Edição 55

Em discussão

Ciclos de aprendizagem e formação continuada de professores: um encontro necessário

Magali Maria de Lima Ribeiro

img-mat-esp-1677-01Apesar de não ser uma temática nova em nossa cena educacional e ter recebido diversas significações ao longo da composição e do desenvolvimento do discurso a seu respeito até chegar ao status de política de organização da Educação escolar, o ciclo de aprendizagem é, ainda, uma espécie de caixa-preta para grande parte dos agentes educacionais — o que demanda um investimento na análise e composição de aportes teóricos, metodológicos e processos avaliativos que possam embasar a vivência, Em discussão Ciclos de aprendizagem e formação continuada de professores: um encontro necessário com sucesso, desse modo de organizar e conceber a experiência educativa.

Nesse sentido, parece caber à formação continuada de professores a tarefa de análise e construção de conhecimentos que favoreçam a vivência de uma aproximação da experiência educativa às necessidades impostas pelas características conceituais de uma pedagogia diferenciada que atenda os educandos em seu ritmo e em suas necessidades específicas.

A evolução do discurso sobre a política de organização escolar em ciclos no Brasil

Segundo Mainardes (2007), a primeira vez que se ouviu falar sobre uma proposta de organização em ciclos foi por volta de 1944, apresentada por Henry Wallon dentro do Plano Langevin-Wallon, na França. O plano tinha o objetivo de reconstruir a democracia desse país após a Segunda Guerra Mundial. De acordo com essa proposta, a escolarização deveria ser organizada em três ciclos, que se baseavam nos ciclos naturais do desenvolvimento humano, divididos da seguinte forma: um ciclo elementar (crianças de 6 a 11 anos), um ciclo de orientação (11 a 15 anos) e um de determinação (9 até 18 anos).

No Brasil, o termo ciclo de aprendizagem enquanto designação de políticas de não reprovação surgiu em 1984, com a implantação dos Ciclos Básicos de Alfabetização (CBA), ocorrida no Estado de São Paulo, a qual inspirou várias experiências em outros estados. Porém, o termo ciclo está presente em nosso cenário educacional desde a década de 1930. Barreto e Mitrulles (2004) evidenciam que o debate em torno da criação de políticas de não reprovação teve início no final da década de 1910 e que experiências pioneiras foram introduzidas no final da década de 1950.

Assim sendo, Mainardes (2007) divide o processo de formação e desenvolvimento do discurso sobre a política de ciclos no Brasil em três períodos, sendo que o primeiro refere-se aos antecedentes da emergência da política de organização escolar em ciclos, que vai de 1918 a 1984; o segundo apresenta a emergência das políticas de organização da escola em ciclos nos anos 1980; e o terceiro diz respeito ao processo de recontextualização do discurso da política nos anos 1990.

Nesse quadro de análise, o autor toma como antecedentes os aspectos concernentes à geração do discurso e que estão baseados nas primeiras críticas à reprovação; as discussões sobre promoção automática, ocorridas entre as décadas de 1950 e 1960; e as experiências pioneiras envolvendo políticas de não reprovação.

Quanto ao segundo período, de formulação e desenvolvimento do discurso referente à política de organização escolar em ciclos, Mainardes (2007) toma em conta as experiências de Educação organizadas em ciclos nos anos de 1980, nas quais a tônica discursiva se conduzia pela via de redução das taxas de reprovação, oferecimento de maior tempo de aprendizagem, democratização da escola e acesso ao conhecimento.

Para caracterizar o terceiro período, que o autor denomina de recontextualização do discurso, o mesmo foca as temáticas relativas à diminuição da seletividade do sistema escolar, à melhoria da qualidade da Educação, à mudança radical da estrutura da escola e do sistema de promoção dos alunos, à eliminação da cultura da repetência, à melhoria da eficácia da escola e à ressignificação da função social da Educação.

No entanto, apesar da recontextualização discursiva acerca dos ciclos, as práticas educativas no âmbito dessa política permanecem muito próximas do paradigma tradicional de seriação, traduzindo-se no modo simplificador e repetitivo como é tratado o conhecimento, nas relações de mando e obediência que se estabelecem no interior das escolas e, principalmente, nos processos avaliativos marcados ainda pela ideia de que todos os alunos devem apresentar o mesmo nível de desenvolvimento ao final do ciclo.

img-mat-esp-1677-02

O papel da formação continuada de professores na compreensão e vivência de uma política de organização escolar em ciclos

Desse modo, uma análise mais profunda de tal situação permite perceber que ela é o reflexo, entre outras coisas, de um desencontro entre as formas geralmente aligeiradas e unilaterais de implantação da política de organização escolar em ciclos (Krug, 2007) e as políticas de formação continuada de educadores oferecidas, que se efetuam de forma eventual e genérica, sem englobar os interesses e as necessidades dos educadores nem as características específicas de uma perspectiva educativa conceitualmente diferenciada.

img-mat-esp-1677-03Nesse contexto, ressalta-se a importância de uma política de formação continuada de professores que, segundo Libâneo (2007), oriente-se pela escuta das necessidades e dos interesses dos profissionais e se configure por um processo contínuo desenvolvido nos locais de serviço, ou seja, no interior das escolas, a partir de uma reflexão coletiva e crítica de suas práticas educativas.

Uma formação que guarde uma estreita relação com as demandas específicas de uma organização escolar em ciclos de aprendizagem, uma vez que esta propõe o acolhimento dos diferentes tempos e modos de aprendizagem dos alunos e concebe o ensino como uma ação de mediação, na qual o professor atua entre os saberes apresentados pelos alunos e os que se inserem na dimensão de potencialidade deles (zona proximal de desenvolvimento), os quais poderão ser consolidados a partir das interações sociais estabelecidas entre os diversos sujeitos educativos (Vygotsky, 1993).

Não há dúvidas, portanto, de que, nessa perspectiva, caberá à formação continuada incluir-se, ela mesma, nessa concepção sociointeracionista, indagando-se sobre qual será o papel do professor dentro dessa nova maneira de conceber o ensino e a aprendizagem e quais as implicações dessa opção para a vida escolar e social dos alunos.

Conforme Sampaio (2007), o modo como o professor aprende a compreender o processo de ensinar e aprender, que está historicamente referenciado no pressuposto de “semelhança” ou “normalidade”, interfere significativamente na produção do insucesso no cotidiano escolar.

Assim sendo, a formação continuada dos professores deve mais que englobar, no bojo de suas análises, a realidade de fracasso dos educandos; ela deve possibilitar que os educadores compreendam tanto suas causas quanto suas nefastas consequências para os alunos e para o desenvolvimento da sociedade como um todo.

Nessa ótica, será importante, também, que o professor se perceba como corresponsável pela produção dessa realidade, porém enxergando, em sua prática educativa, uma força que pode ajudar a transformá-la. Nessa perspectiva, Thurler (2001) alerta para a necessidade de, dentro dos ciclos, os professores partilharem conhecimentos, interagirem em grupos de trabalhos interdisciplinares, dominarem metodologias avaliativas que contemplem o trabalho educativo dentro de uma dimensão de complexidade e compreenderem a fundo os processos de produção e apropriação do conhecimento pelos quais passam os que estão em formação.

img-mat-esp-1677-04Conclusão

Nesse sentido, Perrenoud (2004) afirma que o grande desafio não está na implantação dos ciclos, mas nas competências e nas forças investidas para fazê-los funcionar bem. A expressão funcionar bem representa o desejo de que os ciclos, de fato, mudem a lógica exclusiva do ensino homogeneizado/ homogeneizante, ancorado no paradigma fabril e organizado por série, e possibilitem a cada aluno construir seu próprio percurso de aprendizagem seguindo seu próprio ritmo de construção de conhecimento, mas atingindo, todos eles, os objetivos de formação traçados para o final de cada ciclo.

Para Lima (2000), ciclo não é a solução para o fracasso escolar, não vem como mera contraposição à seriação: “é uma proposta de reformulação da estrutura escolar que sustenta um processo contínuo constituído pelas atividades de ensino e as atividades necessárias para a aprendizagem, levando, assim, ao desenvolvimento humano de todos os educandos” (p. 4).

Desse modo, o encontro coerente entre os objetivos formulados na recontextualização do discurso sobre ciclos e os processos de formação continuada dos agentes educativos constitui-se em necessário e importante elemento para o sucesso na implantação e vivência de políticas de organização escolar regidas pela lógica da não seriação.

Magali Maria de Lima Ribeiro é doutoranda em Educação/Inovação Pedagógica pela Universidade da Madeira, Portugal; professora da rede municipal de ensino do Recife; professora dos cursos de pós-graduação da Universidade de Pernambuco – Campus Nazaré da Mata.

Referências bibliográficas

BARRETO, Elba Siqueira de Sá e MITRULIS, Eleny. Trajetórias e desafios dos ciclos escolares no Brasil. In: PERRENOUD, Philippe. Os Ciclos de Aprendizagem: um Caminho para Combater o Fracasso Escolar. Trad. Patrícia Chittoni Ramos Recuillard. Porto Alegre: Artmed, 2004.
LIMA, E. S. Ciclos de Formação: uma Reorganização do Tempo Escolar. São Paulo: GEDH, 2000.
MAINARDES, Jerfferson. Reinterpretando os Ciclos de Aprendizagem. São Paulo: Cortez, 2007.
PERRENOUD, Philippe. Os Ciclos de Aprendizagem: um Caminho para Combater o Fracasso Escolar. Trad. Patrícia Chittoni Ramos Recuillard. Porto Alegre: Artmed, 2004.
SAMPAIO, Sanches Carmen. Mediação Pedagógica: o Papel do Outro no Processo Ensino-aprendizagem. In: KRUG, Fertzener Rosana Andréia Org. Rio de Janeiro: Wak Ed. 2007.
THURLER, Gather Mônica. Quais as Competências para Atuar em Ciclos de Aprendizagem Plurianuais? In: Pátio Revista Pedagógica, Ano V, n. 17 maio/junho, p. 17–21, 2001.
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

cubos