Edição 59

A fala do mestre

Educação como prática da liberdade: proposta otimista de resiliência na construção de uma sociedade humanística

“Fellipe de Assis Zaremba
Rosa Costa”

At world falls down

O homem existe — existere — no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se. Na medida, porém, em que faz essa emersão do tempo, libertando-se de sua unidimensionalidade, discernindo–se, suas relações com o mundo se impregnam de um sentido consequente (FREIRE, 1980, p. 45).

No âmbito da Educação, sobretudo da Psicologia da Educação, vários trabalhos de pesquisa têm sido produzidos recentemente sobre o assunto em virtude de sua relevância. Antes de tudo, é preciso deixar claro que optamos, dentre os existentes, pelo fator otimista de resiliência para constituir os significados inerentes a este trabalho, que objetiva defender a Educação como prática da liberdade frente à Educação instrumental e adaptativa. Sem pretensão de originalidade e polêmica, propomos examiná-lo enfocando-o — principal, mas não exclusivamente — a partir do contexto das reformas educacionais ocorridas na década de 1990.

1. Aspectos políticos e ideológicos

O contexto maior que orienta este texto são as mudanças nos processos normativos que marcam a Educação brasileira na década de 1990, com especial destaque para a Educação Básica. Nesse contexto, uma série de políticas públicas foi produzida tendo como objetivo a realização de reformas que, no discurso do Ministério da Educação, de empresários e de setores importantes da pesquisa, criariam as condições para adequar o sistema de ensino às novas demandas oriundas dos processos de trabalho.

Nos últimos trinta anos do século XX, uma profunda crise1 assola o capitalismo, com profundas consequências para as relações entre capital e trabalho, notadamente o desemprego estrutural, a precarização do trabalho, as mudanças nos processos de trabalho, etc.

É nesse quadro histórico que se insere o processo de reforma do Estado brasileiro, iniciado no governo de Collor de Melo e aprofundado nos governos posteriores. O discurso reiterado a todo instante era o de que as condições para a inserção competitiva do Brasil na economia internacional somente seria possível com a realização de uma série de reformas estruturais, o que implicava privatizações, desregulamentação, mudanças no financiamento público, reformas na Educação, etc.

Na década de 1990, com mais intensidade a partir de 1995, estabeleceu-se a reforma da Educação brasileira. A reforma da Educação Básica no Brasil está inserida num conjunto de estratégias fundamentadas na teoria do capital humano, estruturadas e iniciadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso.

Em primeiro lugar, variadas instituições, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird), a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI) produziram novos ideários educacionais que foram incorporados pelos gerenciadores das políticas educacionais.

Essas ideias encontraram grande aceitação no Brasil, fosse por parte das instituições, como o Ministério da Educação (MEC) e a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, fosse por pesquisadores.

Em segundo lugar, as reformas educacionais promovidas se intensificam no sentido de ajustar as políticas educacionais ao processo de reforma do Estado brasileiro, em face da aceitação de pressupostos do modelo de desenvolvimento econômico prescrito e dirigido por corporações financeiras internacionais.

O Ministério da Educação e do Desporto, para sensibilizar e mobilizar a opinião pública em prol da prioridade política das transformações educativas, produz um conjunto de textos sobre a reforma que pode ser classificado em dois grupos. O primeiro grupo apresenta textos institucionais, com objetivo de oferecer um consenso estratégico na implementação das reformas educacionais2. O segundo grupo é formado pelos textos legais da reforma, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN).

Cumpre lembrar que a lógica de uma Educação instrumental e adaptativa já se mostrava de forma consistente nos discursos iniciais e se tornaria um elemento mais visível à medida que as intenções de reforma produzidas na Educação se materializavam em políticas públicas. Estas lançaram na escola conceitos empresariais oriundos do universo produtivo, tais como a empregabilidade com expectativas completamente irrealistas em relação ao futuro numa visão quase exclusivamente hedonista da vida.

Esse sentido legitima a expectativa socialmente aceita do imediatismo e utilitarismo nas mais diversas dimensões das práticas sociais, inclusive da educação escolar, ao trazer para esta a ideia de que a função da escolarização é formar indivíduos capacitados para ocupar posições de trabalho na sociedade que lhe permitam acumular riquezas e aumentar o seu poder de consumo.

Dentro da lógica capitalista, demarcada pela lógica dos interesses privados e produtivos, que subjuga os mecanismos sociais em favor de interesses da classe dominante, mantendo o status quo, o mercado de trabalho passou a ser a única referência na determinação das diretrizes de formação escolar. Assim, o mercado, essa entidade abstrata, é apresentado na reforma como parceiro e orientador do perfil de formação do aluno desejado, influindo indiretamente no plano de trabalho docente e na prática do professor, tornando-o mais vulnerável e suscetível aos seus interesses.

Assim, a racionalidade subjacente às políticas educacionais difundidas pela reforma é a racionalidade empresarial com valores tangíveis para a competitividade e a produtividade com progressiva seletividade e elitização do conhecimento. As consequências disso são trágicas para a grande maioria da sociedade: a exclusão, o desemprego, a miséria e a violência.

2. Educação como prática da liberdade

“A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora sob pena de ser uma farsa” (FREIRE, 1980, p. 104).

Como o professor pode dimensionar o discurso a partir de uma Educação que não permite um processo de discussão mais amplo, que não favorece ao aprendente e ensinante uma socialização de saberes? Diante desse contexto, o professor continua reproduzindo o ensino da mesma forma que aprendeu, negando a oportunidade de descobertas. A busca de um novo rumo, de uma democracia, da humanização do homem brasileiro.

A escola é o locus da reforma, é o espaço de expressão dos anseios e das necessidades dos docentes, dos alunos e da sociedade, pois é uma instituição estabelecida para fins de socialização e transmissão da cultura. Mas ela é, também, espaço de disputa e de poder. Ameaças a essa situação desencadeiam reações as mais diferentes. É preciso enfatizar que a Educação é, a um só tempo, produtora e produto de cultura. A cultura social é produzida e reproduzida na dinâmica de um processo histórico-dialético de práticas sociais que se dão em diversas esferas, inclusive no cotidiano das práticas escolares. Entende-se aqui por cultura social o conjunto das culturas específicas criadas pelo homem e que possibilitam e regulam a vida em sociedade. A Educação, para Paulo Freire, é, acima de tudo, ação problematizadora, ou seja, está intimamente ligada ao contexto social em que vivem o professor e o aluno e onde o ato de conhecer não está separado daquilo que se conhece. O conhecimento está sempre dirigido para alguma coisa.

Tal educação deve problematizar os pressupostos dominantes da sociedade na qual ela acontece:

[A Educação] problematizadora parte exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens. Por isso mesmo é que os reconhece como seres que estão sendo, como seres inacabados, inconclusos, em e com uma realidade que, sendo histórica também, é igualmente inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da Educação mesma, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a Educação um “quefazer” permanente. Permanente, na razão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade (FREIRE, 1987, p. 72–73).

Nesse sentido, a Educação não deve ficar de fora do contexto sociopolítico, mas também não pode ser determinada por ele, pois deve, antes de tudo, interagir com a realidade, transformando-a. Por meio dela, tornam-se iguais, próximos, mas tornam-se também diferentes uns dos outros. Nesse sentido, a Educação é o movimento que permite a homens e mulheres apropriarem-se da cultura, estabelecendo com ela uma identidade. Tal movimento atribui à Educação uma dimensão de realização social e outra subjetiva, de realização individual.

Freire (1987) sinaliza a possibilidade real de construção de uma Educação realmente transformadora e formadora, que seja capaz de colocar o homem a serviço do bem-estar da humanidade, que seja capaz de construir uma nova escola sobre os escombros da irracionalidade do racionalismo que caracteriza a modernidade. É preciso ensinar os alunos a pensar, e é impossível aprender a pensar num regime autoritário com vistas a uma lógica empresarial. Segundo Freire, pensar é procurar por si próprio, é criticar livremente e é demonstrar de forma autônoma suas possibilidades sob o prisma da atividade intelectual. Também acrescentamos que pensar é refletir sua prática pedagógica, é buscar no outro o Eu que está dentro de cada um, é perceber que não estamos sozinhos, que não fazemos nada sozinhos, que quem ensina aprende e quem aprende ensina.

A escola sendo um instrumento — locus — de desenvolvimento individual, social e coletivo que colabora para a transformação do ser deve agir como mediadora do conhecimento, estimulando os docentes a uma prática de virtudes e atitudes inovadoras que venham a contribuir com a construção de uma sociedade melhor, onde haja compreensão da realidade e onde se possa pensar em novas possibilidades de ensino e aprendizagem, com novas concepções de conhecimento, de ciência e de verdade, preocupação com a solidariedade e com a construção de uma real democracia (com consonância cognitiva entre democracia formal e substancial).

3. Proposta otimista de resiliência na construção de uma sociedade humanística

Etimologicamente, resiliência é derivada do latim resiliens, que significa saltar para trás, voltar, recuar, retroceder e romper. Na estrutura etimológica anglo-saxônica, no inglês moderno, resilient remete à ideia de elasticidade e flexibilidade com capacidade de recuperação.

Nas Ciências Naturais, sobretudo a Física, resiliência é definida como a qualidade que os materiais têm de suportar a aplicação de esforços externos sem se romper (VIANNA, 2008, p. 20). A autora também argumenta que existem diversos fatores de resiliência diferentes entre si, cada qual articulado com as demandas específicas de seu contexto de atuação. No contexto da Educação, julgamos necessário utilizar o fator otimismo.

Consideramos resiliência otimista a capacidade intrínseca de o ser antecipar-se aos problemas e de crescer com as mudanças, na medida em que se projetam novas alternativas de interpretação da realidade (CASTRO, 2002).

O profissional em Educação é aquele que mais vivencia o ato e o fato no contexto de resiliência, é aquele que faz da sua prática pedagógica um grande escudo resiliente no contexto educacional. A resiliência ocorre em flexibilidade, sendo uma integração de processos psíquicos e maturidade.

Nessa perspectiva, acreditamos ser fator de ordem ao resiliente uma organização pertinente às práticas individuais e profissionais como: flexibilidade a cada situação; um olhar diferenciado às dificuldades; autoestima; perseverança; sempre manter-se aberto às adversidades através de competência, habilidade e integridade. Para tanto, faz-se necessário o saber cuidar de si mesmo para poder cuidar do outro. Autonomia, capacidade de relacionamentos, iniciativa, criatividade, ética e vivência de valores são fatores determinantes ao processo de resiliência.

Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que aprendemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significação (FREIRE, 1996, p. 50).

Diante do exposto, evidencia-se a necessidade de se desenvolverem atividades a partir de um perfil de Educação investigadora-inovadora que envolva o ser no seu íntimo no cotidiano escolar, na prática de uma democracia justa e de uma sociedade humanística, a fim de que se desenvolvam mecanismos para o enfrentamento de uma Educação com vistas à lógica instrumental e adaptativa.

Numa sociedade assim administrada, ajustada pela ação da lógica empresarial, como resistir? Como educar para a liberdade?

O grande impasse é o estabelecimento de um ponto de equilíbrio entre a exacerbação do poder, da economia, da técnica e da ciência em detrimento do humano. Nesse sentido, estímulos e motivação traduzem à resiliência otimista um meio de enfrentamento às adversidades da mediação escola-sociedade.

O exercício de uma educação escolar humanística é vital para qualquer sociedade que objetive praticar uma cultura de paz formativa com vistas à liberdade. Nessa perspectiva, é necessário veicular todo o contingente de fatos, ideias, debates, confrontos, ideologias, normas, enfim, toda dinâmica que supõe a vida em sociedade igualitária.

Nesse sentido, foi possível compreender as tendências curriculares estudadas e a necessidade de inclusão da formação humanística na formação propedêutica.

Esses posicionamentos não são gratuitos, pois a importância de uma atividade docente otimista resiliente num ambiente escolar reside na esperança de consolidar uma prática docente cuja Educação deve servir para a construção do conhecimento que produz uma sociedade melhor do que a atual.

1 Os anos 1970, uma década de crise e recessão na economia mundial, assinalaram o esgotamento do modelo de crescimento adotado no pós-guerra, encerrando um longo ciclo ascendente da economia capitalista. A crise dos anos 1970 ficou conhecida nos meios de comunicação como “crise do petróleo”. Efetivamente, a década conheceu dois grandes choques altistas do preço do principal combustível das economias industriais, que passou de menos de dois dólares o barril para quase trinta dólares durante o período.

Indiscutivelmente, o choque do petróleo foi um componente essencial da “crise dos 70”, atuando como poderoso acelerador da inflação nas economias desenvolvidas. Contudo, o petróleo não pode ser visto como causa de uma crise de natureza estrutural, que já se manifestava antes da primeira alta do preço do barril e que era condicionada pela completa alteração das condições gerais que tinham impulsionado o ciclo ascendente das décadas de 1950 e 1960.

2 Tais textos documentais encontraram campo entre os setores dominantes a que tais preposições interessavam, articulando lobbies para fazer aprovar posteriormente a legislação. A estratégia publicitária foi intensamente utilizada, antes mesmo do lançamento dos textos legais, e se expressou por campanhas vinculadas por rádio e televisão, além de uma série de teleconferências organizadas pelo MEC.

Fellipe de Assis Zaremba é Mestre em Educação pela Universidade Nove de Julho (Uninove). Graduado em História e Pedagogia e professor de Sociologia nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU).
Endereço eletrônico: fellipeazaremba@yahoo.com.br.

Rosa Costa é mestranda pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Graduada em Pedagogia. Pós-graduada em Recursos Humanos em Educação (UFPE). Endereço eletrônico: rosacostaf@ig.com.br.

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