Edição 50

Economia para a Vida

Economia e vida: por um mundo de igualdade e justiça

Nildo Lage

img45

Desde os primórdios da humanidade, o homem desencadeia duelos intermináveis
para conquistar brasões e territórios. A sede de ter é insaciável. E, nesse
jogo de quem ganha mais, muitos pagam pela injustiça e ambição desmedida.

“Unir igrejas cristãs e pessoas de boa vontade na promoção de uma economia a
serviço da vida, sem exclusões, e construir uma cultura de solidariedade e paz”
são megaobjetivos, mas que estão ao alcance de quem se une para fazer o bem.
Além do mais, “denunciar a perversidade de um modelo econômico que visa, em
primeiro lugar, o lucro e aumenta a desigualdade e gera miséria, fome e morte”
não é uma missão impossível. A dificuldade é superar o maior desafio dos governos
em tempos de crise: conter a “informalidade, o trabalho escravo, a insegurança e

o desemprego”, que se tornaram o cartão-postal desta nação denominada Brasil.

Se quisermos nos livrar dessa infâmia, outros objetivos têm que
ser atingidos, como “educar para a prática de uma economia
de solidariedade, de cuidado com a criação e de valorização da
vida, interagir na realidade com justiça e solidariedade”.

Atingindo esses, outros serão resolvidos como o desafio do novo
milênio: “consumo responsável e consciente de terra, água e recursos
naturais e atenção à situação do próximo e do planeta”.
Tamanhos desafios são os temas e os intentos da Campanha da
Fraternidade para 2010 da CNBB: Economia e vida.

Esses propósitos são tudo de que o Brasil necessita para se
tornar o melhor país do mundo para se viver. Entretanto, cuidados
devem ser tomados. Entre eles, não permutar princípios
religiosos e fé com direitos humanos e trabalhistas. Focar
o alvo nos direitos humanos. Pois fé e dinheiro só falam
a mesma língua junto ao Altíssimo através da honestidade
da sua conquista, na devolução do dízimo. Como o próprio
filho do Ser Maior alertou no livro de Mateus 6.24: “Vocês
não podem servir a Deus e ao dinheiro”.

Na força do termo, economia exprime a essência do vocábulo
grego oîkos, que determina como necessidade básica a sobrevivência
no ambiente social. E, nas suas particularidades,
monitora uma sociedade corrompida de denodos e princípios,
fazendo com que a vida, organismo vulnerável, torne-
se dependente: alimento, moradia, estudo, saúde, vestuário,
lazer… Essas necessidades são supridas disformemente, transitando
entre a desigualdade, o desequilíbrio e a bonança.

Os números dessa realidade são tão alarmantes que chegam
à beira do absurdo, pois a distância entre ricos e pobres não
tem dimensão. Os humanos competem em tudo, discutem
acaloradamente por tudo (espaço, divisas, ideias) e se auto-
destroem para aumentar as cifras, desconhecendo partilha,
direito alheio, a própria vida. Ignoram que economia e vida
têm um relacionamento tão íntimo que a existência de uma
depende da sobrevivência da outra.

Nessa disputa para ser, existir e sobreviver para prorrogar o
retorno ao pó, tempo e espaço oscilam no gráfico da trajetória
humana num cair e levantar constante, pois as turbulências
econômicas arrastam a vida por caminhos em que
umas nações se agigantam ante o mundo, e outras se reduzem
ao ponto de comprometerem a própria sobrevivência
dos seus compatriotas.

O desnível é tamanho que o tempo se expropriou para muitos
que vegetam, vivendo à margem da própria existência,
desconhecendo o que é felicidade, amor e viver dignamente.
São aos milhões, aglomerados em praças, sob pontes,
campos de refugiados, na expectativa de um ato de caridade
para apreciarem o próximo pôr do sol, um novo alvorecer…
Para esses deletados da existência, a vida é, simplesmente,
estar de pé ou sentado à beira do caminho à espera de um
milagre… Vidas que não são vividas, amadas. Nada além de
um sopro que se debate para não se esvair de um corpo sem
alma, sentimentos, ideologia e perspectiva para o futuro.

Reduzir essa distância entre vida e economia para que a
dignidade e a igualdade reaproximem os homens não é um
desafio apenas dos governos, que debatem para promover
a inclusão. Todos são responsáveis. Todos podem contribuir
com uma parcela para transformar essa realidade.

img46

Mas, enquanto permanecermos de braços cruzados, voltados
para o próprio eu, enquanto o consumismo desenfreado
imperar, os países ricos continuarem sugando os pobres, a
ambição cerrar os olhos dos administradores que fingem
não ver ou desconhecem a verdadeira essência da economia
— que é a utilização adequada dos recursos de forma
que atendam às necessidades do cidadão —, a humanidade
continuará a ter duas espécies: abastados e indigentes.

No centro da crise, a autogestão é uma alternativa, mas democratizar
a economia sob influência de uma política paliativa
gera conflitos de interesses, pois a economia solidária
não é vista com bons olhos pelos que dominam, e, mesmo o
Brasil detendo o maior programa social do planeta, a auto-
gestão não aconteceu. Esse progresso poderia ser a solidificação
de um sistema em que a má distribuição de renda desagrega
uma parcela da sociedade que se torna dependente.

Apesar dos bilhões investidos, a miséria continua: não temos
uma saúde decente, uma educação que forme cidadãos,
um programa social justo ou que, pelo menos, contorne os
problemas emergentes… O apego ao dinheiro e ao conforto
é tamanho que valores se esvaíram a ponto de pessoas
gastarem fortunas com cachorros em pet shops e spas com
hidroginástica para que seus estimados não se estressem e
emagreçam, mas não se sensibilizam com uma criança num
sinal com uma mão estendida, numa praça, implorando uns
centavos para um pão.

Bichos e pessoas:
servidos à mesma mesa

A situação ganhou uma proporção tão espantosa que homens,
mulheres, crianças, cachorros e urubus se servem à
mesma mesa, disputam o mesmo alimento, o mesmo território…
Esse cenário desolador é um reflexo de que a humanidade
caminha a passos largos ao encontro do fim. E,
mesmo ante tantos sinais, poucos se movem ou fazem o
mínimo para amenizar o problema.

O alvo deve ser o despertar da sociedade, do eu que permanece
indiferente à dificuldade do próximo; conter o consumismo
em que os mais ricos permitem que os mais pobres
vegetem, para não perderem a pompa.

Se não se seguir essa linha, economia e vida continuarão
travando uma guerra sem fim, e muitas vidas prosseguirão
virando latas de lixo, removendo lixões, dormindo em calçadas
e viadutos, e a injustiça social, que impele milhões
a terem uma vida miserável, tornar-se-á uma muralha, deixando
os ricos mais ricos e os pobres mais miseráveis.

A economia, mesmo em constante estado de oscilação, garante
ao homem o sustento. Sem ela, paga-se um alto preço
para viver. Mas, num mundo de avareza, onde ganhar é

o alvo de todos, muitos ficam à margem da própria sorte,
levando uma vida subumana, alimentando-se de migalhas
dos programas que movimentam a economia, mas não promovem
o desenvolvimento. Programas que matam a fome,
mas não constroem a estrutura para crescer.
Um exemplo é a expansão do valor dos benefícios pagos pelo
Bolsa Família entre 2005 e 2006, de R$ 1,8 bilhão, que provocou
um crescimento adicional do PIB de R$ 43,1 bilhões e
receitas adicionais de impostos de R$ 12,6 bilhões.

Se essas cifras fossem distribuídas para sanar a pobreza através
de programas específicos, com ações e propósitos para
assegurar o futuro, teríamos avanços significativos. Como
garante o homem que faz, “Não basta a economia crescer.
Com os avanços tecnológicos no mundo, muitas vezes uma
empresa aumenta sua produtividade, sua rentabilidade, e
não gera um posto de trabalho!”. É Luiz Inácio Lula da Silva,
presidente do Brasil, quem declara.

Projetar o futuro de uma nação exige muito mais do que
visão e estabilidade econômica. É preciso conhecer os problemas
e geri-los com eficiência. Programas só funcionam
se direcionados para um fim que erradique um problema
sem sacrificar uma nação para suavizá-lo momentaneamente.
Construir o futuro exige um presente que não reflita
ameaças.

Já basta o passado de exploração, de vergonhas, de golpes
de Estado. O Brasil, como oitava economia mundial, já deveria
ter uma política interna com punições severas para
boicotar os sonegadores, diluir o corrosivo do progresso: a
corrupção, o festival de abusos dos administradores públicos.
O nosso Congresso é um exemplo claro disso.

Transformar essa realidade com leis rigorosas é pouco. É
preciso justiça para punir. Discernimento para distinguir
pobreza de desigualdade, para assim estabilizar as variáveis
pobreza, distribuição e renda. Esse quadro é nada além do
que o reflexo da irrealidade da renda per capita, fazendo com
que a necessidade de sobrevivência estimule a prostituição,

o trabalho infantil, o envolvimento com o tráfico e com a
criminalidade, intensificando o preconceito social que eleva
barreiras e impede mudanças.
Para amenizar o clima de um mundo onde impera a lei do
“quem tem quer cada vez mais”, é preciso fazer com que a
paz impere entre os homens através de mecanismos que
combatam males como a má distribuição de riquezas, para
que se possa erradicar o mal maior: a fome e a miséria.

A desigualdade de renda no Brasil é a terceira maior do
mundo. Uma lástima para uma nação que se enaltece por
ser a oitava economia mundial, credora do FMI… O país da
Copa, das Olimpíadas… Mas não consegue se desarraigar
das utopias e dos discursos essencialmente políticos com
projetos fabulosos que raramente saem do papel, ou saem
escoando as verbas pelo ralo da corrupção.

Outros preferem os sonhos, as expectativas, como o discurso
do papa no pátio interno da residência pontifícia de verão,
em Castel Gandolfo, para a oração mariana do Ângelus:

A Igreja Católica assegura todo o seu empenho em favor
da erradicação, do mundo, do flagelo, da fome e
das demais consequências da miséria. Todos temos a
nossa parcela de responsabilidade… Cada um de nós
deve usar os próprios bens não de maneira egoísta,
mas, sim, de maneira solidária. Diante da injusta distribuição
das riquezas, é preciso, de fato, recordar que
Deus destinou os bens da Terra a todos os seus filhos.

Perante tamanha preocupação, pergunta-se: por que o Vaticano,
que proporciona uma vida de rei ao papa, permitindo
que viva rodeado de ouro, não usa esse tesouro para amenizar
o sofrimento de tantas pessoas?

Esse dinheiro daria um fim na instabilidade, na insegurança,
na miséria de muitas vidas. Afinal, o Pai pede: “Construa
tesouros no céu”. Para que guardar a sete chaves se “a traça
e a ferrugem os consumirão”?.

Esse poderia ser o primeiro passo para milhares seguirem
as pegadas Daquele que pode nos conduzir para o caminho
mais ambicionado: o caminho da paz.

Discutir a economia como busca de uma distribuição justa
de renda é fácil, é um assunto que interessa a todos. Mas,
para defender a vida como patrimônio do Criador, é preciso
amar a vida, principalmente a do próximo. Pois entender a
vida é voltar ao pó, ao sopro, para compreender a evolução
da humanidade e distinguir os que defenderam a vida e os
que a boicotaram.

Para falar de vida, é imprescindível que seja alguém que
a aprecia, a respeita. “Mas o terror da Inquisição da Igreja
Católica executou dezenas, centenas, desde que a Santa
Inquisição foi estabelecida pelo Papa Gregório IX.” A Igreja
conquistou autonomia para julgar os homens, com poderes
para absolver, condenar e matar.

Se “a vida pertence a Deus e somente a Ele cabe tirá-la”,
com que direito a Igreja, considerada por muitos a senhora
feudal da Idade Média, tinha poder para interrompê-la?
Nesse período, a vida não era uma obra do Criador? A Sagrada
Escritura foi alterada para delegar poderes a uma
instituição religiosa? “Ide ao mundo e pregai o Evangelho

a toda criatura”, e não “faça do mundo um ambiente de
morte e dor”.

No período que marcou o domínio do poder religioso da
Igreja Católica Romana, as medidas eram simplesmente implacáveis:
tortura, perseguição e morte. Para atingir as suas
metas, tinham um verdadeiro arsenal que ia desde cadeira
inquisitória e do esmaga-cabeça ao Manual de Torturas, com
técnicas para arrancar confissões.

O azar de muitos foi a inexistência dos Direitos Humanos,
pois o envolvimento da Igreja com a política dava-lhe poder
absoluto, a ponto de agir como a senhora da verdade, da
razão, da lei e da justiça… E, se a Inquisição se prorrogasse
por mais alguns séculos, ganharia dimensões colossais, poder
divino ao ponto de se tornar “o caminho, a verdade e a
vida” para se chegar ao Pai; os seus corredores seriam uma
passagem obrigatória.

Antes de trabalhar os temas economia e vida, deve-se refletir
e rever os conceitos sobre o acúmulo de fortunas, cálculos
de como as economias do mundo podem ser usufruídas
para sanar os problemas de vidas que levam uma “vida” miserável.
Afinal, lidar com vidas e economia exige percepção,
princípios e propósitos genuinamente humanitários para
atender às necessidades de seres humanos, filhos do mesmo
Pai e herdeiros dos mesmos bens.

O Vaticano está tão preocupado com economia e vida que
reuniu a força de “todos os santos” para persuadir o soberano
Luiz Inácio Lula da Silva — que mexeu com o ponto mais
vulnerável do homem, que é a religião — a assinar, sem consultar
a sociedade, digo, de portas fechadas, um acordo que
proporciona privilégios exclusivos à Igreja Católica.

O documento é uma prova do apego ao material — o dinheiro
— e do descaso com o imaterial — a vida. Ele dá privilégios
como instituição do ensino religioso nas escolas públicas;
isenções fiscais e imunidade das instituições religiosas perante
as leis trabalhistas; manutenção com recursos do Estado
dos bens culturais da Igreja — prédios, acervos e bibliotecas.
Se isso acontecer, o Brasil de todos os credos, de todas
as raças e de todos os santos perderá a identidade.

O presidente do Brasil deu o primeiro passo assinando o
acordo com o Vaticano, a Câmara já fez a sua parte, ratificando-
o no dia 26 de outubro. E, se o Senado Federal — que
se encontra no centro de um furacão de escândalos — pegar
carona nessa onda de interesses e aprovar essa lei, estará assassinando
a maior democracia do mundo ao proporcionar
privilégios a uma instituição religiosa.

Pelo visto, a Igreja está incomodada com a “economia” dos
próprios bens, sem se preocupar com quantas vidas serão
sacrificadas com os recursos que serão destinados para ostentar
a supremacia da Igreja Católica. E o Brasil de Todos

— que nunca foi de todos, pois sempre esteve preso, atado
ao ventre de regimes e sistemas — será, simplesmente, um
posto avançado do Vaticano.

cubos