Edição 48

Lendo e aprendendo

Cantando e contando a história de Bia Bedran

Fabiana Barbosa

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Nestes vinte dias de férias no Recife, Bia Bedran nos concedeu a entrevista a seguir.

Construir Notícias: Quem é Bia Bedran?

Bia Bedran: Bia Bedran é uma mulher com o espírito e o vigor da maturidade, vigor que eu carrego no meu coração; esse vigor vem da paixão que tenho pela arte que eu tive a chance de realizar há mais de três décadas. Então, eu sou uma pessoa feliz em construção. Meu último livro, inclusive, eu escrevi aqui em Pernambuco e chama-se A Menina do Anel, e, de alguma maneira, essa menina do anel é a resposta à sua pergunta. Sou eu, a menina do anel. As crianças falam: “Será que essa menina do anel é você, Bia Bedran?”. Elas não veem muito a idade que eu tenho. E meu público se renovou, e eu poderia ser avó de muitas das crianças que assistem a mim. O que elas querem é ouvir as histórias, elas querem se enredar, se envolver no encantamento que as canções e as histórias proporcionam. Eu sou feliz por isso, por trabalhar com a arte, que descobri ainda na minha juventude.

CN: Sua formação inicial é em musicoterapia. Quais as contribuições da música para o desenvolvimento infantil?

BB: A musicoterapia realmente trabalha com uma prevenção das doenças. Não é a cura das doenças das pessoas, mas é uma prevenção das doenças, das neuroses, das psicopatias. Nesse mundo tão distorcido, a musicoterapia tem uma contribuição muito grande a dar. A música faz com que a linha do tempo seja muito clara na vida da criança, porque ela passa a se lembrar das músicas que a embalavam na infância, que a fazem se lembrar de seus amigos, das brincadeiras de roda. A música é uma construção histórica, as pessoas tocavam nas rodas desde tempos muito remotos. Os instrumentos eram feitos de tripas de bicho; eles comiam o bicho e não jogavam fora as tripas, faziam as cordas. Era assim que se fazia a música. Então, a música está presente em todas as culturas, em todos os povos, em todas as etnias.

CN: Qual sua opinião sobre a proposta de voltar a implementar o ensino de música nas escolas?

BB: Eu sou do time da música. Eu sou do time da arte, na verdade. Eu acho que a iniciativa de voltarem as aulas de música, pelo menos nas séries iniciais e na Educação Infantil, é fundamental. Não só a música, por que não teatro, por que não artes visuais obrigatórias? O ideal seria a arte implementada para todos como disciplina. Porque A Disciplina da Arte, que é um livro lindo, indica que qualquer linguagem da arte seduz a criança. Na verdade, a criança é seduzida para realizar a tarefa artística, mas a música mais que todas. Eu falo com propriedade porque a música mexe com mais canais sensoriais, quantitativamente, do que, por exemplo — vou falar tudo que eu amo —, teatro, dança, artes visuais. Mas a música chega de um jeito! Porque todo mundo cantarola. Nossa voz é uma música. Isso que eu estou falando aqui, eu estou cantando. Isso tem música (falando e indicando o ritmo da fala). Então, as pessoas cantam quando falam. A expressão da voz é muito importante. Quando a gente fala assim: “Ele ficou mudo de espanto”, ficar mudo significa que é uma emoção muito forte. Quando você também está muito emocionado, é um grito que sai. Então, a voz, a música encarada de uma maneira holística, ou seja, música, como ruídos, som, movimento, silêncio, é fundamental estar nas séries iniciais. Porque ela é a expressão humana.

CN: Como foi sua inserção pelo teatro, já que sua carreira começou no Quintal — teatro infantil — e você foi premiada como melhor atriz infantil?

BB: O teatro chegou muito cedo na minha vida. Nós logo construímos um teatro. Não foi apenas fazer teatro. A minha família de loucos, minha mãe, meu pai, meu tio, minha tia, todo mundo, a geração deles e nós, os filhos, éramos jovens, 16, 17, 15. Eu era a mais velha do grupo. Tinha 17. Havia uma ala jovenzinha em que eu coordenava meus primos e irmãos. Todo mundo trabalhava: papai ficava na bilheteria, mamãe fazia os bonecos e escrevia as peças, minha tia era doutora, e a gente contou peças espanholas traduzidas por ela, que trabalhava com a implementação da língua espanhola nas escolas. Era a família Martini, não era os Bedran. Foram todas as mulheres Martini que fundaram o Quintal, e os maridos — no caso, meu pai, meu tio — colaboraram. Meu tio era arquiteto e fez todo o planejamento do teatrinho. Minha avó ficava na cantina e fazia os doces. Minha tia-avó costurava os vestidos dos personagens. Em dez anos, todo mundo escolheu sua vida, todo mundo era muito pequeno, e eu escolhi a arte mesmo. Então, no teatro, já cheguei contando histórias nas peças. Como canto desde criança, no teatro eu já pegava o papel que cantava. Minha tia sempre me dava o papel da “cantriz”, a que ia cantar e contar a história. Então, descobri o que era ser atriz quando eu era a personagem e, de repente, a narradora. No fundo, eu era o coro: cantava e descrevia a cena. Sou uma espécie de atriz que conta histórias e uma contadora de histórias que é atriz. O teatro foi uma bênção porque foi feito por uma trupe familiar. Algo mais íntimo que isso era impossível. Mães, pais, filhos, tios e primos trabalhando todo fim de semana da nossa juventude. Dez anos da nossa juventude. O teatro Quintal foi uma escola para mim.

CN: Quando e como a literatura se tornou presente em sua vida?

BB: Primeiramente, eu como leitora. Sou uma leitora voraz e era uma menina precocemente leitora, mas não porque me obrigavam a ler. Claro que houve um estímulo muito grande de minha mãe, que cantava para mim e me contava histórias todo dia. Mamãe, como tocava um violãozinho básico, cantava modas de viola, aquelas toadas, e era uma contadora de histórias exemplar. Aquela voz de minha mãe contando histórias desde que eu estava no útero, praticamente, me fez correr para os livros logo que aprendi a juntar letras. Aprendi a ler antes de aprender a escrever. Eu já decodificava coisas de tanta história que tinha na minha cabeça. Quando tinha 5 anos, era muita história que tinha na minha cabeça. Muita informação da minha mãe contando histórias. E mamãe, que era alfabetizadora e dona de escola, disse que ficou impressionada porque eu rapidamente dizia: “O me-ni- -no”, sem muito esforço da professora que me alfabetizou, que não foi ela. Porque eu tinha já conteúdo interiorizado. Aí corri para o livro. Comecei a ler compulsivamente logo que entendi, que comecei a interpretar uma página inteira, lá pelos meus 7 anos. Aí eu tinha coleções inteiras da Condessa de Ségur com 8 anos, lendo aquilo que era volumoso, na época. Comecei a ler Machado de Assis, que eu achava fácil, com 12 anos. Com 12 anos, eu já tinha lido Monteiro Lobato inteiro, lido Os Doze Trabalhos de Hércules — 1º tomo, 2º tomo —; adorava esta palavra tomo, o volume. Eu me concentrava muito, muito, e ficava silenciosa por muitas horas. Aí, essas histórias que eu lia logo, logo se transformaram em músicas. A primeira música que fiz foi com 9 anos de idade, e concorri já a um festival. Eu transformava aqueles enredos em situações que serviam muito bem às músicas. Já tocava violão e transformava as histórias em letras. Quando Martin Luther King morreu, fiz uma música de protesto em sua homenagem; e eu tinha 12 anos. A literatura me ajudava a me antenar com os movimentos históricos. Eu não era uma menina alienada para as coisas que estavam acontecendo. Aí, fui fazendo canções. Não escrevia livros; escrevia crônicas. Adorava escrever crônicas e as botava em concursos. Ganhava concursos, mas não pensava em escrever livros. Com 13 anos, eu queria fazer música, queria cantar no grêmio da escola, concorrer a festivais. Quando cheguei à minha maturidade, não tinha escrito nenhum livro ainda nem peça de teatro. Eu interpretava as peças de minha mãe. Só em 1993 é que resolvi escrever livro, literatura infantil. Eu contava muita história, compunha canções — já tinha mais de duzentas canções, hoje tenho mais de trezentas músicas. Mas, de livros, só tenho sete. Você vê que literatura, enquanto escritora, chegou em 1993, quando eu lancei A Sopa de Pedra. Mas eu tenho vários livros já dentro da gaveta, agora é só as editoras continuarem gostando do meu estilo. Na verdade, de 1994 para cá, é que comecei a namorar essa ideia de botar no papel, em forma de literatura, as ideias que só viravam canções.

CN: Como é o trabalho de compor, escrever peças de teatro e livros de literatura para crianças?

BB: É um trabalho interdisciplinar e integrado; interdisciplinar no sentido bem amplo, porque podemos encarar como disciplinas o teatro, a música, o escrever, o fazer discos. O meu objetivo como artista é transformar pela emoção. Eu não acredito em nenhuma transformação sem a suavidade e a intensidade. A emoção promove uma explosão que te faz transformar, te faz olhar diferente, te faz aceitar o outro. Então, quando falo em interdisciplinar, é porque piso nesse chão; sou educadora também, ainda sou professora. Toda semana, eu piso na sala de aula da Uerj, e minha disciplina se chama a Arte de Cantar e Contar Histórias, no Instituto de Arte e na Subdiretoria de Extensão. Lá eu tenho turmas de professoras; são educadoras que assistem às minhas aulas. Então, minha aula, na verdade, é um repasse de experiência para elas. Eu passo as dinâmicas que elas vão transferir, realizo esse trabalho da Uerj há quinze anos. E eu sou professora duas vezes por semana, artista cantando meus espetáculos, escrevo meus roteiros — meus roteiros, eu não posso chamar de peças de teatro; eu gosto de chamá-los de roteiro de espetáculos musicais. Pego aquelas quinze músicas do espetáculo Cabeça-de-Vento e troco tudo, e passa a se chamar Bia Canta e Conta, porque a ordem — essa bricolagem — dá um outro approach da criança no espetáculo. Canto mais músicas do que conto histórias, já virou outro espetáculo, ou coloco mais histórias do que músicas, já virou outro. Quando quero fazer um espetáculo com mais cara de teatro — como o que eu fiz agora, Histórias de um João-de-barro, que é um espetáculo de teatro —, eu convido um autor de teatro para escrever. Eu dou a ideia do roteiro e convido um teatrólogo, como foi Pisarvos, que escreveu o espetáculo do DVD ao vivo. Então, acho que a minha produção mais profícua, a mais fértil, é na música. Já vou para o meu décimo CD. Meu primeiro, quando comecei, era longplay e foi independente. Mas o primeirão mesmo não foi independente e, por esse motivo, não está reeditado porque está preso a uma gravadora — eu fiquei tão arrasada que aprendi a fazer discos independentes. Livro é impossível. Precisa mesmo da editora. Agora, já estamos voltando a precisar da gravadora e abrir certas concessões. Não estéticas nem éticas, mas abrir concessões de produção. Já está todo pronto, são doze músicas novas e se chama Tudo É Invenção. Eu queria lançar em dezembro, mas não vai dar mais. Não deu para gravar. Até o verão, eu consigo uma parceria, talvez um selo, para poder fazê-lo comigo. Mas esta é a ideia: eu sou mais musicista. Nesse momento, estou muito literária porque estou fazendo mestrado — só agora consegui ter, mais ou menos, tempo — em Ciência da Arte, que é um programa que só tem na Universidade Federal Fluminense e é muito legal. Vou falar sobre música e tradição oral.

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CN: Por que, em seu show, você resgata brincadeiras musicais que muitas pessoas ainda não conhecem?

BB: Também faz parte da ideologia do meu trabalho, porque há uma ideologia. Não é só entretenimento. Faz parte mostrar a pais e educadores presentes na plateia que a história da vida da gente tem que estar na arte e que houve um tempo em que as crianças já brincaram assim, já houve um tempo em que essa inocência estava presente, havia uma liberdade de movimentos. A gente no palco resgata brincadeiras absolutamente criativas, gostosas, a que não há quem não se renda. Só se a criança ou o adulto estiver com um problema emocional muito grave, ele rejeita se entregar às brincadeiras que a gente propõe, porque essas brincadeiras estão atávicas. Elas fazem parte de uma cultura que pode ser que não esteja sendo vivenciada agora, mas faz parte de uma memória que, em algum momento, está ali no inconsciente e que renasce quando você começa a brincar. Uma roda em que você dê as mãos, as brincadeiras com palmadas que fazem assim (fazendo movimentos de brincadeiras com as mãos), brincadeiras de dar o braço e que fazem aquele rodeio por entre os participantes, gestos imitando caveiras que andam pelas ruas, brincadeiras com rimas — “Passa debaixo da ponte e vira lavadeira, passa debaixo da ponte e vira costureira, passa debaixo da ponte e vira princesa”. Brincadeiras que têm muito isto, esta coisa da alteridade: ele é pobre, ele é rico — “Eu sou pobre, pobre, pobre de marré, marré, marré / Eu sou rica, rica, rica de marré decê” (cantando) —; um é pobre, o outro é rico e, depois, troca: quem era rico fica pobre. Então, resgatar isso,nem que seja para dizer: “Olha, alguém já brincou disso!”. Hoje você só brinca de game ou computador, mas houve um tempo em que não existia luz, e as crianças brincavam assim. Se você não mostrar, ela nunca mais vai saber que houve um tempo em que isso existia e nunca vai conhecer. E a gente só pode gostar daquilo que a gente tem a chance de conhecer. E meu papel é mostrar. O que eu puder mostrar no palco, ao vivo, às pessoas, eu mostro.

CN: Por que é importante as crianças entrarem em contato com o mundo e todas as formas de expressão da arte?

BB: Eu até faria uma inversão na sua pergunta: eu acho que a arte nos dá entradas ao mundo. A arte possibilita às crianças entrarem neste mundo cruel e voraz em que nós estamos vivendo, neste século XXI, nesta pós-modernidade, sei lá o que a gente pode chamar, pós-pós-modernidade, porque você vê repetições da barbárie que já houve em outras épocas históricas, mas também vê hoje uma barbárie social, de exclusão, de violência urbana. Vira uma barbárie urbana. Assim, a arte propicia o olhar para esse mundo, a arte faz você penetrar profundamente nesse mundo, mas protegido por essa aura que a criação, que o potencial criador de todos nós nos dá. Eu acredito nessa aura. Uma criança, quando descobre que sabe continuar a história que o professor contador está contando, quando ela sabe interpretar, quando ela percebe esse potencial e se expressa, ela está com o poder nas mãos de enfrentar a crueldade do mundo. Porque a vida não é fácil. E a arte nos dá armas, armas bonitas, coloridas, para enfrentar a barbárie.

CN: Quais as dificuldades e as vantagens de se viver da arte no Brasil, especialmente da arte para crianças?

BB: Bom, dificuldade, há muitas. Eu sou uma pessoa que luta diariamente. Eu sobrevivo da arte, mas vou te contar: não é fácil! Eu vivo assim: respirando. Meu fôlego é um fôlego que, às vezes, se esgota e se renova pela própria arte. Tem essa dialética. Viver da arte, de arte que não é essa arte descartável, viver da arte não é fácil. Mas eu sou professora funcionária pública. Fiz concurso porque tive medo de viver só da arte, sem aquele meu salário de professorinha ali, que agora vai aumentar por causa do título de mestre, mas eu fui professora sem ser mestre, só com meu terceiro grau, e precisei dessa garantia. Hoje em dia, vivo mais como artista, ganho mais como Bia Bedran do que como a professora Bia. Eu ganho mais com meus espetáculos, com meus discos, com meus livros, mas são 36 anos fazendo só isto: arte. Então, não é fácil. Agora, quem vive de arte se sente tão feliz, porque consegue sobreviver. Vive, como diz Milton Nascimento, um caminho de pedras, mas feliz.

CN: Como Bia Bedran gostaria de ser lembrada?

BB: Que bom! Gostaria de ser lembrada pelas histórias que conto; pelas canções que componho; pelas ideias que solto nos meus livros; nos olhos de uma criança; na voz de um menino que canta a minha canção, que diz que lembra; pela arte. Gostaria de ser lembrada pelo que deixo de arte, de músicas, de histórias e que perdura nas salas de aula com os educadores. Gosto de ser lembrada como essa artista que serve à educação. A minha arte está a serviço da educação. Não abro mão disso. Eu só realizo projetos que vão chegar, de alguma maneira, ao educador, pai ou educador-professor.

CN: Qual a mensagem que Bia Bedran deixa?

BB: A mensagem é que nós temos que ter certeza, vocês — pais, mães, educadores —, de que a arte tem realmente um poder transformador. Acreditem, respeitem os professores que brincam com seus filhos. Essa brincadeira é esse quintal de vida, de arte em que a criança pisa diariamente, mas, às vezes, dentro de casa, a criança não pisa mais nesse quintal. Eu acho que a arte reinstala um quintal que hoje virou playground ou virou computador. A mensagem que deixo é de que a criança, sozinha, não vai fazer a fruição da arte, não vai a uma exposição sozinha, não vai a uma peça de teatro sozinha, não vai comprar o disco X do artista tal ou ver uma roda de ciranda sozinha. Ela precisa que o adulto perceba o valor dessas expressões e usufrua ao lado dela. Faça ao lado dos seus meninos — seja professor, esja pai ou mãe — a fruição das expressões artísticas, porque todos vão sair mais fortes, e mais belos, e mais suaves e confiantes, e mais bonitos. São cestos de alegria para você distribuir flores pelo seu caminho. A arte te dá esses cestinhos.

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