Edição 57

Matérias Especiais

Da paixão de ensinar à paixão de aprender

Hamilton Werneck

Ensino e aprendizagem estão sempre juntos. É verdade que a visão cartesiana era diferente: o ensino deveria estar separado da aprendizagem, porque o ensino dependia do professor, e o aprendizado, do aluno. Muitos educadores ainda acolhem essa dicotomia até os nossos dias.

imagem_2O que impede a paixão pelo ensinar, por estar em sala de aula, atender alunos com dificuldades e envolver-se com os que têm grande dificuldade de aprender? Uma das razões é a nossa origem histórica como professores, porque somos originários da escravidão. Vivíamos em palácios e com os príncipes que educávamos, porém éramos escravos. Sentindo-nos sem autoridade, porque esta era delegada, sobretudo, aos soldados dos reinos antigos, nós, educadores, fomos estruturando em nós mesmos uma necessidade de ter autoridade e de poder exercê-la. Ainda hoje, muitos buscam inúmeras razões para dar ordens e determinar situações dentro da escola, sem a mínima razão de ser, apenas para demonstrar que têm poder, aquele poder que não tinham à época da escravidão. Trata-se de um mecanismo de compensação. E, quando o professor percebe que está fazendo algo que não representa fator relevante, frustra-se e se desapaixona.

Outra razão é o conservadorismo. Desenvolver práticas porque deram certo no passado nada garante a eficácia delas em nossos dias. Seguir tradições sem discernimento pode levar à frustração.

As escolas estão envolvidas pelo instrucionismo. Acreditam que o professor ensina e o aluno aprende. Quem acredita nisso, quando vê seus alunos repelirem certas aulas, parece estar diante de castelos que desabaram. Creio que deva ser frustrante, em todos os anos letivos, repetir as mesmas coisas, falando dos mesmos fatos, narrando os mesmos acontecimentos. Um ensino pelo ensino, sem a participação, sem as relações contextualizadas, perde o seu brilho e frustra o professor.

Quem imita um mestre antigo também não consegue se apaixonar porque imita. Não se trata de um educador original, trata-se de um imitador.

O mais grave em tudo é o descompromisso. Muitas vezes, ouvimos a fala de alguns professores referindo-se aos salários dizendo que, agora, “dançam conforme a música”: se recebem o que acham devido, trabalham; se não recebem, diminuem o ritmo, condensam a matéria e não criam nada de novo.

O resultado disso é desastroso porque, em pouco tempo, o professor sente-se inútil. Os educandos falam melhor dos computadores que dos seus educadores. O descompromisso poderá oferecer à sociedade uma plêiade de jovens também descompromissados, sobretudo com a vida. O resultado, para nós, professores, será frustrante quando, daqui a cinquenta anos, percebermos os mais novos aborrecidos com a nossa presença no mundo desejando enviar-nos para a vida eterna o mais depressa! O filósofo alemão Frank Schirrmacher prevê que a sociedade estará envolta numa revolução cultural muito forte, determinada pela demografia, e que a crise será instalada entre jovens e idosos, que, segundo o autor de Complô Matusalém, ainda sem tradução no Brasil, triplicarão até o ano de 2056 (Schirrmacher, 2004).

Mesmo que Massimo Canevacci discorde desse enfoque em seu livro Culturas Extremas, informando e deduzindo o aumento do conceito de juventude e derrubando os conceitos impostos pela demografia, um fato parece claro: o choque acabará existindo, e não será pela via do descompromisso e da inexistência de uma formação ética desapaixonante que chegaremos a bom termo.

Teoricamente, esses elementos apresentados impedem a paixão pelo ensinar, o que desemboca em práticas incentivadas pela sociedade, pela imprensa e pelos congressos de Educação, que, por sua vez, “tapando o sol com a peneira”, continuam a frustrar os educadores. Passa-se, então, a ensinar o que os alunos gostam de aprender. O resultado é simples: surgirão lacunas que derrubarão os alunos em fases posteriores. O professor ouve dizer que, agora, ele deve ser facilitador. O problema não é que o facilitador seja um mão-aberta, deixando que tudo aconteça. Se facilitar é um caminho para aprender mais, então ótimo, vamos facilitar. Mas a questão é mais profunda, porque, enquanto facilitamos, não podemos deixar de ser desafiadores. Irá crescer na vida quem vencer desafios, quem tiver coragem para superar obstáculos. Pedro Demo afirma, em seu livro Ironias da Educação, que conferência-show e aula-show não são locais de pesquisa, portanto, esse nosso momento é desafiador e incentivador, não é um momento de pesquisa que deverá acompanhar o educador pelos dias seguintes, meses e anos. Será o árduo trabalho do pós-congresso que trará de volta o saber mais profundo e a responsabilidade estribada em competência resultante de relevantes estudos.

Certas convicções erradas levam ao desastre profissional e à frustração desapaixonante: a) já aprendi o que tinha de aprender, agora somente devo ensinar; b) se participo de seminários e semanas pedagógicas, tenho tudo resolvido, cumpri com minha parte e nada mais precisa ser acrescentado; c) agora basta encantar os alunos, nem que seja com algum trabalho de grupo que não represente um fenômeno pedagógico relevante (Demo, 2005) e constitua apenas uma conversa fiada.

Além disso, o que frustra muito é a ditadura da beleza. Diante de uma modelo de 23 anos, uma mulher de 25 sente-se velha e feia (Schirrmacher, 2004). Muitos se acham velhos e feios diante dos alunos, cada vez mais produzidos pelos padrões da sociedade de consumo.

Impõe-se aos educadores uma reflexão sobre a bagagem que transportam; a quantidade de carga cognitiva sem expressão, de valores corrompidos e diluídos na sociedade consumista e de atitudes de descompromisso com as pessoas e com os projetos de educação.

Resta a questão sobre a possibilidade de ainda se apaixonar pelo magistério. Há caminhos e pistas seguras, e algumas delas são aqui colocadas para reflexão. Apaixonar-se sai caro e é preciso ser vocacionado para essa carreira. Além disso, o aprender sempre e o aprender a aprender devem acompanhar o professor. A capacidade de saber lidar com alunos com grande dificuldade para aprender (Morin, 2003) e ser capaz de ensinar o aluno a aprender fazem parte dessa paixão. Apaixonar-se não significa alienar-se. Portanto, buscar um melhor salário faz parte dessa questão, contanto que se apresente, ao lado das reivindicações, a competência correspondente.

A paixão, além de representar uma adesão ao projeto educacional da instituição em que estamos trabalhando, terá como consequência o “vestir a camisa” livre e conscientemente, superar obstáculos, comprometer-se, continuar lendo e pesquisando. Junte-se a tudo isso o otimismo gerado da esperança e a criação de oportunidades, e teremos um ser humano comprometido e apaixonado pelo que faz.

A realização profissional do educador acontece em vários espaços, porém é dentro da escola que ele é mais visível, por ser lá que a maioria trabalha. Quem se dirige a uma escola para trabalhar leva consigo um projeto e, lá dentro, deseja colocá-lo em prática. Aqui é importante salientar que não seremos nós, educadores, que realizaremos um projeto nosso dentro de uma escola que não é nossa. Nosso trabalho é para que o projeto da escola seja colocado em prática, então, dentro das possibilidades, podemos ajustar alguns de nossos ideais educacionais, e até projetos educacionais, ao projeto que a escola onde trabalhamos está desenvolvendo. Essa capacidade de conviver com projetos alheios para, em seguida, incorporar aos nossos, é vital para a realização de cada educador.

Decorre, então, uma questão simples e, ao mesmo tempo, vital: ao escolhermos uma escola para trabalharmos e, consequentemente, nos realizarmos profissionalmente, precisamos avaliar as relações entre o projeto da escola e os nossos. Se a discrepância entre um e outro for muito grande, a ponto de não haver possibilidade de assimilação, devemos buscar outro estabelecimento, porque, se não conseguirmos juntar ao nosso trabalho algum ideal que temos dentro de nós para sentirmos mais de perto as pessoas (Werneck, 2004), o trabalho será frustrante. Trabalhar em qualquer lugar, em qualquer instituição e não ligar para a realização será a adoção do professor como típico “dador de aulas” ou “piloto de livro didático”. Desses caricatos, a realização passa longe!

Todos esses elementos nos colocarão em pé de igualdade com a juventude de Culturas Extremas (Canevacci, 2005), uma juventude ocupada com a aporia, a non-order, o escape e a diáspora virtual. E, enquanto estivermos nós, educadores, perdidos diante do ciberespaço que eles dominam, convivendo com mercadorias tatuadas (as que usam códigos de barras) e, ainda de modo pior, na desilusão entre a fronteira entre a pessoa e seu site, não teremos razão para nos apaixonar. No entanto, quando assumirmos as nossas vidas, a real e a virtual, a metrópole com suas dispersões e o ciberespaço com sua virtualidade envolvente, estaremos dentro do paradigma moderno de uma educação que busca a inspiração no texto e nos contextos da vida humana.

Texto do professor e conferencista Hamilton Werneck, encontrado em http://www.hamiltonwerneck.com.br.

 

Referências bibliográficas

CANEVACCI, Massimo. Culturas Extremas. Rio de Janeiro: DPA Editora, 2005.
DEMO, Pedro. Ironias da Educação. Rio de Janeiro: DPA Editora, 2005.
MORIN, Edgar. Cabeça Bem Feita. Bertrand do Brasil, 2003.
SCHIRRMACHER, Frank. A Ditadura dos Jovens. Entrevista à Veja, 18 de agosto de 2004.
WERNECK, Hamilton. Educar É Sentir as Pessoas. Rio de Janeiro: DPA Editora, 2004.

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