Edição 87

Matérias Especiais

Cora Coralina: A Grandiosidade da Obra na Simplicidade dos Versos

Augusto França

Cora Coralina, de Goiás

“Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina.

Cora Coralina, tão gostoso pronunciar esse nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, surdinando música de sereias antigas e de Dona Janaína moderna.

Cora Coralina, pra mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada.
Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária.”

Carlos Drummond de Andrade
(Jornal do Brasil, cad. B, 27-12-1980)

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Assim escreveu em um dos maiores jornais do País o poeta mais influente da literatura brasileira, Carlos Drummond de Andrade, ao ter o primeiro contato com os escritos da poetisa nascida na cidade de Goiás, em 20 de agosto de 1889, Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas. Ana não. Ana, segundo a própria autora, era um nome muito comum, pois se alguém quisesse saber quem havia escrito determinado poema de sua autoria, provavelmente perguntaria: “Quem o escreveu?”; e responderiam: “Ana Lins”; “Ana? Que Ana? A Ana do fulano?”. Melhor Cora, de coração, e Coralina, de vermelho: Cora Coralina.

Cora Coralina é mais fácil. Se fosse Ana, iam perguntar: “Mas qual é essa Ana?” .“Essa é aquela e tal, filha de fulana.” E Cora Coralina é uma só!

Poetisa desde ainda criança. A obra de Cora Coralina impressiona a todos que a conhecem, pelas descrições que faz sobre situações do cotidiano do interior do País. Em seu primeiro livro publicado, Poemas dos becos de Goiás e outras estórias mais (Editora José Olympio, 1965), os versos de Cora fortalecem seu estilo de escrever sob um boom revolucionário da literatura no século XX.

[…] Conto a estória dos becos,
dos becos da minha terra,
suspeitos… mal afamados
onde família de conceito não passava.
“Lugar de gentinha” — diziam, virando a cara.
De gente do pote d’água.
De gente de pé no chão.
Becos de mulher perdida.
Becos de mulheres da vida.
Renegadas, confinadas
na sombra triste do beco.
Quarto de porta e janela.
Prostituta anemiada,
solitária, hética, engalicada,
tossindo, escarrando sangue
na umidade suja do beco.
[…]

Becos de Goiás (trecho).

Um dos fatores que mais impressiona na obra de Cora é o desconhecimento de normas gramaticais e ortográficas que permeiam o universo literário. Especialistas na obra de Cora afirmam que a grandiosidade de sua obra é diretamente ligada a essa simplicidade, pois seus versos descrevem com entusiasmo e emoção o que a autora quer passar para os leitores, despreocupando-se com as normas cultas, que não conhecia, e priorizando a mensagem ao invés da forma. Os únicos contatos de Cora com educação sistematizada foi o terceiro ano primário e, bem mais tarde, um curso de datilografia, graças às exigências de uma editora para publicar seus poemas.

Em Goiás, a poetisa viveu sua infância na casa onde nasceu. Em uma de suas entrevistas, falou de suas origens com muito entusiasmo, quando explicava o porquê de um quadro de cangaceiros e a fotografia de Padre Cícero ocuparem uma parede de sua casa:

Meu pai é nordestino; e minha mãe, goiana. Eu fiquei repartida no meio: da parte de minha mãe, sou mulher goiana, descendente de portugueses; da parte de meu pai, sou mulher nordestina e um pouco cangaceira. Daí, o Lampião na parede de minha casa, mais o padrinho Cícero.

A casa, construída em pau a pique em estilo colonial, pertenceu à Coroa portuguesa, onde na época era cobrado o quinto do ouro aos mineradores da região. A casa pertenceu à Coroa portuguesa até o ano de 1808, quando foi adquirida pelo bisavô de Cora Coralina.

Mas não foi em Goiás que Coralina viveu toda sua vida. Ainda jovem, apaixonou-se por um homem casado que não vivia mais com sua esposa. Isto era imperdoável pela sociedade, fazendo com que a poetisa se mudasse para São Paulo. Foram 12 dias a cavalo até Araguari, mais 2 dias de trem até a Estação da Luz, em São Paulo, de onde seguiu para Jaboticabal, onde viveu por 45 anos.

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Em busca das suas raízes

Em 1956, Cora retorna à cidade de Goiás, deixando o aconchego de toda a sua família (6 filhos, 15 netos e 30 bisnetos). A poetisa deixa claro que, quando ela volta para Goiás, não foi recebida com flores, mas, sim, com pedras.

Poetisa pelo acaso, doceira por convicção e necessidade. Em seu retorno à cidade de Goiás, volta à atividade de doceira. Seus doces glacerizados tinham a mesma doçura e sensibilidade de seus versos. Tanto, que em uma das visitas que recebeu, Diná de Queiroz, irmã da escritora Rachel de Queiroz, presenteou-a com um de seus doces, tendo recebido, mais tarde, a dedicatória:

Para Cora Coralina, ainda com o sabor de sua poesia e de seus inimitáveis doces. Por intermédio da grande Rachel, a saudade de Diná de Queiroz.

Cora, quem é Cora?

Cora Coralina sempre foi uma mulher à frente de seu tempo. Em um de seus poemas, faz uma autodescrição que encanta e impressiona pela convicção, suavidade, simplicidade e verdade transmitidas nos versos. Esta é a melhor descrição de Cora Coralina: a dada por ela mesma.

Cora Coralina, quem é você?

Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.

Nasci numa rebaixa de serra
entre serras e morros.
“Longe de todos os lugares”.
Numa cidade de onde levaram
o ouro e deixaram as pedras.

Junto a estas decorreram
a minha infância e adolescência.

Aos meus anseios respondiam
as escarpas agrestes.
E eu fechada dentro
da imensa serrania
que se azulava na distância
longínqua.

Numa ânsia de vida eu abria
o voo nas asas impossíveis
do sonho.

Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia caída e a república
que se instalava.

Todo o ranço do passado era presente.
A brutalidade, a incompreensão, a ignorância,
o carrancismo.
Os castigos corporais.
Nas casas. Nas escolas.
Nos quartéis e nas roças.
A criança não tinha vez,
os adultos eram sádicos
aplicavam castigos humilhantes.

Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados, e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.

Nunca os algarismos me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.

Sendo eu mais doméstica do
que intelectual,
não escrevo jamais de forma
consciente e raciocinada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a
consciência de ser autêntica.

Nasci para escrever, mas o meio,
o tempo, as criaturas e fatores
outros contramarcaram minha vida.

Sou mais doceira e cozinheira
do que escritora, sendo a culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata
a que está ligada à vida e
à saúde humana.
Nunca recebi estímulos familiares para ser literata.
Sempre houve na família, senão uma
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada
a essa minha tendência inata.
Talvez, por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim, no fundo dos meus
reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo.
Sobrevivi, me recompondo aos
bocados, à dura compreensão dos
rígidos preconceitos do passado.

Preconceitos de classe.
Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos.
Férreos preconceitos sociais.

A escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras o destino não me deu.

Foi assim que cheguei a este livro
Sem referências a mencionar.
Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.
Nem menção honrosa.
Nenhuma láurea.

Apenas a autenticidade da minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade
e este anseio:
procuro superar todos os dias
minha própria personalidade
renovada,
despedaçando dentro de mim
tudo que é velho e morto.

Luta, a palavra vibrante
que levanta os fracos
e determina os fortes.

Quem sentirá a vida
destas páginas…
Gerações que hão de vir
de gerações que vão nascer.
Cora Coralina morreu em 10 de abril de 1985. Sua obra é uma das mais apreciadas da literatura brasileira, despertando, como ela mesma escreveu nos últimos versos do poema Cora Coralina, Quem É Você?, o prazer pela poesia nas gerações que ainda hão de nascer.

Para saber mais:

Sugerimos uma visita ao Museu Casa de Cora Coralina. Nele, além de objetos usados pela poetisa, podemos encontrar sua biblioteca pessoal, documentos e histórias diversas. Podemos destacar a última peça de porcelana portuguesa e os cacos de uma outra peça, que inspiraram o livro O Prato Azul-pombinho. O museu está situado na casa onde viveu Cora Coralina, na Rua Dom Cândido, 20, Centro, cidade de Goiás.

Augusto França é pedagogo.
Contato: franca.augusto@outlook.com

Para ler:
O Prato Azul-pombinho – Cora Coralina
Editora Global – 40 páginas

Cora Coralina: Doceira e Poeta –
Cora Coralina
Editora Global – 144 páginas

Para assistir:
Cora Coralina: Todas as vidas
Direção: Renato Barbieri

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