Edição 72

Espaço pedagógico

Dia do Índio: a folclorização da temática indígena na escola

Edson Silva

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Ontem foi comemorado o Dia do Índio, e é bem possível que você tenha vivenciado alguma atividade sobre ele na sua escola. Nossa equipe foi conferir de pertinho como uma turminha está “viajando” na história e na cultura dos primeiros habitantes do nosso território. E não é que a garotada está dando um show?

O trecho acima foi publicado na versão impressa (p. 4) do suplemento Diarinho (www.diariodepernambuco.com.br), do jornal Diario de Pernambuco, no Recife, em 20 de abril de 2013, com o título Nossos Parentes e o subtítulo Garotada Vivencia Projeto que Valoriza a Cultura Indígena e nos Convida a uma Viagem ao Passado, que, como mostrado abaixo, estampa na capa a professora com um vistoso cocar de penas coloridas na cabeça e um grupo de crianças com o rosto pintado e, também, usando cocar de uma pena em sua cabeça. São estudantes do 2º ano no Centro Escolar Carochinha, localizado em Casa Forte, conhecido bairro com moradias de muitas famílias abastadas do Recife/PE.

Segundo a reportagem, foi realizado um conjunto de atividades pedagógicas, no primeiro ano de um projeto desenvolvido “com muito aprendizado, muitas brincadeiras e historinhas”, orientadas pela professora. As crianças produziram peças com argila e desenhos “característicos da cultura indígena”, além de “representarem o modo de se vestir, de caçar e até rituais apreciados pelos índios”. Observemos, ainda, o conteúdo da fala de uma das crianças, principalmente o tempo verbal utilizado: “Antigamente, os índios produziam não só o seu alimento e confeccionavam suas roupas, mas eles também fabricavam seus remédios, com ervas medicinais e plantas. Tudo isso nos foi passado em Ciências. Vale destacar que o Português foi criado por eles. A partir dessa descoberta, identificamos a origem das palavras” (p. 4).

Informou, ainda, a reportagem que, na referida turma, as crianças foram divididas em duas “tribos”: os meninos são da Curunais, e as meninas, da Carochinha; e, mesmo sendo de aldeias e “tribos” diferentes, vivem em paz, desejando apenas fazer “o ritual de celebração dos alimentos e da vida aos deuses”. A professora afirmou que a ideia central do projeto é incentivar a leitura e a escrita e que são vivenciadas “brincadeiras indígenas” e também são preparadas comidas e produzidos artefatos (p. 5).

No texto Os primeiros habitantes (p. 6), assinado por Gabriel Catunda, o autor afirma que, sobre a origem dos índios no Brasil, “ninguém sabe ao certo quando chegaram. Estima-se que há mais de 1000 anos”. Afirma, ainda, que atualmente existem mais de “200 comunidades indígenas, boa parte na Amazônia”. Prossegue o autor afirmando que “os índios vivem em aldeias e são comandados por chefes, os famosos caciques”. Os “índios” produzem seus alimentos, “e a pesca também faz parte da rotina”. E acrescenta que algumas tribos fazem comércio e consomem produtos industrializados comprados com a venda de artesanatos.

Já as crianças indígenas, “os curumins”, têm uma vida diferente da nossa, “vivem muito integradas à natureza” aprendendo no meio onde estão a partir das observações cotidianas. Gabriel Catunda escreveu que, dentre as brincadeiras das crianças indígenas, “tomar banho de rio é uma das atividades preferidas. Além disso, brincam de peteca, pião, jogos de sementes, dobraduras, bonecas”. E pergunta: “Quem não queria uma vida dessas?”.

Enfatizando que os índios não moram somente em ocas, como comumente se afirma, o autor escreve que as casas indígenas podem ser diferentes em formatos: oval, retangular ou redonda, construções de madeira, palha ou cipó (p. 6).

Ainda que sejam louváveis os esforços e a empolgação da Professora Jane Buarque e da criançada; olhando as fotografias, lendo os textos no referido suplemento, nos perguntamos: de qual índio estão tratando?! Quando serão mudadas essas imagens e esses discursos sobre os índios?! Em que consiste mesmo a afirmação “a garotada está dando um show”?!

Nas imagens e nos discursos sobre os índios, seja no ensino desde o nível básico até a universidade, seja na mídia e no senso comum, ainda predomina o apelo à folclorização, ao exotismo e ao romantismo. Desconhece-se, ignora-se muito os povos indígenas, as suas experiências, suas expressões socioculturais, os conflitos que vivenciam, as mobilizações pelo reconhecimento das suas organizações sociopolíticas por reivindicações, conquistas e garantia de seus direitos.

Percebe-se que a escola é uma das instituições responsáveis pela veiculação de conceitos e informações equivocadas a respeito dos índios no Brasil. Ainda é comum que a maioria das escolas, principalmente na Educação Infantil, na data 19 de abril, quando comemora-se o Dia do Índio, todos os anos venha repetindo as mesmas práticas: enfeitar as crianças, pintar o rosto delas, confeccionar penas de cartolina para colocar na cabeça, vesti-las com saiote de papel, geralmente verde, e não faltam os gritos e os cenários com ocas e florestas! Dizem que estão imitando os índios numa tentativa de homenageá-los! Entretanto, tal homenagem se refere a qual índio? As supostas imitações correspondem às situações dos povos indígenas no Brasil? Como essas imagens ficarão gravadas na memória dos estudantes desde tão cedo? Quais serão suas atitudes quando se depararem com os índios reais? Quais as consequências da reprodução dessas “desinformações” sobre a diversidade étnica existente no nosso país?

O que, muitas vezes, aprendemos sobre os índios na escola está associado basicamente à imagem que é também comumente veiculada pelas mídias: um índio genérico, com um biotipo de indivíduos habitantes na Região Amazônica e no Xingu. Com cabelos lisos, muitas pinturas corporais e adereços de penas, nus, moradores das florestas, de culturas exóticas, etc. Também os diversos grupos étnicos são chamados de tribos e, assim, pensados como primitivos, atrasados. Ou ainda imortalizados pela literatura romântica do século XIX, como nos livros de José de Alencar, nos quais são apresentados índios belos e ingênuos ou valentes guerreiros e ameaçadores canibais, ou seja, bárbaros, bons selvagens ou heróis.

Outra ideia equivocada é pensar e afirmar que os índios apenas participaram da formação do Brasil, como se os indígenas estivessem presentes somente no momento inicial da colonização portuguesa na fundação do nosso país, negando, dessa forma, que os povos indígenas se fazem presentes ao longo de toda a história do Brasil.

Os subsídios e livros didáticos usados nas escolas públicas e privadas, em geral, trazem, em seus textos e imagens, informações desatualizadas e deturpadas sobre “os índios”, contribuindo, assim, para a continuidade dos preconceitos e das discriminações contra indivíduos e povos indígenas.

Se, atualmente, no Brasil, a população indígena é contabilizada em cerca de 900 mil indivíduos, sendo 305 povos, que falam 274 línguas diferentes, habitando em todas as regiões do País, seja na planície litorânea, em locais montanhosos, nas florestas, nas serras ou planícies no Sul, nos campos e cerrados do Centro-Oeste, vizinhos a grandes ou pequenos rios, próximos a áreas pantanosas, no Sertão e Agreste do Semiárido nordestino, em áreas urbanas das metrópoles e de cidades menores, etc., com suas diferentes formas de ser e viver. Pensar os índios, portanto, é sempre pensar no plural. Como em imagens de um caleidoscópio formadas pelas diferentes expressões socioculturais dos povos indígenas.

Se existem povos que são agricultores, outros caçadores, outros coletores e/ou pescadores e/ou agricultores, outros praticam o comércio, outros produzem cerâmica, outros não, outros exercem simultaneamente todas essas atividades, como então pensar o índio genericamente?

Se, em Pernambuco, atualmente, habitam 13 povos indígenas, totalizando cerca de 53 mil índios (IBGE/2010), a 5ª maior população indígena no Brasil, sendo esse um dado bastante significativo, como então ignorar isso no ensino?! Quem são? Onde estão? Como vivem esses povos?

As desinformações, os equívocos e as generalizações constatadas no ensino a respeito dos povos indígenas revelam o longo caminho ainda a ser percorrido para superar ignorâncias que favorecem preconceitos. A Lei nº 11.645/2008, que determinou a inclusão dos conteúdos sobre a história e as culturas afro-brasileiras e indígenas, apesar de serem necessárias maiores definições no que se refere à temática indígena, representa possibilidades e desafios nas discussões do assunto em sala de aula.

Nas últimas décadas, diferentes grupos sociais conquistaram e ocuparam seus espaços exigindo um repensar sobre a organização sociopolítica e a história do Brasil. Foram questionadas as concepções de um país com uma cultura única e da mestiçagem como a identidade nacional. Identidades foram afirmadas, diferentes expressões socioculturais passaram a ser reconhecidas e respeitadas. A partir de suas mobilizações, os povos indígenas conquistaram também, nas últimas décadas, considerável visibilidade enquanto atores sociais, o que vem exigindo discussões, formulações e fiscalizações de políticas públicas que respondam às demandas de direitos sociais específicos.

Urge necessidade de uma formação pedagógica específica, bem como de subsídios e livros didáticos para atender às exigências legais. Faltam políticas públicas para os cursos de licenciatura, de magistério e formação continuada de professores sobre a temática indígena. Por outro lado, cabem às instituições educacionais privadas investir na atualização dos seus profissionais de ensino.

A efetivação da citada lei, além de provocar mudanças nas antigas práticas pedagógicas equivocadas, favorecerá novos olhares para a História e a sociedade. O que contribuirá para a superação das visões exóticas e folclóricas sobre os índios, na formação de cidadãos críticos — possibilitando o reconhecimento das diferentes expressões socioculturais existentes no Brasil e dos direitos das sociodiversidades dos povos indígenas.

Cabe às mães, aos pais e familiares responsáveis, aos profissionais e pensadores do ensino, à sociedade em geral ter a clareza de que a escola deve estar em sintonia com as dinâmicas sociais e, por isso, se mobilizar para que a Educação responda às demandas de seu tempo. Pois, se na nossa sociedade a escola tem um papel privilegiado na formação humana, com a efetivação dessa lei, será possível, no ambiente escolar, conhecer, respeitar e aprender a conviver com as sociodiversidades.

Se situações semelhantes a que aqui foi discutida ocorrem em um estabelecimento de ensino do porte acima mencionado, o que dizer de escolas das redes privada e pública situadas no interior ou nas periferias da capital?!

Sugestões de sites:

Índio Educa: www.indioeduca.org

Site organizado por indígenas estudantes universitários de diferentes etnias, que disponibiliza vários conteúdos sobre história, expressões socioculturais e informações atualizadas por meio de fotos, vídeos, textos, notícias da imprensa e, além de indicar subsídios, possui um link ajudando o professor para atender a consultas dos docentes.

Tema Indígena: temaindigena.blogspot.com

Esse blog, que é mantido por Kalna Teao, doutoranda em História na UFF/RK, como afirma em sua página inicial, destina-se à difusão da temática indígena em seus vários aspectos culturais, históricos, socioeconômicos e políticos trazendo sugestões de como discutir conteúdos sobre os povos indígenas nas aulas de: Geografia, Sociologia, Filosofia, Religião, Português, Inglês, Artes, Ciências, Educação Física, Matemática e Física.

Índios Online: www.indiosonline.net

Mantido por um grupo de indígenas em diferentes aldeias no Brasil, é um portal de diálogo intercultural, facilitando a informação e a comunicação para os vários povos indígenas e a sociedade em geral, objetivando promover os estudos, as pesquisas e as discussões sobre as expressões socioculturais indígenas para o respeito, a valorização e a salvaguarda das sociodiversidades indígenas por meio da disponibilização de textos, fotos, vídeos.

Índios no Nordeste: www.indiosnonordeste.com.br

Priorizando a divulgação de informações variadas sobre os povos indígenas no Nordeste brasileiro, esse site é mantido por dois pesquisadores e professores universitários que atuam naquela região. Além de disponibilizar o acesso a muitos textos históricos, dissertações e teses, possui um link com indicações bibliográficas sobre a temática indígena.

Instituto Socioambiental: www.isa.org.br

Portal que prioriza a Amazônia e promove campanhas sobre as temáticas indígenas e ambientais. Além de várias publicações impressas, disponibiliza um acervo on line com textos, notícias e informações sobre os povos indígenas em todo o Brasil, com links direcionados para o professorado as crianças e os adolescentes.

Conselho Indigenista Missionário – Cimi: www.cimi.org.br

Órgão da Igreja Católica Romana no Brasil, com atuação em todas as regiões no apoio à mobilização dos povos indígenas nas reivindicações pelas demarcações de suas terras e pelo reconhecimento de seus direitos. O Cimi publica mensalmente o jornal Porantim em sua versão impressa e digital, que traz informações atualizadas sobre os povos indígenas no Brasil, sendo, portanto, um excelente subsídio para discussões em sala de aula.
Filme: As caravelas passam (20 min.; disponível na Internet)

Sugestões de leitura

ALMEIDA, Maria R. C. de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro, FGV, 2011.

De autoria de uma reconhecida pesquisadora da UFRJ, esse livro de fácil leitura, pela linguagem clara e objetiva, a partir das abordagens e dos estudos mais recentes, traça um panorama/síntese sobre os índios na História do Brasil, sendo, portanto, indicado para docentes, estudantes e interessados em conhecer o papel e o lugar ocupado pelos índios ao longo da história do nosso país.

BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/Secad/Museu Nacional/UFRJ, 2006.

Disponível na Internet, esse livro apresenta, a partir da perspectiva de um indígena, um panorama histórico e atual sobre os povos indígenas no Brasil, discutindo temas como diversidade sociocultural, organização sociopolítica, territorialização, cidadania, educação e saúde indígenas.

GRUPIONI, Luís Donizete Benzi; SILVA, Aracy Lopes da. (Orgs.). A temática indígena na escola. São Paulo: Global, 2008.

Coletânea de textos elaborados por diferentes especialistas que, além de discutirem sobre os povos indígenas na história do Brasil, oferecem subsídios para a formação de professores, possibilitando novas práticas pedagógicas que superem visões estereotipadas sobre os povos indígenas.

Pois, se na nossa sociedade a escola tem um papel privilegiado na formação humana, com a efetivação dessa lei, será possível, no ambiente escolar, conhecer, respeitar e aprender a conviver com as sociodiversidades.

Revistas

Revista Historien: www.revistahistorien.com (Edição temática nº 7, ano IV, mai.-nov./2012).

Revista História Hoje: www.anpuh.org/revistahistoria/public (v. 1, n. 2 (2012)).

Nota

Agradeço a Maria da Penha da Silva pela leitura e discussões sobre as ideias desse texto, pelos comentários, pelas observações e sugestões sempre pertinentes.

Edson Silva é Doutor em História Social pela Unicamp. Professor no Centro de Educação/Colégio de Aplicação – UFPE Campus Recife. Leciona no Programa de Pós-Graduação em História/UFPE, no PPGH/UFCG (Campina Grande/PB) e no Curso de Licenciatura Intercultural na UFPE Campus Caruaru, destinado à formação de professores indígenas em Pernambuco.
Endereço eletrônico: edson.edsilva@gmail.com.

Referências

BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Povos indígenas e o Ensino de História: a Lei nº 11.645/2008 como caminho para a interculturalidade. In: BARROSO, Vera L. M;

BERGAMASCHI, M. A et all. (Orgs.). Ensino de História: desafios contemporâneos. Porto Alegre: EST/Exclamações/ANPUH/RS. 2010, p.151-166.

GRUPIONI, Luís Donizete Benzi; SILVA, Aracy Lopes da. (Orgs.). A temática indígena na escola. São Paulo: Global, 2008.

SILVA, Edson. História e diversidades: os direitos às diferenças. Questionando Chico Buarque, Tom Zé, Lenine… In: MOREIRA, Harley A. (Org.). Africanidades: repensando identidades, discursos e ensino de História da África. Recife: Livro Rápido/UPE, 2012, p. 11-37.

SILVA, Maria da Penha da. A temática indígena no currículo escolar à luz da Lei nº 11.645/2008. In: Cadernos de pesquisa. São Luís, v.17, nº 2, maio/ago. 2010, p. 39-47. (disponível on line)

SILVA, Edson. Expressões da cultura imaterial indígenas em Pernambuco. In, GUILLEN, Isabel C. M. (Org.). Tradições & traduções: a cultura imaterial em Pernambuco. Recife: EDUFPE, 2008, p.215-230.

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