Edição 57

Matérias Especiais

Brasil afro-indígena

Emerson Santana

“Falar é poder usar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de uma ou outra língua, mas é, sobretudo, assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização.”
Frantz Fanon

A Lei nº 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afrodescendente nos ensinos Fundamental e Médio, foi modificada pela Lei nº 11.645/08, que inseriu também ao novo ensino brasileiro a história e a cultura indígenas. Tentou-se, com isso, esclarecer e promover um novo olhar sobre duas vertentes da formação da sociedade brasileira, em todos os seus aspectos, principalmente o comportamental, e, por meio deste, interferir na sociedade como um todo. Trazendo em evidência esses dois universos culturais, mesmo que pareça estranho, pode-se afirmar que indígenas e negros, como a maioria das civilizações, estão ligados pela mesma raiz de formação humana.

A mais marcante das singularidades africanas é o fato de seus povos autóctones terem sido os progenitores de todas as populações humanas do planeta, o que faz do continente africano o berço único da nossa espécie. Os dados científicos, que corroboram tanto as análises do DNA mitocondrial quanto os achados paleoantropológicos, apontam constantemente nesse sentido (MOORE, 2008, p. 161).

Moore também explica que esse DNA é um minúsculo DNA humano que está presente no citoplasma e que ele tem muitas características genéticas semelhantes e parte unicamente de uma herança materna. Por isso, todo DNA mitocondrial de uma pessoa vem de sua mãe, sem nenhuma participação paterna. Então, essas duas culturas distintas que estudaremos com a implementação da Lei nº 11.645/08 estarão unidas em alguns aspectos, sobretudo em aspectos humanos. O Brasil não é apenas África por conta dos navios negreiros que aportaram aqui trazendo mãos livres para se tornarem mãos escravas; é África porque fazemos parte, geneticamente, de um mesmo povo, que deu origem a todos os povos, não a raças, pois a ideia de raça diante desse contexto é algo muito recente e etnocêntrico.

Muito se tem ainda a fazer, pois essas duas culturas, até pouco tempo, eram passadas oralmente. Embora a africana e a afrodescendente já venham, há alguns anos, por meio da literatura, contando sua história, esta foi, em grande parte, contada pelos não africanos, como também a indígena, que faz muitos ainda se surpreenderem quando descobrem que os indígenas pensam e escrevem.

Os professores de Arte, História e Literatura terão grande parte da responsabilidade de transmitir tais conhecimentos; segundo a lei, caberá a essas disciplinas a contribuição para o resgate dessa identidade, que passou anos sendo falsificada pelos livros didáticos de todas as instituições de ensino, nos quais negros e indígenas eram apenas lembrados com uma data marcada no calendário. É uma mancha para a história de formação de um povo como o povo brasileiro sabermos que fomos gerados quase unicamente de um povo roubado, como os indígenas, e de outro sequestrado de suas terras e, por isso, sem terra, como os africanos, mas uma mancha que enriqueceu nossa formação e construiu uma cultura tão híbrida como é a nossa.

A implementação da lei com as escolas que não trabalham mais aquela educação fechada, despreocupada com os valores morais, será realmente o novo caminho da aprendizagem. Muitas instituições já estão preocupadas com a formação de caráter, valor e ética; os alunos já não são meros espectadores de informação; o papel que antes era da família hoje é da escola. Então, é nessa escola que esses alunos têm que aprender de onde vieram e conhecer suas heranças culturais e genéticas, descobrindo como devem lidar com a nova história que lhes é contada, sem o pano de fundo etnocêntrico do ocidente.

A declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas é clara quando diz, no artigo 15, que os povos indígenas têm direito a que a dignidade e diversidade de suas culturas, tradições, histórias e aspirações fiquem devidamente refletidas na educação pública e nos meios de informação pública, mas, infelizmente, isso não tem acontecido porque muitas instituições têm se esquivado de tais responsabilidades e pela falta de preparo de muitos educadores para os quais a questão dos estudos africanos e afrodescendentes, como questões indígenas, não passam de puro modismo e inovação. Com isso, permanece a ideia coletiva do homem negro como indolente, mas, ao mesmo tempo, mais forte do que os outros, o que teria sido a causa de sua escolha para a escravidão. Confundido com a malandragem no passado, está associado à criminalidade nos dias de hoje, avalia a educadora Renata Felinto, coordenadora do Núcleo de Educação do Museu AfroBrasil.

Muito do que foi dito dos negros e dos indígenas no passado ainda faz parte do pensamento da sociedade atual, que concebeu como verdade o pensamento do invasor e dos escravocratas. Mas estamos no início de um novo descobrimento, e o novo descobrimento não está mais sob o olhar de um invasor, mas de nós para nós mesmos, porque, sem conhecer a nossa identidade, não poderemos ser uma civilização e, muito menos, uma nação. Não sabemos ainda aceitar esse Brasil tão diferenciado, esse povo tão miscigenado, que muda de aspecto de região para região. A obrigatoriedade desses estudos não deve ser restrita unicamente aos ensinos Fundamental e Médio. É necessário levar esses estudos para a sala de aula bem antes de eles (os alunos) perceberem o que é o racismo, quando estiverem construindo seu caráter coletivo por meio do relacionamento com outros alunos e, a partir dele, o seu individual. Mas, para que isso venha a acontecer, os valores éticos e morais precisam ser esclarecidos: quando o aluno da Educação Infantil achar um amigo estranho simplesmente porque é negro ou indígena, é porque já tem a ideia preconcebida que foi vendida.

Muitos profissionais não sabem que existem cursos organizados voltados para essa área, e muitos desconhecem os estudos de literatura africana em Língua Portuguesa e os estudos indígenas e questionam o que fazem esses profissionais. A Lei nº 11.645/08 só entrará em vigor realmente quando percebermos a importância e as mudanças que ela trará à educação de base, quando tais questões passarem e a ser discutidas em sala de aula, mas é mister que o educador se sinta também como parte dessa história, aceitando a sua própria miscigenação.

Se essa lei não entrar em vigor dentro do comportamento dos educadores e da sociedade, ela será falha como muitas leis que já foram aprovadas no decorrer de nossa história. A luta para aceitação dos estudos africanos e indígenas não pode simplesmente se resumir a encontros em congressos ou movimentos que apenas levantam a bandeira e gritam que são indígenas ou negros. Ser negro ou indígena vai muito mais além da cor, da roupa, da música ou da culinária. Ser negro ou indígena é trazer, na memória e no sangue, as batalhas travadas para se poder existir em um país que discrimina aqueles que escreveram a história e deram a vida para serem eles mesmos, lutaram para ter uma identidade só sua, para que não fosse roubada sua alma, já que suas terras e seus povos já haviam sido dizimados e a sua voz já havia sido silenciada.

Os estudos africanos e indígenas devem ser obrigatórios dentro das instituições de ensino, como ratifica a lei, pois são a única maneira de tentarmos trazer ao povo brasileiro uma identidade coletiva, através da qual todos se olhem e se vejam no outro sem estranhamento e sem preconceito. Infelizmente, vivemos em um país onde é necessário existirem leis para que a conscientização do povo avance.

Se estamos prontos para essa nova mudança no ensino e no olhar de nós para nós mesmos, ainda não sabemos. Mas se espera que esses estudos levantem discussões que possam levar a revelações e descobertas sobre esses povos que fazem parte de toda a nossa formação. Contudo, o interesse maior é que os estudos africanos e indígenas surtam efeitos na geração atual; que, no futuro, a história seja contada de forma verdadeira e digna; que afrodescendentes e indígenas sejam vistos como iguais e não seja necessário criar leis para dar direitos àqueles cujas histórias fazem parte de todos os capítulos da construção do povo brasileiro.

Emerson Santana é formado em Letras e possui especialização em Literatura Africana em Língua Portuguesa.

 

Referência Bibliográfica

MOORE, Carlos. A África que incomoda (sobre a problematização do legado africano no quotidiano brasileiro). Belo Horizonte: Nandyala, 2008. (Coleção Repensando África Volume 1).
Revista Educação. ano 13. n. 155. São Paulo: Segmento.

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