Edição 80

Matérias Especiais

Campanha da Fraternidade 2015 Texto-Base

 

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Introdução

1. A Igreja recebeu de Jesus Cristo o mandato missionário: “Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado” (Mt 28.19-20a). Essa é a sua vocação e a sua missão1.

2. O tema da Campanha da Fraternidade 2015, Fraternidade: Igreja e Sociedade, deseja no tempo da Quaresma recordar a vocação e a missão de todo cristão, das nossas comunidades de fé.

3. As pessoas que vivem do Evangelho vivem na sociedade. Esta é formada por pessoas que convivem de forma organizada e, segundo a palavra latina societas, pode significar associação amistosa com outros.

4. A palavra sociedade indica uma convivência e atividade conjunta de pessoas, ordenada ou organizada. A sociedade é um coletivo de cidadãos com leis e normas de conduta, organizados por critérios e com entidades que cuidam do bem-estar daqueles que nela convivem.

5. Na sociedade, no comum a todos, acontece a exclusão e a não participação de pessoas que a compõem: viver à margem dela. O que, no entanto, caracteriza a sociedade é a partilha de interesses entre os membros e a preocupação com o que é comum.

6. O Concílio Ecumênico Vaticano II recordou que “[…] para cumprir a vontade do Pai, Cristo inaugurou na terra o Reino dos Céus, revelou-nos Seu mistério e por Sua obediência realizou a redenção. A Igreja, ou o Reino de Deus, já presente em mistério pelo poder de Deus, cresce visivelmente no mundo”2. “O Senhor Jesus iniciou a Sua Igreja pregando a boa-nova, isto é, o advento do Reino de Deus […]. Este Reino manifestou-se lucidamente aos homens na palavra, nas obras e na presença de Cristo.”3

7. A Igreja, pelas “[…] línguas como de fogo que repartiram e pousaram sobre cada um deles” (At 2.3), formou a “Comunidade dos Santos”, a comunidade — como diz o Concílio Ecumênico Vaticano II — congregada daqueles que, crendo, voltam seu olhar a Jesus, Autor da Salvação e Princípio da Unidade”4. Igreja, comunidade de comunidades! Igreja, os filhos e as filhas de Deus que vivem da morte e ressurreição de Jesus, o novo Reino.

8. Ela “[…] entra na história dos homens, enquanto simultaneamente transcende os tempos e os limites dos povos”5. Igreja, presente na realidade da humanidade; Igreja, os que creem vivendo “[…] no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas”6. Uma Igreja ativa na sociedade. Os que são Igreja, os filhos e as filhas, são parte da sociedade, vivem a sua fé na sociedade. Testemunham os valores e deixam-se guiar pelos critérios do Evangelho.

9. Nesse sentido, a comunidade dos fiéis, os cristãos, é uma Igreja “em saída”. Sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro das pessoas, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive o desejo de oferecer misericórdia. Como Jesus, que lavou os pés dos Seus discípulos, pondo-se de joelhos diante dos outros para lavar os pés, assim o cristão vai ao encontro das pessoas acolhendo-as nas dores e nos sofrimentos. Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária das pessoas, encurta as distâncias, abaixa-se e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo7. Ela busca o contato com as famílias e com a vida do povo. Não deveria tornar-se uma estrutura complicada, separada das pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para si mesmos.

10. As comunidades de base e pequenas comunidades, os movimentos e as outras formas de associação são uma riqueza da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os ambientes e setores8.

11. A missão da Igreja de evangelizar passa pela caridade. A caridade é anúncio. “Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, ‘àqueles que não têm com que retribuir’ (Lc 14.14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem essa mensagem claríssima. Hoje e sempre, ‘os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho’, e a evangelização dirigida gratuitamente é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos!”9

12. Os cristãos são presença do Evangelho na sociedade. A Igreja reconhece a laicidade do Estado. Sabe e afirma que, como comunidade de fiéis, participa ativamente da sociedade, dela faz parte e participa de sua construção justa, fraterna e solidária, preservando-a de ser excludente.

13. Para a realização da Campanha da Fraternidade deste ano, Fraternidade: Igreja e Sociedade, são propostos os seguintes objetivos:

Objetivo geral

Aprofundar, à luz do Evangelho, o diálogo e a colaboração entre a Igreja e a sociedade, propostos pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, como serviço ao povo brasileiro, para a edificação do Reino de Deus.

Objetivos específicos

Fazer a memória do caminho percorrido pela Igreja com a sociedade; identificar e compreender os principais desafios da situação atual.

Apresentar os valores espirituais do Reino de Deus e da Doutrina Social da Igreja como elementos autenticamente humanizantes.

Identificar as questões desafiadoras na evangelização da sociedade e estabelecer parâmetros e indicadores para a ação pastoral.

Aprofundar a compreensão da dignidade da pessoa, da integridade da criação, da cultura da paz, do espírito e do diálogo inter-religioso e intelectual para superar as relações desumanas e violentas.

Buscar novos métodos, novas atitudes e novas linguagens na missão da Igreja de Cristo de levar a Boa-Nova a cada pessoa, família e sociedade.

Atuar profeticamente, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, para o desenvolvimento integral da pessoa e na construção de uma sociedade justa e solidária.

PRIMEIRA PARTE

1 Breve histórico das relações Igreja e sociedade no Brasil

1.1 Das origens à cristandade

Os tópicos a seguir foram selecionados e estão dispostos de acordo com a sequência numérica encontrada, originalmente, no Texto-base. Para obter todo o material da CF 2015 na íntegra, acesse http://www.edicoescnbb.com.br/loja/catalogo-302647-3-campanhas.

14. As origens do cristianismo estão radicadas na vida, pregação, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Ele assumiu e viveu a cultura de Seu povo, participando ativamente dos problemas daquela sociedade. Os discípulos de Jesus viam n’Ele a realização das expectativas messiânicas presentes na fé e tradição do povo de Israel. As primeiras comunidades cristãs sofreram e foram perseguidas, mas o exemplo dos mártires as tornava ainda mais unidas. O cristianismo fortalecido por esse testemunho cresceu e se espalhou pelo mundo daquela época.

1.2 A cristandade lusitana

20. A missão da Igreja durante o povoamento do Brasil não ficou estrita aos missionários clássicos. Os cristãos leigos e as cristãs leigas também exerceram um importante papel evangelizador. Por exemplo, as confrarias leigas — as mucamas e as donas de casa, os músicos e os cantadores populares, e, ainda, os ermitães e os denominados irmãos, beatos e beatas, quilombolas. A ação dessas pessoas contribuiu na formação do catolicismo vivido pela grande maioria do povo brasileiro10.

2 A sociedade brasileira atual e seus desafios

38. Na sociedade brasileira, as mudanças são tão profundas e constantes a ponto de se vislumbrar uma verdadeira mudança de época11. É uma situação geradora de crises e angústias na vida pessoal, nas instituições e nas várias dimensões da sociedade. As mudanças indicam também oportunidade de uma vida cristã mais intensa e atuante.

2.1 A demografia

41. O perfil demográfico da população vem mudando. De um lado, há uma diminuição do número de crianças, e, de outro, existe um aumento de idosos. Esse fator pode cooperar para o desenvolvimento da sociedade, mas tem implicações preocupantes. O custo do cuidado com os idosos, hoje absorvido pelas famílias, sobretudo pelas mulheres, tende a aumentar. Manter esse modelo será difícil, com a progressiva redução do tamanho das famílias e a transformação social do papel feminino.12

42. A redução de crianças e adolescentes, que poderia facilitar a gestão do sistema educacional, ainda não proporcionou melhorias significativas. Os índices verificados nessa área estratégica são baixos, comprometendo o futuro da nação. Na sociedade do saber, a falta de qualificação profissional adequada é severamente punida com a exclusão dos postos de trabalhos mais dignos.

3 O serviço da Igreja à sociedade brasileira

3.1 O serviço das comunidades católicas na sociedade

59. A Igreja Católica tem como missão o serviço à sociedade em favor do bem integral da pessoa humana13. A mensagem do Evangelho exige dos cristãos o direito e o dever de participar da vida da sociedade14. Daí a importância do diálogo cooperativo, fraterno e enriquecedor com a realidade social e as instâncias representativas da ordem social.

60. O modo contundente como a Igreja dialoga com a sociedade em geral é o serviço cooperativo a favor da verdade, da justiça e da fraternidade em vista do bem comum. A Igreja conta com a parceria de instituições e organizações sociais, bem como de homens e mulheres de boa vontade, unindo forças para a erradicação de injustiças e construção de uma sociedade que propicie a vida.

61. A Igreja Católica está presente em todo o território brasileiro, participando e servindo, em vários âmbitos e por distintas formas, a sociedade brasileira. As dioceses e paróquias, como autênticas comunidades de fé, unem pessoas. E contribuem para a edificação da sociedade brasileira por meio de vários serviços e obras diversificadas, que expressam a solicitude social da Igreja e a fraternidade, especialmente para com os mais necessitados.

3.2 A solicitude da Igreja na assistência aos mais necessitados

64. A história da sociedade brasileira traz as marcas do serviço da Igreja aos mais necessitados. Em épocas de inexistência de políticas sociais promovidas pelo Estado, a evangelização suscitou iniciativas e associações para educar as crianças, suprir a fome, atender os doentes, prover lar para crianças abandonadas e lugar seguro para idosos, como as já evocadas Santas Casas de Misericórdia, as Conferências Vicentinas, os orfanatos, os colégios, as clínicas, os hospitais, etc. A assistência também ocorreu por meio de pastorais que tradicionalmente servem aos enfermos e às famílias necessitadas.

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3.3 A solicitude da Igreja por meio de pastorais sociais

66. A espiritualidade cristã fomentou a ajuda aos necessitados, marcando a sociedade e a própria história da assistência social e da promoção humana no Brasil, desde o início do povoamento europeu no País.

67. A Igreja Católica exerce sua solicitude social por meio de vários organismos. Com esses serviços, a Igreja procura transformar efetivamente a sociedade brasileira pela incidência das ações das pastorais sociais. Lembramos a pastoral do idoso, carcerária, da saúde, do menor, dos pescadores, do povo de rua, entre outras. Elas expressam a solicitude e o cuidado de toda a Igreja nas situações de marginalização, exclusão e injustiça.

68. As pastorais sociais atuam em diversos âmbitos da vida social. No mundo rural: a questão agrária, os territórios dos povos tradicionais, a produção agrícola familiar e a preservação das riquezas naturais. No meio urbano: os moradores de rua, as mulheres marginalizadas, o solo urbano e o mundo do trabalho. Com as minorias: povos indígenas, quilombolas, afrodescendentes, pescadores, ciganos e migrantes.

3.4. A Igreja Católica e o contexto religioso da sociedade brasileira

72. Na sociedade brasileira atual, a compreensão da fé e suas práticas passam por grandes mudanças. Muitas pessoas não valorizam mais a pertença de determinada religião, de forma ativa e sistemática. A participação religiosa, nessa concepção, fica condicionada aos interesses pessoais no seio de uma sociedade competitiva e individualista. A busca por curas e prosperidade suscitou o crescimento de grupos religiosos, com promessas para solucionar as demandas das pessoas15.

73. Nesse contexto de religiosidade individualista, é oportuno lembrar o alerta do Papa Francisco acerca do “mundialismo espiritual”. Com essa advertência, o Papa alude a práticas dentro da Igreja baseadas na busca da autossatisfação, na perda do sentido comunitário e do projeto de Jesus. Uma fé subjetivista fechada em seus próprios raciocínios ou um “elitismo narcisista e autoritário” de quem se sente superior ao cumprir certas normas eclesiásticas ou sendo fiel a um estilo do passado16. A religiosidade, quando assume esses traços, apresenta resistência a apelos em prol de ações pela edificação de uma sociedade justa e fraterna.

3.5 O ecumenismo

77. A origem da palavra ecumenismo evoca casa (oikos) e significa a busca da convivência pacífica sob o mesmo teto. O ecumenismo fortalece a busca de uma atuação conjunta em ações sociais inspiradas no amor ao próximo, bem como a colaboração na educação para a paz e em ações que visem o bem-estar físico, moral e espiritual do povo e o bem comum da sociedade17.

78. A Igreja no Brasil desenvolve ações ecumênicas integrando o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic), incentivando os discípulos e as discípulas missionários a desenvolverem atividades mais intensas na Semana Nacional de Oração pela Unidade dos Cristãos e na realização da Campanha da Fraternidade Ecumênica. Algumas comunidades mantêm estreitas relações com outras confissões cristãs, especialmente as tradicionais.

79. Além do ecumenismo, que se refere ao diálogo com as Igrejas cristãs, a Igreja promove, em todo o mundo, o diálogo inter-religioso. Deus, em sua bondade e por meios que só Ele conhece, acolhe as pessoas que o buscam nas mais diferentes religiões, consideradas como “[…] respostas aos profundos enigmas para a condição humana”18. Exortando os fiéis ao diálogo sincero com os membros das grandes religiões, sobretudo o judaísmo, o islamismo, o budismo e o hinduísmo, a Igreja Católica afirma que “[…] nada rejeita do que há de verdade e santo nessas religiões”19.

4 Igreja-sociedade: convergências e divergências

4.1 O pluralismo

80. A sociedade brasileira apresenta uma pluralidade cultural com sua matriz étnica de origem europeia, africana e indígena. Para o pluralismo, também cooperou a vinda de muitos imigrantes europeus e asiáticos, ao longo dos séculos XIX e XX, além das grandes migrações internas. E, com o desenvolvimento dos meios de comunicação e transportes, a sociedade brasileira inseriu-se ainda mais no mundo globalizado.

82. O pluralismo pode trazer benefícios ao conceder mais liberdade às pessoas. Por outro lado, a perda ou a relativização de referências culturais pode gerar fragmentação e desorientação em todas as dimensões da existência20.

84. A Igreja Católica, nesse ambiente plural da sociedade, busca participar ativamente dos debates das questões mais relevantes. Por meio da CNBB, ela apresenta seus pontos de vista com notas e pronunciamentos à sociedade, acolhe grupos dos mais diversos segmentos para ouvir opiniões contraditórias e integra movimentos com representantes de diversas instituições. Questões relativas à defesa da vida, tocando em temas como os do aborto, da eutanásia, da manipulação de embriões, são acompanhadas e articuladas pelos membros da Comissão para a Vida. Esse procedimento também ocorre em dioceses e paróquias.

4.5 O laicismo e a laicidade

98. A partir do século XVIII, com a progressiva constituição dos estados modernos e da modernidade, foi se consolidando e institucionalizando o conceito de laicidade como algo inerente ao Estado Democrático de Direito21. A doutrina da laicidade propõe ao Estado não optar por uma religião oficial, para se constituir com o perfil laico e não religioso confessional, e resguardar o governo e a sociedade de possíveis fundamentalismos religiosos.

99. Com a doutrina da laicidade quer-se a constituição de um Estado sem interferência de uma religião específica, para garantir a liberdade religiosa e o sadio pluralismo. Esse conceito nem sempre foi bem compreendido por certos grupos políticos ou religiosos, gerando enormes resistências que desfiguram a proposta da laicidade do Estado, como o laicismo, uma ideologia antirreligiosa militante.

100. O laicismo na sociedade brasileira, por exemplo, hostiliza qualquer forma de relevância política da fé e procura desqualificar o empenho social e político das religiões. Não cabe às Igrejas e a qualquer outra instituição religiosa definir e determinar os destinos da sociedade, como apregoa a doutrina. Mas o direito de manifestação e intervenção, com a exposição de suas doutrinas e seus posicionamentos éticos, em favor da dignidade humana e da justiça social22.

101. A Igreja reconhece a laicidade, não tem pretensões de influir no poder para impor suas ideias e doutrinas. Por isso, não tem partido nem apoia nenhum partido. Sua participação na sociedade se caracteriza pelo fomento de valores em prol da vida, da dignidade das pessoas e do bem comum, a partir de Jesus Cristo. É o seu modo de servir. Ela repudia com veemência a proposição do laicismo, pelo preconceito contra a religião, em particular contra o catolicismo, e a incompreensão das raízes religiosas presentes na história e no povo brasileiro. A atuação do cristão na política é uma das exigências de sua missão de testemunhar o Evangelho na vida.

SEGUNDA PARTE

1 A relação Igreja-sociedade à luz da Palavra de Deus

112. As Sagradas Escrituras revelam que Deus é um criador amoroso. Ele viu que toda a realidade criada é boa em si mesma e desejou que o mundo fosse um lugar de harmonia e paz (cf. Gn 1.31).

113. Na história humana, o afastamento de Deus e a escolha pelo mal são os pecados que causaram um profundo desequilíbrio no interior dos seres humanos e na própria natureza criada (cf. Gn 3.14-17). Morte, violência, guerras, conflitos, mentiras e sofrimentos são consequências da desarmonia gerada pela opção humana (cf. Gn 4.10-14).

114. As Escrituras testemunham a fidelidade de Deus e Seu amor pelos seres humanos, com Suas intervenções na história e propostas de aliança com os homens e as mulheres. Chamou Abraão e lhe fez uma promessa que se estendia à sua descendência: “[…] Em ti serão abençoadas todas as famílias da terra” (Gn 12.3).

1.4 Jesus e a lógica do serviço

133. Jesus usou sua autoridade para servir. O serviço, assumido como lema na Campanha da Fraternidade deste ano: Eu vim para servir (cf. Mc 10.45) foi a resposta de Jesus quando os discípulos não compreenderam o que Ele anunciava, a ponto de se interrogarem sobre quem seria o maior entre eles (cf. Mc 9.32-34). Tiago e João lutaram pelos primeiros lugares e os outros dez se encheram de ciúmes (cf. Mc 10.35-37). Essa foi uma ocasião propícia para Jesus oferecer uma verdadeira catequese acerca do poder como serviço (cf. Mc 8.34-35; 9.35-37). “Jesus então os chamou e disse-lhes: Sabeis que os que são considerados chefes das nações as dominam, e os seus grandes fazem sentir seu poder. Entre vós não deve ser assim. Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro entre vós seja o escravo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos” (Mc 10.42-45).

2.3 Opção pelo ser humano e preferencialmente pelos pobres

161. O Concílio Ecumênico Vaticano II indicou o caminho de servir a Deus servindo o ser humano. Cada homem, cada mulher é amado e amada por Deus até o fim, até a morte de Seu próprio Filho na cruz. É por isso que, na ação evangelizadora, a Igreja opta pelo ser humano como seu caminho23. Daí seu interesse e engajamento na defesa da dignidade e dos Direitos Humanos.

3 A relação Igreja-sociedade à luz da doutrina social

3.1 A pessoa humana, a sociedade e a subsidiariedade

175. A pessoa humana vive na sociedade. Esta não lhe é algo acessório, mas uma exigência da sua natureza. Graças ao contrato com os demais, ao serviço mútuo e ao diálogo com os seus irmãos e suas irmãs, a pessoa desenvolve as suas capacidades e, assim, responde à sua vocação.

176. Para a Igreja, a sociedade é como um conjunto de pessoas vivendo de modo orgânico. Ela é uma espécie de “assembleia” ao mesmo tempo visível e espiritual. É uma sociedade que perdura no tempo: assume o passado e prepara o futuro24. Através dela, cada pessoa é constituída “herdeira”, recebe “talentos” que enriquecem a sua identidade e cujos frutos deve desenvolver. Com toda a razão, cada um é devedor de dedicação às comunidades. Cada comunidade define-se pelo fim a que tende e, por conseguinte, obedece a regras específicas. Mas a pessoa humana é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais:

A subsidiariedade está entre as mais constantes e características diretrizes da doutrina social da Igreja, presente desde a primeira grande encíclica social. É impossível promover a dignidade da pessoa sem que se cuide da família, dos grupos, das associações, das realidades territoriais locais — em outras palavras, daquelas expressões agregativas de tipo econômico, social, cultural, desportivo, recreativo, profissional, político —, às quais as pessoas dão vida espontaneamente e que lhes tornam possível um efetivo crescimento social. É este o âmbito da sociedade civil, entendida como o conjunto das relações entre indivíduos e entre sociedades intermédias, que se realizam de forma originária e graças à “subjetividade criativa do cidadão”. A rede dessas relações inerva o tecido social e constitui a base de uma verdadeira comunidade de pessoas, tornando possível o reconhecimento de formas mais elevadas de sociabilidade25.

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3.2 A família: primeira escola das virtudes sociais

179. Nas relações da Igreja com a sociedade, é fundamental considerar com atenção redobrada uma das instituições sociais que mais corresponde à natureza humana: a família.

180. O Concílio viu a importância da família ao afirmar: “Entre os laços sociais necessários para o desenvolvimento do homem, alguns, como a família e a sociedade política, correspondem mais imediatamente à sua natureza íntima; outros são antes frutos da sua livre vontade”.26

182. A Igreja, em seu magistério, sempre dedicou profundo afeto e atenção à família, crendo com firme convicção que ela, fundada e vivificada pelo amor, é uma comunidade de pessoas: dos esposos, homem e mulher, dos pais e dos filhos, dos parentes. A sua primeira tarefa é a de viver fielmente a realidade da comunhão, num constante empenho por fazer crescer uma autêntica comunidade de pessoas. O amor é o princípio interior, a força permanente e a meta última de tal dever. Sem o amor, a família não é uma comunidade de pessoas; pois “[…] sem o amor, a família não pode viver, crescer e aperfeiçoar-se como comunidade de pessoas”27.

184. A família é a primeira escola dos valores sociais de que as sociedades têm necessidade. O direito-dever educativo dos pais é essencial, ligado como está à transmissão da vida humana: O dever de educar mergulha as raízes na vocação primordial dos cônjuges à participação na obra criadora de Deus: gerando, no amor e por amor, uma nova pessoa, que traz em si a vocação ao crescimento e ao desenvolvimento, e os pais assumem por isso mesmo o dever de ajudá-la eficazmente a viver uma vida plenamente humana28.

185. O dever de educar é original e primário dos pais, pela relação de amor que subsiste entre pais e filhos, e não delegável totalmente a outros ou por outros usurpável.

186. Também é dever da sociedade garantir o direito das famílias fundadas no matrimônio entre o homem e a mulher, reconhecendo-as como as “células primárias da sociedade”. Nessas células, é possível a perpetuação da família como instância indispensável ao desenvolvimento integral da pessoa humana. Assim, deve-se assegurar a sustentabilidade e proteção legal da família29.

187. O Papa Francisco afirmou recentemente que a família, fundada no matrimônio entre o homem e a mulher, é um “centro de amor”. Nela deve reinar a lei do respeito e da comunhão, que deve ser fortalecida a fim de que seja capaz de resistir ao ímpeto da manipulação e da dominação da parte dos “centros de poderes mundanos”. É no coração da família, diz o Papa, que a pessoa se integra com naturalidade e harmonia a um grupo humano, superando a falsa oposição entre o indivíduo e a sociedade30.

3.3 O bem comum e o desenvolvimento da sociedade

190. Na noção do bem comum incluem-se alguns elementos essenciais. Em primeiro lugar, ele requer o respeito à pessoa. Em nome do bem comum, os poderes públicos são obrigados a respeitar os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana. A sociedade humana deve empenhar-se em permitir, a cada um dos seus membros, realizar a própria vocação. De modo particular, o bem comum reside nas condições do exercício das liberdades indispensáveis à realização da vocação humana, como, por exemplo, o direito à salvaguarda da vida pessoal e à justa liberdade, também em matéria religiosa.

191. Em segundo lugar, o bem comum exige o bem-estar social e o desenvolvimento da própria sociedade. O desenvolvimento é o resumo de todos os deveres sociais. Sem dúvida, à autoridade compete arbitrar, mas, em nome do bem comum, entre os diversos interesses particulares, ela deve tornar acessível a cada qual aquilo necessário para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, saúde, trabalho, educação e cultura, informação conveniente, direito de constituir família e outros.

3.4 A comunidade política e o serviço ao bem comum

194. Para a Igreja, a comunidade política deve ter por objetivo o bem comum, isto é, o bem integral de todos os cidadãos e cidadãs: moradia, saúde, educação, lazer e liberdade religiosa.

196. O bem comum é a única razão da existência da sociedade política e de sua estrutura jurídica. Os políticos necessitam de autoridade para realizar seu papel. É o povo quem delega essa autoridade. Enquanto fundamentada na “natureza humana”, a autoridade política corresponde “à ordem predeterminada por Deus”31.

197. O primeiro dado fundamental de toda a vida política é o respeito à liberdade de cada pessoa.

TERCEIRA PARTE

Igreja e sociedade: serviço, diálogo e cooperação

223. A trajetória da atuação da Igreja na sociedade assume novos desafios conforme o tempo, os contextos e as transformações sociais. Os novos tempos exigem da Igreja um discernimento, à luz do Espírito Santo, para continuar o serviço na sociedade segundo os critérios do Evangelho. A quinta urgência proposta pelas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2011–2015, Igreja a serviço da vida plena para todos, é um indicativo deste novo caminho.

1 Os critérios: dignidade humana, bem comum e justiça social

1.2 O bem comum: promoção e defesa da justiça social

campanha_4229. A fé cristã deve incidir em todas as dimensões da vida, e não só no âmbito privado. Ela deve chegar à expressão política, que apresenta entre suas finalidades principais a promoção do bem comum e da justiça social. O próprio Concílio Ecumênico Vaticano II afirma que a fé obriga os fiéis a cumprirem seus “deveres terrenos” e a colaborar, com “boa vontade” e “competência”, nos mais variados campos da vida social32.

230. A melhoria das condições de vida dos brasileiros ainda não se traduziu em melhorias nas condições estruturais de vida da população, sobretudo dos necessitados. Nesse sentido, é oportuno lembrar a luta pela reforma agrária e as condições de trabalho no campo;33 as relações de trabalho que compreendam o salário justo e o emprego decente; e do acesso à moradia34. No caso dos indígenas, é urgente a demarcação dos territórios e a mediação nos locais onde existem agricultores que possuem título. No caso das comunidades quilombolas35 e comunidades tradicionais, é urgente que o Poder Executivo demarque os territórios e os proteja da especulação imobiliária. Outra urgência é estabelecer políticas públicas de inclusão social de milhares de excluídos. Essas situações requerem uma ação mais incisiva, pois envolvem situações estruturantes fundamentais do direito à vida e ao reconhecimento da dignidade humana. Além disso, ferem o bem comum e desestabilizam a justiça social, gerando exclusão e violência.

2.4 Diálogo e colaboração em vista do bem comum

235. Na sociedade civil, encontramos muitas entidades e instituições que propõem boas iniciativas, visando atender às necessidades da população carente. “A Igreja declara querer ajudar a promover todas essas instituições, na medida em que isso dependa dela e seja compatível com a sua própria missão.”36

Repensar a própria responsabilidade em relação à sociedade em temas como: sustentabilidade, respeito aos direitos dos outros, liberdade religiosa, educação para a solidariedade, cuidado com os bens públicos.

Criar serviços a partir das características da paróquia e das capacitações dos paroquianos (reforço escolar, biblioteca comunitária, mutirões de ajuda e outros).

236. O diálogo com a sociedade compreende também o princípio do diálogo ecumênico e inter-religioso. Assumir causas em comum, especialmente causas de defesa à promoção da vida, que sustentam a dimensão servidora das instituições religiosas, é um caminho fértil para essa aproximação.

 

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Campanha da Fraternidade 2015: Texto-base. Brasília: Edições CNBB, 2015.

NOTAS

1 Cf. PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica Evangelii Gaudium. Brasília: Edições CNBB, 2013. n. 19.
2 DOCUMENTO CONCILIAR. Constituição Dogmática Lumem Gentium. n. 3.
3 Idem. n. 5.
4 Idem. n. 9.
5 Idem.
6 Cf. PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica Evangelii Gaudium. n. 28.
7 Cf. Idem. n. 24.
8 Cf. Idem. n. 29.
9 Cf. Idem. n. 48.
10 Cf. BALDISSERI, L; MARTINS, I. G. M. (coord.). Acordo Brasil-Santa Sé comentado. São Paulo: LTr, 2012, p. 46.
11 Cf. CNBB. Documento – 94. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011–2015. Brasília: Edições CNBB, 2011. n. 17-20.
12 Cf. http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1440. Acesso em: 28/08/2014.
13 Cf. Preâmbulo do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil, 13/11/2008 – Presidência da República, Casa Civil, Decreto de Promulgação n. 7. 107, de 11 de fevereiro de 2010.
14 Cf. CELAM. Documento de Puebla. São Paulo: Paulinas, 1979. n. 503.
15 Cf. CNBB. Documento – 100. Paróquia, comunidade de comunidades – A conversão pastoral da paróquia. Brasília: Edições CNBB, 2014. n. 23.
16 Cf. PAPA FRANCISCO. Exortação apostólica Evangelii Gaudium. n. 94.
17 Cf. DOCUMENTO CONCILIAR. Decreto Unitatis Redintegratio. n. 18.
18 Cf. DOCUMENTO CONCILIAR. Declaração Nostra Aetate. n. 1.
19 Idem. n. 2.
20 Cf. CNBB. Documento – 100. n. 24.
21 Entre os franceses esta doutrina nega o direito à religião de participar dos debates da sociedade. Na Alemanha a laicidade não assumiu essa perspectiva. Cf. MIRANDA, M. F. A Igreja Que Somos Nós. São Paulo: Paulinas, 2013. p. 69.
22 Cf. CELAM. Documento de Aparecida. n. 99, 100 e 479.
23 Cf. DOCUMENTO CONCILIAR. Constituição Pastoral Gaudium et Spes. n. 3; cf. tb. PAPA JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Redemptor Hominis. São Paulo: Paulinas, 1984. n. 14.
24 Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. n. 1880.
25 COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA. n. 185. Cf. DOCUMENTO CONCILIAR. Constituição Pastoral Gaudium et Spes. n. 14, 25. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. n. 1881.
26 Cf. DOCUMENTO CONCILIAR. Constituição Pastoral Gaudium et Spes. n. 25.
27 PAPA JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica Familiaris Consortio. São Paulo: Paulinas, 1981. n. 18.
28 Idem. n. 36.
29 Cf. DOCUMENTO CONCILIAR. Constituição Pastoral Gaudium es Spes. n. 52.
30 Cf. PAPA FRANCISCO. Mensagem ao Congresso Latino-americano de Pastoral Familiar. Panamá, 4 a 9 de agosto de 2014. In: www.vatican.va.
31 Cf. DOCUMENTO CONCILIAR. Constituição Pastoral Gaudium et Spes. n. 74.
32 Cf. DOCUMENTO CONCILIAR. Constituição Pastoral Gaudium et Spes. n. 43.
33 Sugestão apresentada no documento à Igreja e a questão agrária no início do século XXI. Edições CNBB, 2014.
34 Cf. CNBB. Texto-base CF 1993. Onde moras? A fraternidade e a moradia. 1993.
35 Cf. CNBB. Estudos – 105. A Igreja e as Comunidades Quilombolas. Brasília: Edições CNBB, 2013. n. 59.
36 Cf. DOCUMENTO CONCILIAR. Constituição Pastoral Gaudium et Spes. n. 43.

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