Edição 16

Em discussão

Distúrbios da aprendizagem: a criança, a família e a escola

Formatura do ABC, dia de festa na escola e no lar. Mestres e pais atarefados com os preparativos do grande evento em que vão ser diplomados os alunos da classe de Alfabetização, concluintes da Educação Infantil que conseguiram aprender a ler e escrever. Professoras realizadas, confiantes do reconhecimento, mais que merecido, da missão cumprida. Para a criança, é como se ela dissesse: “— Sou inteligente, sou capaz, vou ganhar presentes, anel, diploma e muitos beijinhos de todos os que participam dos festejos”.

Mas como fica aquela criança que não conseguiu se alfabetizar? E a decepção dos pais por verem o filho excluído da turma vitoriosa? E a humilhação desse aluno? É possível que até deixem-no participar da festa, mas aquilo que ia ser um dos importantes marcos de sua vida não aconteceu. E agora?

Vamos situar essa criança como classe média, de condições socioeconômicas e culturais próprias de nossa realidade brasileira; não levando em conta as demais camadas sociais, devido aos excessos para mais e para menos, nem as variáveis de outras culturas. Vamos também considerar que o nível da escola e a formação da professora sejam suficientemente satisfatórios; que a idade cronológica do aluno, entre 6/7 anos, esteja de acordo com as normas e que a criança seja considerada normal quanto à integridade física, mental e emocional. Mas, apesar disso tudo, a criança não consegue aprender, nem chega a se alfabetizar e, mesmo se conseguisse, não usufruiria do seu potencial intelectivo e enveredaria por um desconsertante fracasso escolar. O que acontece, então?…

O que se espera de uma criança considerada sadia é que aprenda, tenha sucesso na escola, mas nem sempre é assim. E quando não se alfabetiza? Uma alfabetização bem-sucedida é fundamental para toda a vida acadêmica do indivíduo, caso contrário, vão ficar seqüelas no processo de aprendizagem e as dificuldades de aprendizagem vão se acumulando, deixando a criança e os pais cada vez mais perplexos e desesperados. Começa, então, uma peregrinação de consultório em consultório, em busca de um diagnóstico que justifique tal fracasso.

Quando os pais chegam à Clínica pedindo uma Avaliação Psicológica para o filho que não consegue se alfabetizar ou que, apesar de ler e escrever, não tem sucesso no aprendizado, várias questões são levantadas. Depois de uma profunda investigação pela anamnese, através da qual a história de vida da criança é examinada em todos os aspectos, chega-se a evidências de fatos surpreendentes:
Criança embrutecida – Situação gerada pelo fato de a mãe trabalhar os dois expedientes e deixar a criança entregue a terceiros que a põem num “quadrado” o dia todo, asseada e alimentada, mas sem nenhuma estimulação, sem convívio com outras crianças, sem afagos e sem uma mãe que a ponha nos braços para satisfazer suas necessidades de carência afetiva.

Criança superprotegida – Não a deixam fazer nada e, já em idade de ir para a escola, ainda usa a mamadeira, dão-lhe comida na boca, ainda não lhe ensinaram a pôr uma roupinha ou os sapatos; enfim, é o eterno bebezão. E bebê não estuda ainda e, conseqüentemente, não aprende. Às vezes, até que consegue, mas, na hora de fazer uma atividade, é incapaz de responder as questões, porque a mamãe ou a babá não está junto para dizer o que fazer. Em geral, esse tipo de criança também apresenta dificuldades na motricidade. Em ambos os casos, as crianças que não nasceram deficientes podem se tornar “deficitárias” por falta de estimulação.

Alunos que conseguem fazer uma boa redação, mas apresentam dificuldades de interpretar um texto ou de entender o enunciado de um problema de matemática e, por isso, apresentam baixo desempenho escolar. Onde situar o problema? Falta de leitura? Falha na compreensão do que leu? Dificuldade de passar da leitura para a escrita? Ou o entrave está na maneira de formular a questão para os alunos?
Adolescentes portadores de ótimo QI – Nesse caso, não justifica a repetência, o que ocorre como uma maneira que eles têm de castigar seus pais por se sentirem desrespeitados por estes. Nessa idade, eles estão muito confusos, porque ora são tratados ainda como crianças, ora como adultos, e o garoto não sabe onde se situar. Como a “impotência reforçada” é o lema de muitas famílias, e os castigos estão condicionados às notas vermelhas, os garotos se ressentem, pois as notas azuis nunca são elogiadas, porém o reforço negativo é implacável.

As causas de problemas de escolaridade, às vezes, passam despercebidas dos professores e dos pais. O aprender pode ser dificultado devido a problemas de naturezas diversas, do mais aparentemente simples até o mais complexo.

Como se trata de criança, é interessante iniciar pelo pediatra. Este investigará causas como verminose; anemia; adenóides e respiração dificultosa; otite, que prejudica a audição; viroses com o sistema imunológico baixo; e outras tantas coisas que deixam a criança sonolenta, cansada, desinteressada, deprimida, e tudo isso vai repercutir no desempenho escolar.

Problemas sensoriais, por exemplo: a criança tem um déficit auditivo e não consegue captar bem os sons e, logo, não consegue aglutinar, prejudicando sua alfabetização. Ou o problema pode estar em uma das cinco áreas da percepção visual, a saber: coordenação visomotora, constância perceptual, posição e relação espacial e percepção da figura-fundo. Só nesta última, por exemplo, a criança não consegue destacar o estímulo das demais coisas ao seu redor, tudo é estímulo ao mesmo tempo, e ela terá dificuldade de concentração. Esse é um caso bem típico da criança dita hiperativa.

Quanto à hiperatividade, é preciso identificar se a causa é de fundo neurológico ou emocional. No primeiro caso, a criança é portadora da Síndrome do Déficit de Atenção devido a transtornos na maturação neurológica, que geram distúrbios de conduta e de aprendizagem, embora a criança apresente um bom nível intelectual. Como resultante desse distúrbio, ela pode manifestar incoordenação motora, distúrbio de linguagem, falta de concentração para aprender, mostrar-se insolente e agressiva. Ela não pode controlar sua impulsividade, tornando insuportável o convívio social. Mas ela não é assim porque quer, há uma incapacidade de se aquietar. É bom saber disso, pois, em vez de castigo, ela precisa de compreensão e ajuda. Cabe aqui o diagnóstico diferencial, porque essa conduta turbulenta também aparece em problemas emocionais.

A dificuldade de aprendizagem também pode ser justificada por uma dislexia, que é um transtorno que ocorre em crianças que, apesar de uma experiência escolar convencional, não desenvolvem as faculdades lingüísticas da leitura e escrita, apesar da integridade de sua capacidade intelectual. Algumas nem chegam a se alfabetizar e as que conseguem trocam ou invertem letras, sílabas e palavras, tanto na leitura como na escrita. Podem apresentar disgrafia e desortografia. São crianças que precisam de tratamento. Porém as crianças só podem ser consideradas disléxicas depois da alfabetização, porque é comum, ainda no primeiro ano, a manifestação desses problemas. Assim mesmo, é importante a professora ficar atenta, principalmente para aquele aluno que veio de outra escola, com método diferente de alfabetização, e que está cometendo esses erros por não ter concluído todo o processo de aprendizagem da leitura e escrita.

Quanto ao aspecto mental, é importante entender que existem os que não aprendem porque não podem e outros porque não querem, isto é, não lhes interessa o saber. Eles estão alheios à nossa realidade. São crianças física e intelectualmente sadias, mas que estão encouraçadas, encapsuladas dentro de si mesmas. Como não simbolizam nada, também nada aprendem, desde que não tenham assistência. São as crianças psicóticas.

As crianças com leve déficit intelectual, tidas como “lentificadas” ou “limítrofes”, podem ter sucesso escolar, desde que lhes dêem mais tempo para aprender. É importante integrá-las em escolas regulares. Nesse caso, é importante conhecer e respeitar o nível de maturidade do menor.

Existem escolas especiais para crianças infradotadas, mas para as superdotadas fica-se a desejar. A maioria desses alunos, sem uma escola ou programação à altura de seu nível mental, fica irritada e desinteressada nas escolas regulares. Pais e professores precisam estar atentos para esse tipo de criança e promovê-la para uma turma mais adiantada ou para uma escola com maiores possibilidades de satisfazer o grau intelectivo desse aluno.

Às vezes, o problema não está na criança, e sim no desconhecimento das etapas do desenvolvimento infantil, caso ponham textos de metáforas para a criança interpretar, pois, segundo Piaget, dos sete aos onze anos, a criança, no Período Operatório Concreto, encontra-se, ainda, relativamente ligada aos aspectos fenomênicos do aqui e agora, precisando superar uma por uma várias propriedades do conhecimento, uma vez que seus instrumentos cognitivos são ainda suficientemente formais, desligados e dissociados do assunto com o qual trabalham (em matemática, também não conseguem resolver problemas de múltiplas variáveis). Psicologia do Desenvolvimento de Jean Piaget (Flavell, pág. 209).

Com o advento da puberdade e o início da adolescência, começam a aparecer novos problemas de escolaridade e outros conflitos com os genitores. Agora, os jovens apresentam-se desatentos, preguiçosos, dorminhocos, vivem sonhando acordados, etc. É que eles estão muito ocupados com as mudanças corporais, os efeitos hormonais, as espinhas no rosto, as intermináveis horas em frente ao espelho, o recolhimento ao leito para ouvir músicas, de preferência barulhentas e em inglês, e a eclosão da sexualidade com toda uma gama de conflitos. Estudar, que é bom, nada. Não sobra tempo, na cabeça não entra mais nada. É o caos… Os pais, desesperados, pocuram entender o que se passa. Depois de algumas tentativas de conversas e conselhos sem sucesso, partem para a ofensiva: castigos, agressões, etc. Entende-se o desespero de alguns pais: o tempo passa, o filho não estuda, o colégio é caro, e o prejuízo é grande. Passada a crise adolescente, os jovens entendem que os estudos são fundamentais para se obter uma profissão e um futuro promissor, principalmente na nossa cultura de classe média. Há famílias cujos pais são analfabetos, mas querem que o filho seja “doutor”, mas o jovem tem outras pretensões. E, mesmo, nem sequer herdou o gosto pelos livros. Em casa, fora a televisão, não há revistas nem jornais, o que ele gosta mesmo é de música, de dança, de teatro ou outra coisa qualquer. Nem é certo nem errado, apenas é diferente. Está aí Howard Gardner para justificar com sua obra Inteligências Múltiplas — a Teoria na Prática (Porto Alegre: Artes Médicas, 1995).

Os fatores emocionais, na maioria das vezes, são gerados por conta das desestruturas da família: são os conflitos do casal tratados na frente dos filhos; os processos de separações mal administrados; mudanças abruptas de cidade, de casa e/ou de escola, etc., que vão deixar a criança apreensiva, insegura, temerosa, dispersa e infeliz. Então, as mudanças constantes de escola são terrivelmente prejudiciais para o estudante. É uma falta de respeito à criança. Muitos pais nem sequer questionam com o filho sobre os sentimentos dele. A mudança pode ser até por um motivo justo, mas a criança tem o direito de dar sua opinião.

A maioria desses fatores são coisas que acontecem por falta de esclarecimento e são perfeitamente evitáveis. Como se faz um trabalho preventivo para os pais ou para todos aqueles que pretendam constituir família? Como seria importante lembrar à mulher grávida que ela não pode fumar nem tomar bebida alcoólica durante a gestação, que radiografia dentária é tão nefasta quanto qualquer outra, que ela precisa evitar situações perigosas, principalmente nos primeiros meses de gestação, para não ocorrer sangramento. Também mostrar ao pai a sua importância nesse período de espera de seu filho, proporcionando uma situação de vida mais sossegada possível à sua mulher, para que se forme e nasça uma criança forte e sadia.

Uma outra questão é que o ideal para a criança seria só começar a freqüentar a escola a partir dos três anos de idade, quando ela se encontra na fase de socialização, depois de ter nascido psicologicamente, adquirido sua identidade própria e se tornado uma entidade. Mas, infelizmente para a criança, ela está saindo cada vez mais cedo de casa para berçários, hoteizinhos, creches, etc., porque as mães precisam trabalhar fora de casa. Porém, aos três anos, a criança entra na fase de socialização e irá se beneficiar indo à pré-escola conviver com outras crianças. Num enfoque psicanalítico, a criança que se alfabetizou entra no período de latência, quando toda a energia libidinal está a serviço do saber.

Todas as considerações desse artigo são propostas que devem ser questionadas pelos pais e professores. O mais importante é que entendam que, se há algo errado com a criança, é preciso procurar ajuda e orientação profissional o mais cedo possível. Que não recriminem nem castiguem a criança, pois ela não tem culpa de suas dificuldades, mesmo que ela se apresente preguiçosa, sem iniciativa ou não queira ir à escola. É preciso investigar as causas desse comportamento.

A palavra mágica é respeito. Recomenda-se ao pai que preste atenção ao filho; que o trate como se fosse o filho do vizinho, isto é, com todo o respeito e consideração. O pai deve estabelecer limites aos filhos, mas também deve dialogar, pedir e pedir por favor: isso não lhe tira a autoridade paterna. O pai que entender isso terá sempre um filho amigo e será sempre o melhor amigo do filho. Tudo isso são pequenas coisas, mas de efeitos enorme no trato com as crianças.

Edna Gomes Gabriele (CRP: 02/0867) – especialista em Psicologia Clínica e Psicopedagogia; professora do Curso de Formação em Clínica Infantil para Psicólogos e Psicopedagogos.
ednagomesgabriele@ibest.com.br Fone: (81) 3421-7254

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DORIN, Lannoy. Psicologia da Criança. São Paulo: Brasil, 1978.
CAMPOS, Dinah M. de Souza. Psicologia da Aprendizagem. Petrópolis: Vozes, 1976.
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ROCHA, Paulina S. e Col. Autismos. São Paulo: Escuta, 1997.
SOUZA, Iracy Sá. Psicologia – a Aprendizagem e seus Problemas. Rio de Janeiro: José Olympo, 1972.
MANNONI, Maud. A Criança Retardada e a Mãe. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
FLAVELL, John H. A Psicologia do Desenvolvimento de Jean Piaget. São Paulo: Pioneira, 1975.

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