Edição 40

Lá Vem a História

Bonsucesso dos pretos

No interior do Maranhão, tem uma vila que se chama Bonsucesso. Ninguém, porém, a chama assim. Todos dizem Bonsucesso dos Pretos. Por quê? Vou contar.

Há longo tempo, debaixo da escravidão, uma moleca desagradou ao senhor. Não sei o nome dela. Vamos chamá-la de Felipa, um nome que se usava muito antigamente.
Gozado essa coisa de nome… No tempo do Onça, por aqui ninguém se chamava Simone,
Mônica, Karem ou Roberta. Era Felipa, Anacleta, Jacinta, Jovina…
Aborrecido, o senhor usou seu triste direito de castigar. Mandou levarem Felipa à floresta.
Fosse amarrada num pé de pau, até morrer de fome e sede. Isso se as onças e cobras não fizessem o serviço primeiro.
A mãe da escravinha se ajoelhou aos pés do dono:
— Perdoe, perdoe… — gemia. — Eu prometo
ser sua escrava para o resto da minha vida.
— Escrava você já é — respondeu ele. — Não prometa o que não pode cumprir. Levante daí.
A própria esposa dele se meteu:
— Perdoa dessa vez. Dá outro castigo. No mato, ela morre.
— É pra morrer. Você é mulher, mas pode entender uma coisa: estamos cercados de escravos.
Se não formos duros, eles não nos respeitam.
Se não nos respeitam, estamos fritos. De brancos aqui só temos eu, você e o padre. Já pensou? É negro para todo lado.
Pois o padre também pediu:
— Faça como Nosso Senhor. Perdoe.
O dono fitou a batina com desprezo:
— Nosso Senhor não viveu aqui, no meio dessa gente. Cuide das suas orações, que é melhor.

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O feitor passou a corda nos pulsos de Felipa.
E saiu com ela. Andou, andou, até achar uma clareira:
— Aqui está bom. Já verás, negra do diabo.
Passada uma semana, o dono chamou o feitor:
— Vá ver a negrinha. Confirme se já morreu.
O malvado viu os urubus e pensou: “O serviço acabou”.
Qual! Felipa continuava amarradinha. Mas inteira. Ao seu lado, uma gamela de frutas e outra de água.
— Quem te deu isso? — foi gritando.
— Minha madrinha.
— E tu lá tem madrinha? — e chutou de novo.
— Vá lá ver.
Outra vez, o feitor achou as gamelas. Dessa vez com favos de mel. Chutou tudo, como da primeira vez. Rogou uma praga:
— Que este moleque que te protege o carregue o demo!
— Não foi moleque — respondeu Felipa. — Foi minha madrinha.
O dono deixou passar um mês:
— Vá buscar o esqueleto.
Felipa estava melhor do que antes. Gordinha.
O dono não acreditou:
— Você não está me mentindo? Traga a sujeita aqui, ou vai você pro tronco.
Quando o feitor chegou, Felipa já estava solta.
Achou estranho. Bateu o mato. Se houvesse alguém, ele achava. Nada. Botou Felipa na frente e veio pra fazenda. Imaginem a surpresa do povo quando cruzaram o terreiro. Na presença do amo, Felipa não baixou os olhos.
— Se você tem parte com o capeta, vá dizendo
— ordenou ele. — Quem te deu comida e água?
— Minha madrinha.
— Faz de conta que eu acredito. Quem é tua madrinha?
— O senhor mande ver.

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— Vamos fazer o seguinte. O feitor volta lá contigo. Se encontrar essa tua madrinha, você está livre. Se não…
O feitor afiou o facão, e lá foram. No lugar em que Felipa ficou amarrada, estava agora uma Nossassenhorazinha de dois palmos de altura.
Desconfiado, o feitor enganchou a imagem nas costas e lá veio.
— Como prometi – falou o senhor –, você está livre.
Puseram a santinha numa capela com altarde madeira lavrada. No outro dia, quando foram ver, cadê ela? O senhor apertou Felipa.
— Mande ver no pé de pau onde o senhor me prendeu.

Trouxeram a imagem de volta. No outro dia, ela voltou pro mato. E assim diversas vezes. Na décima vez, o senhor trancou a imagem num cofre de ferro que comprou em São Luís. Era do Reino, que pra ele o ferro da terra não valia nada.

A violência atraiu desgraças. Uma cobra mordeu o feitor e ele bateu as botas. Deu praga no algodoal e se perdeu tudo. A senhora teve erisipela e ficou com perna de elefante. Cosme, o quilombola, passou por perto da fazenda, e vinte escravos fugiram pra se encontrar com ele.
(Bom, esta última coisa foi desgraça somente pro senhor. Pros que fugiram, foi felicidade.)

O padre, que estava ali pra impedir desgraças, deu um conselho: botasse a imagem num prato, largasse no rio. Onde ela parasse, é que ela queria ficar. A senhora obrigou o marido a fazer promessas: se ficasse boa, libertava dez escravos. Pelo rio abaixo, a Nossassenhorazinha parou onde é hoje Bonsucesso dos Pretos, porque ali vivem, até hoje, os descendentes do povo de Felipa.

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Fonte: SANTOS, Joel Rufino dos. Gosto de África: histórias de lá e daqui. P. 27; 29, 31 e 32. São Paulo: Globo, 2005

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