seres humanos em todos os quadrantes da Terra se faz mais necessária do que nunca, dados o aprofundamento e as sutilezas das denominações, desigualdades e exclusões atuais, em todas as dimensões do ser humano e das relações sociais. Democratização fundamental, que implica uma democratização cultural; ou melhor, uma nova feição e um novo dinamismo para a cultura, que, por sua vez, não pode se concretizar sem “uma atenção especial aos déficits quantitativos e qualitativos de nossa educação” (FREIRE, 1967, p. 101) escolar que impedem, dificultam ou contribuem para a “criação de uma mentalidade democrática” (ib) se os valores cultivados se colocam nos horizontes que este artigo está a sugerir.

Dessa forma, um programa que se proponha garantir as condições da aquisição do código alfabético pelos setores subalternizados, nos cenários econômicos e políticos, para que escrevam e façam circular — para serem lidos e reescritos — seus pontos de vista, seus valores, suas maneiras de agir e sentir, seus pensamentos, suas frustrações, suas reivindicações, suas perspectivas, seu poder, enfim, seu ser, não pode deixar de examinar, na questão da educação dos setores populares, do ponto de vista da diversidade cultural, especificamente, o problema de sua escolarização.

As gramáticas da cultura escrita e da cultura oral, não sendo completamente diferentes, separadas, são distintas e possuem lógicas diversas (DERYCKE, 1999; ITURRA, 1997; REIS, 1997). A suposição é que os problemas de suas relações serão compreendidos melhor se tratados na perspectiva da interlocução entre diferentes culturas e as possibilidades de seu diálogo. Na verdade, as especificidades da cultura oral relativas à cultura escrita, no interior de uma mesma cultura nacional, se não as fazem duas culturas, permitem-nos identificá-las como traços culturais bem marcados e de difícil diálogo, sobretudo se não estiverem tematizadas as problemáticas de suas relações. Trata-se, no limite, da aquisição dos elementos de uma outra cultura — a cultura letrada — pelos portadores de uma cultura predominantemente oral, ainda que no interior de uma mesma cultura nacional, no entanto, extremamente diversificada, como é o caso do Brasil, entre muitos outros países.

Existem múltiplas e diferentes escritas, bem como diferentes leituras dessas escritas. E os portadores de cultura predominantemente oral denominam várias escritas e leituras. No interior dessa multiplicidade de escritas e leituras, conscientes dessa diversidade, podem, os proponentes de um possível programa de escolarização popular ou dos setores subalternizados de uma sociedade, querer (já que não é objetivo de todos e quaisquer programas de escolarização) garantir aos seus diversos sujeitos o domínio e o desenvolvimento dos usos dos códigos da escrita alfabética e de sua leitura, articulados às características culturais das comunidades, inclusive para uma ampliação de sua cultura em diálogo com outras culturas. Não ignorando os vários tipos de escritas e de leituras, querem, esses promotores, garantir o domínio da escrita e da leitura no/do código alfabético como instrumento e fator de desenvolvimento cultural e humano de seus adquirentes, a partir de suas próprias culturas, sem desvalorizá-las, mas enriquecendo-as. Só nessa perspectiva, me parece, justifica-se um programa de escolarização elaborado e proposto como política de educação escolar para a maioria da população dos países da pós-modernidade/mundo.

Se um determinado programa deseja realizar a aquisição/o domínio dos códigos da leitura e da escrita alfabéticas pelos ágrafos de forma articulada a suas características culturais predominantes, é porque seus proponentes/promotores estão convencidos de que se lê e se escreve de maneira mais rápida, agradável e consistente no código alfabético, a partir de interesses/sentidos da vida real, a partir de universos significativos.

alfabetizacao-07Por isso, um projeto de letramento no código alfabético terá que, necessariamente, considerar três universos culturais básicos, cada um dos quais com suas especificidades, no interior do contexto cultural amplo em que se inserem. Esses universos culturais básicos são expressos através de diferentes saberes, que poderão ser identificados como saberes populares, científicos e midiáticos a serem trabalhados nas escolas.

Há que articular esses saberes de tal maneira que caracterize uma situação de multiculturalidade e interculturalidade, não de mera justaposição de culturas ou que se possa identificar umas como culturas importantes e outras como subalternas e, portanto, sem interesse para os processos de escolarização. Mas culturas que têm que dialogar e interagir na construção de uma nova cultura.

Nessa perspectiva, estamos a desenvolver uma proposta pedagógica no Nupep/UFPE fundamentada na concepção de educação derivada de Paulo Freire, na qual a encaramos como atividade cultural e de desenvolvimento da cultura, tendo em vista a construção da humanidade do ser humano em suas diferentes feições: masculinas, femininas, adultas, infantis, juvenis, idosas, adolescentes, rurais e urbanas, negras, mestiças, brancas, entre tantas outras possíveis identidades.

A hipótese substantiva do seu trabalho é a de que a diversidade cultural pode possibilitar um diálogo inter e intracultural na construção de processos educativos com as camadas populares ou os setores subalternizados das sociedades nacionais e da sociedade mundial que respondam aos desafios da pós-modernidade/mundo. Construção de uma educação escolar que, compreendendo as diversas implicações da diversidade cultural, trabalhe pelo diálogo entre as culturas (interculturalidade) por meio de sua realização na prática pedagógica. Isso virá a contribuir, a partir da experiência da interculturalidade nas instituições educativas, com a construção da multiculturalidade. Nossa aposta é que a multiculturalidade possa vir a ser a característica fundamental de uma sociedade democrática (SOUZA, 2002).

A educação, inclusive a escolar, é encarada como um problema cultural, como uma atividade cultural e um instrumento para o desenvolvimento da cultura, capaz de contribuir com a democratização fundamental da sociedade, da própria cultura, e com o enriquecimento cultural de seus diferentes sujeitos, especialmente dos sujeitos populares.

Nessa perspectiva, reafirmamos, para que não restem dúvidas do que dissemos neste artigo e em vários escritos, que o conteúdo dos processos educativos (conteúdos básicos de aprendizagem ou conteúdos educativos) é a construção da compreensão, da interpretação, da explicação das realidades natural e cultural. Os instrumentos essenciais de aprendizagem (conteúdos instrumentais) serão a expressão das compreensões em construção, por meio das linguagens verbais, artísticas e matemáticas. Os conteúdos operativos serão a elaboração de projetos de transformação social (projetos de intervenção social ou projetos de aperfeiçoamento de intervenções em curso) em âmbitos e alcances os mais diversificados, desde o pessoal ao internacional. Serão garantir aos educandos a competência da palavra, a palavra verdadeira que é transformar o mundo. Como afirma Freire (1974, p. 92-93):

Se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isso, ninguém pode dizer a palavra verdadeiramente sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais.

Assim sendo, “o diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu–tu” (FREIRE, 1974, p. 93). E passa a ser o diálogo o dispositivo de diferenciação pedagógica fundamental.

Do ponto de vista didático, trabalha-se com a idéia de que o sujeito que aprende o faz a partir de estruturas prévias e de uma maneira ativa, de sua cultura singular. Não se põe apenas como receptor de informações. Mas reage e faz suas formulações. Por isso, os processos de aquisição da leitura e da escrita do código alfabético devem levar em conta várias dimensões — a social, a afetiva, a ideológica, a política, a pessoal, a gnosiológica e a pedagógica — na intersecção dos saberes populares, conhecimentos científicos e saberes escolares permeados pelas influências da cultura midiática. Não se pode, portanto, negligenciar os âmbitos socioculturais, especificamente os valores vividos pelo sujeito que vai se apropriar do código alfabético, pois esse só tem sentido se o ajuda a ampliar sua leitura de mundo e da palavra.

alfabetizacao-08A oferta inicial deve coincidir com o nível de desenvolvimento e a mentalidade da comunidade na qual se realizam os processos de aquisição da escrita e da leitura do/no código alfabético. Seja esse nível considerado positivo, negativo, preconceituoso, atrasado ou condensação das visões escolásticas de escola que a própria instituição levou os diferentes segmentos sociais a introjetarem sobre ela própria. Caso contrário, como tem comprovado o fracasso de tantos programas e projetos, não avançaremos nos objetivos explicitados pela Escola quase como exclusividade de sua atuação, sobretudo, para os anos iniciais, mas não só neles. “Com efeito, o locus natural e único para aprendizagem e desenvolvimento do código escrito continua a ser, mesmo nesta sociedade do audiovisual e do imediato, a Escola e, dentro desta, privilegiadamente, a aula de língua materna” (PEREIRA, 2001, p. 99).

Mas se a Escola quer cumprir adequadamente essa tarefa, tem que passar por uma profunda transformação. Há que se reinventar, como propunha eu numa revista em 1990. Na ocasião, eu afirmava que um programa de educação de adultos só teria sucesso se a escola fosse repensada. Acrescentava:

É inútil fazer planos para o adulto analfabeto ou pouco escolarizado se a escola continua distante das crianças, se ela continua sendo uma fábrica de analfabetos. Seria necessária uma transformação radical na/da escola, na formação de professores, para que eles respondessem às exigências do processo alfabetizador. Lamento, porém, uma vez mais, a meta estabelecida (na Constituição brasileira de 1988 e na década de alfabetização da Unesco) será desmoralizada (SOUZA, 1990, p. 20-21).

Não precisava ser adivinho nem profeta para prever isso. Hoje, passados catorze anos, essas afirmações são de uma atualidade meridiana. Ademais, não se pode pensar num programa de alfabetização, inclusive para adultos, sem planejar a continuidade de sua escolarização. O problema não está no fato de o programa ser elaborado para três, quatro, cinco meses ou um ano, mas se está planejada a continuidade do processo de escolarização.

Não se pode, no entanto, confundir oferta inicial com meta a ser conquistada. O desejo é de que os participantes de um programa de alfabetização ou de elevação de escolaridade possam desenvolver o máximo de sua capacidade expressiva na cultura letrada e com ela interagir para ampliar suas possibilidades de intervenção no mundo, construindo sua história, inseridos na história da humanidade.

A aquisição ou ampliação do código alfabético para a escrita e a leitura, nesse contexto, é um problema epistemológico (produção e direcionalidade da produção de conhecimentos), político (implicações em termos de autonomia, denominação, subordinação, opressão, apoderamento e/ou empoderamento [empowerment] dos grupos sociais sem poder e de relações mais amplas de poderes), social (interrelações macro e microculturais em que vivem os sujeitos aprendizes e ensinantes) e pedagógico (a formação humana do sujeito humano no confronto de culturas ou traços culturais diferentes).

A reflexão política pode ser feita sem se falar da aquisição dos códigos alfabéticos; a conscientização se dá em processos de transformação cultural. A politização se faz através da ação organizada, e não das letras. Entretanto, parece poderem as letras contribuir para a compreensão da política e da economia, para a conscientização, bem como para as transformações culturais necessárias, ainda que o potencial político e econômico do domínio da leitura e da escrita do/no código alfabético não esteja evidenciado para a maioria da população mundial acompanhada de suas carências econômicas, políticas, intelectuais e de prestígio social. E mais: até hoje, a maioria dos governos não tem efetivamente investido em sua escolarização. Contudo, no contexto atual, essa escolarização está se revelando, para essas maiorias e mesmo para a configuração pós-modernidade/mundo imprescindível, também uma questão de sobrevivência e de justiça social.

O sistema de significação (significados e sentidos), os processos de sua produção, suas produções e reproduções a serem documentados no código alfabético, sobretudo com as tecnologias mais avançadas das telecomunicações, tornam-se insubstituíveis. É uma questão de sobrevivência do ser humano e de consolidação ou não de seus processos de humanização.

Sem construir os sentidos e significados para suas ações, emoções e pensamentos, o ser humano morre, inclusive fisicamente. E os códigos alfabéticos contribuem para essas construções, além de contribuir para que elas se tornem mais complexas, enriquecê-las e possivelmente ampliar sua competência comunicativa e interacional. Numa palavra, para que se construa sua competência humana.

Por outro lado, não se pode considerar os analfabetos como incultos nem propriamente iletrados e, muito menos, como carentes de sentidos e significados para suas ações, seus pensamentos e suas emoções. São analfabetos. Isto é, não dominam o código alfabético para escrever e ler fluentemente. Conhecem outras escritas, e mesmo a alfabética não lhes é totalmente estranha. A não ser determinados e delimitados grupos sociais em comunidades totalmente isoladas de uma outra nação.

Nesse sentido, o trabalho do Nupep/UFPE pode, também, contribuir para potencializar e concretizar a criação da cultura do sucesso escolar para os setores populares a partir do atual debate sobre o multiculturalismo e as possibilidades da interculturalidade.

alfabetizacao-09É possível que a Escola ainda não tenha conseguido ter êxito, em termos de garantir o domínio do código alfabético aos/pelos setores subalternizados da população mundial, por ter considerado de forma insuficiente a questão cultural, especificamente as diferenças entre a cultura oral e a cultura escrita na realização das atividades pedagógicas escolares, inclusive no âmbito de uma mesma cultura nacional.

É preciso, pois, que a Escola se coloque na perspectiva da educação como processos e experiências de ressocialização das culturas e dos seres humanos nas várias feições que vão adquirindo de acordo com os diferentes recortes de suas situações e condições interpessoais, pessoais, comunitárias, nacionais e internacionais, em resposta às socializações que vivemos nas situações afetivas. Os resultados das socializações se encrustram em nosso inconsciente; para enriquecê-los, é necessário seu questionamento, através das ressocializações, a fim de nos tornar inter/multiculturais críticos. Democráticos. Humanos.

Na prática, à nossa práxis pedagógica e ao nosso material didático se coloca um duplo desafio: o da formação contínua do educador e o da provocação ao educando, para que superem sua visão escolástica de Escola. Deseja-se realizar esses processos através de um material que exige revisão/formação contínua do educador. E uma interação dialogante com o educando e suscitadora de sua curiosidade epistemológica. Ademais de um sentido para professores e alunos.

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