Edição 60

Profissionalismo

Consumo, logo existo… O que estamos ensinando para nossas crianças?

Rosangela Nieto de Albuquerque

Esta paráfrase (não paródia) da célebre frase descartiana nos parece sempre atual e necessária. Ponto nevrálgico do psiquismo social, não apenas da sociedade capitalista, como bem e exaustivamente explorada pela Escola de Frankfurt, é uma questão atemporal mais ligada à alma humana do que a um sistema produtivo.

Quando Marx enunciou o “fetiche das mercadorias”, remeteu ao momento em que o homem deixa de possuir as coisas e passa a ser possuído por elas. Portanto, abriu canal profícuo para toda uma corrente de pensamento, da qual destacamos a Escola de Frankfurt. Esta, associada à base freudiana psicanalítica, permitiu a geração de um paradigma que explica satisfatoriamente, até certo ponto, a sociedade moderna sob a égide capitalista.

Os pensamentos de Adorno, Marcuse e Eric Fromm são importantes e até necessários para pontuar e esclarecer a questão do consumo no que tange à relação de existência. No entanto, não oferecem uma saída satisfatoriamente segura para a questão, uma vez que entendem o meio como condicionador da formação do sujeito.

A teoria crítica remete à razão do pensamento ocidental baseada no materialismo histórico-dialético, que hipervaloriza as condições materiais como ontologia do ser. Kracauer articula o consumo ao desejo, e não à necessidade:

Olho à minha volta e vejo o consumo, simplesmente, pelo prazer de possuir o objeto de desejo. Quem não guarda no armário aquele utensílio usado apenas uma vez? Acho que todos somos assim. É difícil controlar o impulso consumista. O que predomina é o desejo, e não a necessidade. É preciso consumir para existir. Será que estou exagerando? 

Ter e/ou ser é sempre o denominador comum para o enfrentamento da questão, que só pode ser solucionada com uma filosofia transcendente e nunca com a razão lógica apenas! (Ah! René Descartes…) Se assim for, abriremos espaço para uma série de mecanismos (freudianos) de defesa do ego, como projeção, negação, fuga, forjação e, principalmente, racionalização.

A sedução, ou mesmo a possibilidade de satisfação do desejo, demonstrou-se mais forte até do que uma base ética social. No caso do consumo, o prazer de possuir o objeto justificaria termos e condições moralmente inaceitáveis quando analisados apartados do caso concreto.

As religiões sempre propuseram o aniquilamento do egoísmo (ego), origem de todos os males sociais, porém, muitas vezes, sob uma ótica de castração inatingível e quase sempre indesejável para o homem comum.

Ter não está associado a ser e vice-versa. Podendo–se ter (e até devendo-se ter), tal qual a promessa não cumprida da modernidade e muito bem criticada pelos frankfurtianos, abre-se espaço para ser, que só é alcançado quando o homem passa a não ser produto do meio e faz do meio seu produto.

Ensinar nossas crianças sob essa nova perspectiva é necessário, porém só efetivo quando ensinado por alguém que já possui essa condição, através do exemplo, para que não haja palavras vãs e esvaziadas de sentido.

Como família e escola podem orientar para o “Sinto, logo existo”?

Como transformar o pensar das nossas crianças numa sociedade do ter, e não do ser? Como a escola e a família educarão as crianças e transformarão a sociedade? De quem é a “culpa”? Será da revolução tecnológica, que oportunizou a difusão do conhecimento, a comunicação global, a vontade de saber, de interagir, de ter, de sentir-se eu, de ser? É uma lógica moderna? Uma lógica que, em vez do “Sinto, logo existo”, fundamenta-se em “Consumo, logo existo”; que se concretiza no comprar, ter ou possuir. E que, numa construção do Eu, muitas vezes consolida a crença de que para ser é preciso ter.

Numa perspectiva psicológica, o comportamento compulsivo pode servir como meio de descarga para sanar angústias, raiva, ansiedade, tédio e pensamentos de desvalorização pessoal. Trata-se de um movimento aprendido e até certo ponto imposto.

Embora não haja um “modelo”, há muitos casos de pessoas que tiveram pais ausentes que compensavam negligência com presentes. 

Há casos, por exemplo, de pessoas que se atrasam para buscar o filho na escola e depois os compensam com doces ou brinquedos. Com isso, ensinam que objetos e produtos aplacam a tristeza; esse comportamento pode ser adotado pela criança na fase adulta (Filomensky).

As pessoas recorrem ao consumo exagerado para que possam exibir uma imagem narcísica, que tem por objetivo o preenchimento do vazio com objetos. A compulsão baseia-se numa lógica social que supervaloriza o ter em detrimento do ser (Birman). 

A roupa da moda (de grife), o tênis de marca, o celular. Ah! Como é difícil a escola posicionar-se quanto ao uso do celular (comum entre os adolescentes), que se valora como útil no advento da modernidade — “necessidade” da comunicação. Há situações em que o celular “deve” ficar ligado em sala de aula porque a família precisa se comunicar. Quantos “conflitos” entre alunos e professores por causa do uso do celular! É a modernidade, a necessidade ou o importante ato de possuir o produto que dita a nossa existência? 

Há pais que passaram por dificuldades financeiras na infância e, na melhor das intenções, tentam poupar os filhos de privações. Isso pode comprometer a ideia de limite e tornar essas crianças adultos incapazes de suportar frustrações (Leite).

Para Birman, a voracidade do compulsivo está envolvida com elementos muito presentes na atualidade, como o narcisismo, o culto ao Eu e o vazio existencial. 

Nos estudos psicológicos, é comum encontrarmos referências ao consumo exagerado, à carência afetiva, que também são resultantes da necessidade de estabelecer relações de poder. Nossa organização social nos ensina que, para ser poderoso, é preciso possuir objetos. O desejo de posse pode ser uma forma de compensar sensações de inferioridade que vivemos na infância diante dos adultos. Parte daí o importante papel da família de exercer sua influência no processo de formação do sujeito, educando através do exemplo, das ações. E, portanto, também o papel da escola de educar as crianças não apenas fundamentada no saber, mas na essência do ser, não apenas no ter conhecimento. A escola, numa perspectiva crítico-reflexiva, inclusive nas aulas de Filosofia, poderá realimentar a ideia de existência.

Na díade família-escola, é importante que o processo seja efetivo; deve-se acabar com o disparate entre o discurso e a práxis educativa real, tanto na escola quanto na família e na sociedade. Isso passa pela própria autotransformação dos educadores, quer sejam pais ou professores.

Rosangela Nieto de Albuquerque é doutoranda em Educação, Mestra em Educação, Mestra em Ciências da Linguagem, psicopedagoga, pedagoga e professora universitária.

Referências bibliográficas

BÉRGAMO, Pedro. Atalhos para a Equidade. Brasília: Sedaex, 1996.
FILOMENSKY. Tatiana. Compras Compulsivas. Artigo Científico.
SCHILLING, Paulo R. O Fim da História ou o Colapso da Modernização?: O Fracasso do Neoliberalismo na América Latina. São Paulo: Cedi/Koinonia, 1994. (Dívida Externa, 6.)
VERSUTI, Andrea Cristina. “Eu Tenho, Você Não Tem”: O Discurso Publicitário Infantil e a Motivação para o Consumo. Campinas. 2010.
VIANNA, Claudemir Edson. O Processo Educomunicacional: A Mídia na Escola. São Paulo: Eca/USP, 2000.

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