Edição 54

Matérias Especiais

Educação é o maior entrave do desenvolvimento brasileiro

Bárbara Mengardo,
Hamilton Octavio de Souza
e Tatiana Merlino

O professor Moacir Gadotti é um dos mais respeitados educadores brasileiros.
Lecionou nos vários níveis do ensino e nas principais universidades do País.
Aposentou-se pela USP depois de 46 anos de magistério. É autor de muitos livros, inclusive em parceria com Paulo Freire — com quem estudou nos anos 1970, na Suíça. Foi assessor de Freire na Secretaria de Educação de São Paulo, durante a gestão da Prefeita Luiza Erundina (1989–1992). Atualmente, é diretor do Instituto Paulo Freire, que desenvolve inúmeros projetos de Educação Popular.
Nesta entrevista para Caros Amigos, Gadotti analisa a situação da Educação no Brasil, aponta por que o País não conseguiu erradicar o analfabetismo e indica os pontos de avanço e de atraso no sistema educacional.

Caros Amigos – Fale sobre a sua trajetória, como se tornou educador, quando passou a trabalhar com Paulo Freire.
Moacir Gadotti – É muita responsabilidade falar de si mesmo, não é muito fácil. Mas eu acho que eu sou um professor, simplesmente. Tenho 46 anos de magistério. Trabalhei desde a pré-escola até a pós-graduação, hoje ainda continuo na USP.

CA – Está na USP ou na Unicamp?

MG – Na USP. Aposentado no ano passado, mas continuo dando aula e orientação na pós-graduação.

CA – Como começou na área da Educação?

MG – Eu comecei como professor de Matemática, quando estava fazendo o curso de Pedagogia. Terminei em 1967. Iniciei também um curso de Filosofia, mas demorei dez anos para terminar, porque estava trabalhando e estudava, foi difícil.
Então eu comecei dando aula de Matemática, porque o curso de Pedagogia daquela época dava uma licença para ensinar Matemática nas séries iniciais, não era Matemática
avançada. Trabalhei em creches, em pré-escolas, dei aula de Filosofia depois que terminei o curso de Pedagogia.

CA – Em São Paulo?

MG – Em São Paulo. Eu cheguei a dar aula em oito escolas ao mesmo tempo.

CA – No ensino público?

MG – Ensinos público e privado. Havia uma aula minha de Filosofia que, depois de 1969, foi substituída por Educação Moral e Cívica; foi proibida a Filosofia. Eu me lembro muito
bem, nesse dia eu estava lecionando no Colégio Sagrado Coração de Jesus, e a diretora me falou assim: “Olha, a partir de hoje você não é mais professor de Filosofia, você é professor de Moral e Cívica, e aqui está o programa”. Aí eu disse: “Bom, então eu vou passar a ser professor de Educação Moral e Cívica, mas não vou mudar o programa”, o programa já estava em andamento. Uma história daquele período difícil. Depois eu terminei meu curso de Filosofia. Comecei a dar aula de Filosofia na Faculdade Nossa Senhora Medianeira, na Avenida Paulista, enquanto concluía, na PUC, o mestrado. O mestrado,concluí em 1973 e, no mesmo ano, fui para Genebra fazer o doutorado a convite de uma associação de Filosofia de lá.
Participei de um concurso em 1973, havia uma só vaga de bolsista, e consegui ganhar essa única vaga. Eu também queria
muito ir a Genebra porque Paulo Freire, em 1970, tinha se mudado para lá, e eu tinha trabalhado, em 1967, com o seu primeiro livro, que era Educação como Prática da Liberdade, no trabalho de conclusão de curso de Pedagogia.

CA – Ele estava exilado nessa época?

MG – Ele foi pra Genebra em 1970, o exílio começou em 1964.
Foi primeiro para a Bolívia, depois para o Chile, fez uma rápida passagem pelos Estados Unidos, em 1969; em 1970, ele foi pra Genebra; e, de lá, voltou ao Brasil em 1980. Então eu peguei esse período até 1977 com ele, voltei ao Brasil a convite da Unicamp, em 1977. O Paulo conseguiu voltar definitivamente em 1980 como professor da Unicamp e da PUC. Eu lecionei na PUC-São Paulo, na PUC-Campinas e também na USP, mas eu comecei na Unicamp. Então isso é, um pouco, a minha trajetória. E nesse período também me envolvi na fundação do PT, fui um dos dirigentes da Fundação Wilson Pinheiro, que era a fundação do Partido dos Trabalhadores na época, um grupo extraordinário, foi uma grande escola para mim. Tinha a Marilena Chauí, o Paul Singer, o Florestan Fernandes, o Perseu Abramo. Então, para mim, foi uma vivência muito bonita, de participar da executiva do partido como membro da fundação. Foi lá que eu escrevi o livro Pra Que PT, sobre a origem do PT. Foi lançado na campanha presidencial de 1989.

CA – Você participou também da gestão da Prefeita Luiza Erundina em São Paulo?

MG – Na época da fundação do PT, o pessoal estava muito envolvido com Educação. Então, a gente tinha um pé na escola, um pé na militância. E, para mim, o Paulo Freire também foi uma grande escola, uma escola de formação mesmo como ser humano, como educador. Então, em 1989, fui ser assessor de gabinete na prefeitura. Acho que o Paulo deu, para a Educação brasileira, uma contribuição enorme, por várias razões: primeira, a fundação do Mova, Movimento de Alfabetização, para mostrar que, na superação do analfabetismo brasileiro, é preciso que a sociedade se envolva. O Estado não dá conta sozinho, a luta contra o analfabetismo exige a mobilização da sociedade. Nós tivemos 97 convênios de uma vez só, e não era só para alfabetizar, ele queria fazer uma alteração social. Eu lembro que algumas entidades não tinham condição alguma de fazer convênio com a prefeitura mais burocrática do planeta. Então, o que ele fazia? Tinha um departamento jurídico para ajudar as entidades a se estruturarem, terem um estatuto, gerarem uma diretoria, terem uma sede e, assim, fazerem o convênio. A ideia era a
de que Educação não era só ensinar o bê-á-bá, era ensinar a população a ser soberana. E, para ser soberana, precisa ter organização social. A Educação tem esse papel, não tem que ficar só na questão do letramento, precisa conscientizar. O Paulo nunca abandonou a ideia da emancipação, da luta pela libertação, da Educação como caminho para a libertação do ser humano, como um direito. A emancipação é um direito. É um direito de quem vai à escola. A emancipação humana passa pela formação da consciência. Então, o Mova foi algo extraordinário que devia ter sido assumido como
política pública no governo Lula, que nós, como movimento social, propomos como um avanço da sociedade brasileira nesse sentido.

CA – Por que o Brasil não conseguiu até hoje erradicar o analfabetismo?

MG – Bom, primeiro existe um atraso secular, de décadas, um atraso crônico na Educação brasileira que vem desde os jesuítas, a colônia, o império, a república. Nós despertamos para a Educação no século XX, na década de 1930, já que na década de 1920 tivemos as primeiras formações de educadores.
Então, esse atraso é crônico, o esforço é muito maior do que o esforço de dois governos. Nós tivemos um dado muito negativo que saiu no dia 19 de setembro de 2009, do Pnad. Eu me lembro dessa data porque dia 19 é o dia do nascimento de Paulo Freire, ele completaria 88 anos nesse dia. O dado é que aumentou o número oficial de analfabetos no Brasil de 2007 para 2008, foram dados do IBGE de 2009. Aumentou o número.
Nós temos hoje o mesmo número de analfabetos que tínhamos quando Paulo Freire deixou o Brasil para ir para o exílio: 15 milhões. Continua e aumentou. Quer dizer, essa pergunta procede. Aumentou em número absoluto, e diminuiu a taxa de analfabetismo, de 9,9% para 9,8%; a taxa caiu 0,1%.

CA – Mas aumentou a população…

MG – Aumentou a população. O Estado de São Paulo deu uma grande contribuição para isso. No Estado de São Paulo, nós temos mais de 600 mil analfabetos; só na região da
Grande São Paulo, em torno de 600 mil.

CA – Na Grande São Paulo?

MG – Na Grande São Paulo. Então, o analfabetismo é a negação de um direito. O analfabetismo tem a ver com um conjunto do bem viver das pessoas. Imagina agora:
chegamos a ter mais de trezentas classes de catadores de produtos recicláveis de lixo. Imagina que a pessoa está na rua das 5 horas da manhã até as 7 horas da noite, catando
lixo, e às 7 horas da noite vai para uma sala de aula. É muito difícil essa pessoa ter condições, depois de um dia passando fome, de se alfabetizar. Então, as condições sociais são determinantes. Condições sociais de moradia, de trabalho, de emprego, de saúde, fora a Educação. A Educação não está desligada, não é um problema setorial, é um problema estrutural com os outros condicionantes. Então, a qualidade da Educação tem a ver com esses outros fatores, está ligada. Não estou dizendo que é preciso, primeiro, resolver o problema da moradia, do emprego, do transporte, para depois resolver a Educação. Isso vai ser junto. O nosso analfabetismo é muito maior do que o de outros países da América Latina. A taxa do Mercosul, por exemplo, é de 2,5%, 3%, a nossa é de 9,8%, são 15 milhões de pessoas. Vou dar dois pontos em que o atraso continua, em que nós paramos, simplesmente estacionamos: Educação de Adultos — nós
praticamente estacionamos nos analfabetos — e o outro é a creche, de 0 a 4 anos, em que 34% das vagas são pagas e apenas catorze em cada cem crianças de 0 a 4 anos têm acesso.

CA – O que isso representa?

MG – Bom, claro que não vamos considerar que nasceu e já vamos colocar em uma creche, mas quando eu vejo, principalmente em São Paulo, que uma mãe trabalhadora,
empregada doméstica, sai lá da zona leste para trabalhar nos Jardins e amarra, acorrenta, uma criança de 4 anos, e é responsabilizada criminalmente por isso, quem deve ser responsabilizado é o Estado. A prefeitura daqui tem 84 mil pedidos de vagas em creche que não são atendidos. É um crime que se faz com essa criança e com essa mãe. Como é que está uma mãe que vai trabalhar em uma casa? É de chorar isso aí, é de chorar, é de arrepiar. Eu me coloco na pele dessa mãe que deixa uma criança em casa, que não tem onde deixar ou que deixa com uma outra de 7 anos.
Essa criança teria que estar na escola, caramba! Não pode. E é isso que nós sustentamos ainda. Não podemos ficar com 84 mil crianças esperando, em São Paulo, para ter uma vaga em creche. Está certo que tem muitos problemas, mas eu acho que começa na base. E quando se fala em Ensino Fundamental, por que a Unesco coloca a gente lá em 88º lugar? É porque há muita evasão. A gente matricula as crianças, mas a média de evasão da primeira à oitava série está em torno de 20%.

CA – É uma quebra de 20%?

MG – É uma quebra de 20%, e se mantém. E há 40% de defasagem em torno da questão idade-série. Então, a criança está fora da série em que deveria estar. Isso causa, primeiro, um custo muito elevado, porque você paga duas, três vezes a mesma matrícula. Então, a evasão custa caro para o Brasil. Eu sei que o Governo Federal avançou muito, não só nas últimas décadas; eu diria até, fazendo jus ao que o FHC fez há oito anos, ele deixou uma boa legislação. Deixou um Plano Nacional de Educação, que, bem ou mal, faz um diagnóstico; deixou uma lei de atividades, bem ou mal, se fossem cumpridas, dariam uma boa base; deixou o Sistema Nacional de Avaliação de Educação Básica; do ponto de vista legal, deixou o Fundeb; deixou os Parâmetros Curriculares Nacionais. E Lula avançou mais ainda. Os três ministros de Lula avançaram. Que há um avanço é reconhecido, há avanço. Mas naqueles dois pontos, para mim, acho que nós ainda precisamos avançar muito.

CA – Vamos retomar um pouco o ponto do analfabetismo.

Você não concluiu a resposta do analfabetismo. MG – Então, a resposta do analfabetismo é que, no caso, é muito mais difícil você zerar no Ensino Básico, alcançar o analfabetismo zero. Tem que ter cuidado com esse slogan, eu vi isso em outros países, na Venezuela, nos Estados Unidos. Cuidado, porque não é só saber ler, só saber assinar
o nome, é muito mais que isso. Mas haverá, sempre haverá, mesmo nos países mais avançados, sempre tem lá 0,1%, 0,5% ou 1%. Não é zerar. Mas, digamos, ter o índice
de analfabetismo razoável de 2%, 2,5% muitos municípios conseguem. Eu mesmo nasci em um município em que, na minha época, não havia nenhum analfabeto, município pobre
de Santa Catarina.

CA – Você é de onde?

MG – De Rodeio, em Santa Catarina, e hoje têm analfabetos lá. Na época não tinha, não existiam analfabetos porque existiam escolas paroquiais, criadas pela comunidade; não
havia nem escola pública, mas escolas das igrejas. Não havia escola para crianças de 0 a 3 anos, apenas para a escolaridade de 3 a 4 anos. Mas, então, há uma dificuldade muito grande porque o Estado não chega a certos lugares, por isso seria preciso de mais ONGs e movimentos sociais comprometidos, igrejas comprometidas, para chegar lá, nesses territórios da cidadania em que é difícil de se chegar.

CA – Quais foram os erros que o Brasil cometeu para não baixar os índices do analfabetismo?

MG – Olha, claro que a escolarização é um fator importante.
A escolarização, você pôr a criança na escola, é importante, porque a taxa de analfabetismo vai diminuir. Vou dar um dado: hoje, se nós considerássemos os estados brasileiros, excluindo os estados do Nordeste, nós teríamos 2,6% de analfabetismo no Brasil.

CA – Infantil?

MG – Não, não. Adulto, a partir dos 15 anos. E 2,6% é uma taxa bem baixa. A maior contribuição para o analfabetismo está no Nordeste; há município que tem 30%, 40% de analfabetos. O Estado do Maranhão tem em torno de 19%, hoje está com 800 mil analfabetos. É o estado que tem mais analfabetismo, ao lado de Alagoas. Em número de analfabetos, a Bahia também contribui muito. Então é porque não houve a mesma taxa de escolarização que o Sul teve, que o Sudeste teve.

CA – Demos um passo atrás no processo de envolver a sociedade?

MG – Toda vez que o governo quer envolver a sociedade, há uma reação muito forte da direita deste país. Quando ele quer envolver. Agora, nas conferências nacionais, na definição das políticas públicas, vê-se toda a carga da elite brasileira, que quer impedir que a população tenha mecanismo de controle deixado ao mercado. No caso do Plano Nacional de Direitos Humanos está claro, da Conferência Nacional de Cultura, da Conferência Nacional de Comunicação. A direita está muito atenta, ela lê nos detalhes. Porque ela foi buscar uma expressãozinha lá de um documento. A gente pensa que ela não está viva, mas ela está muito viva, muito atuante, muito articulada e reprime qualquer tentativa de uma democracia direta, por exemplo. É constitucional a democracia participativa; está na Constituição, caramba! É um direito da população, é um direito constitucional eu poder manifestar a minha opinião em uma conferência. Então, o governo avançou muito nos compromissos, portanto ele encontrou um caminho. O Luiz Dulci é um dos caras que discute para encontrar esse caminho das conferências. Milhões de pessoas, mais de 4 milhões de pessoas participando das mais de trinta, quarenta conferências. Houve uma ação estratégica da mobilização de participação popular que foi a das conferências. E que, quando avança um pouquinho, existe um movimento de repressão.
CA – Como você define o que é direita no Brasil?

MG – Eu acho que aí é: no momento em que você toca em alguns pontos, ela se manifesta. Nessa questão, por exemplo, eu estava gostando muito do Plano de Direitos Humanos, eu acho que ele ainda vai dar um grande avanço. Mas, por exemplo, ela se manifesta por meio da mídia, do impacto da mídia, que é raivosa com a situação, é brava. Não vou dar nem exemplos aqui. No debate que houve sobre os direitos humanos, é mexer com o capital privado. Ela se manifesta aí nesse controle da informação. Sob o pretexto da liberdade de expressão, constrói-se o monopólio da expressão.
Eu acho que o MST, quando mostrou que o governo gasta muito mais com a própria imagem do que com a alfabetização, no boletim do MST que eu vi, deixa claro como a mídia ainda controla as verbas do governo em relação à publicidade.
Então, Lenin dizia que análise de conjuntura é análise de correlação de forças. Conjuntura significa correlação de forças. Eu acho que nós não conseguimos implantar a
democracia participativa como está na Constituição. Nós temos algo em democracia representativa, nós avançamos, bem ou mal, nós avançamos. Mas não avançamos no mesmo ritmo com a democracia participativa. Porque o artigo primeiro da Constituição fala exatamente isto: que todo o poder emana do povo seja por meio de representantes ou diretamente nos termos dessa Constituição. Esse “diretamente” é uma palavrinha tão pequena na Constituição, mas está no parágrafo primeiro do artigo primeiro. Tem uma força muito grande. E nós não temos correlação de forças para conseguir diretamente. No que nós avançamos foi nas conferências.
E seria preciso que a mídia alternativa e os demais veículos de comunicação apoiassem as conferências. Que elas estivessem mais presentes nas conferências, porque é a única porta que se abre para a democracia direta. A Educação tem papel importante para se educar para a democracia direta. Então, quando nós insistimos nisso na primeira escola,
no projeto pedagógico, na participação da comunidade, na escolha direta dos dirigentes da escola, não é porque é mais eficaz no que é específico da Educação, que é o ensino-
aprendizagem, mas porque forma para a cidadania. Se fosse só para se formar, não seria necessário o ensino da cidadania, mas apenas de mecanismos concretos. Isso está
na Constituição. Quando a Conferência Nacional da Comunicação fala que é preciso criar uma comissão para poder analisar os casos de desrespeito aos direitos humanos, não é uma intervenção na liberdade de expressão e imprensa. É um exercício de cidadania.

CA – Qual a avaliação que faz da situação da Educação formal?

MG – Como sempre, a questão é complexa, e não vou me ater a apenas um fator. Vou dar dados que eu gosto muito de dar: em 1996, no final do ano, foi promulgada a LDB, que amplia de 180 para 200 os dias letivos. Qual era a intenção da lei? Era melhorar a qualidade do ensino. Em 2004, saía a primeira avaliação do desempenho do aluno, que foi menor depois do aumento de 180 para 200 dias letivos. Não funcionou. Eu até mandei uma carta para o Tarso Genro porque me questionava isso. Então escrevi para ele: se aumentando o número de dias letivos piorou, vamos voltar a 180 dias, que temos a chance de melhorar. Aí, a questão da progressão continuada piorou, porque o aluno passa sem saber. E aí o Lula falou que agora depende da formação dos professores, tentando achar o culpado dessa questão. E não há culpado, há fatores diretos. É um castigo para a criança ficar mais tempo na escola se ela não gosta da escola, e mais de 80% das crianças não gostam de ir à escola. Tem estatística sobre isso. Alguma coisa está errada na escola também, que não consegue acolher essas crianças. Eu sou favorável à Educação Integral, o tempo todo na escola. A criança tem que ter Educação integradora, em tempo integral na escola. Por exemplo, a classe privilegiada tem Educação Integral, mas ela tem quatro, cinco horas na escola, depois tem o balé, a piscina; depois tem esportes; depois tem o judô, tem cinema, tem teatro; e isso é Educação Integral. Todos terem Educação Integral é um direito de cidadania, e não só dos mais ricos. A formação do professor tem que ter outro paradigma, que não é o de ser um lecionador; ele tem que ser um organizador da aprendizagem, despertar o desejo de aprender.

CA – Os educadores não estão preparados?

MG – Há educadores que estão mostrando seus novos paradigmas de formação. Mas não adianta aumentar a qualidade do professor num paradigma em que ele vira um mero instrutor de um programa que está aí. Ele precisa continuar com a alma de professor. Isso tem muito a ver também com o Banco Mundial, que não utiliza nenhum dinheiro com a gente. É um banco sem dinheiro, mas com ideias. E esse banco de ideias é um banco de soluções entre aspas. E as soluções sempre foram dadas a instrucionistas, numa visão de que era possível todo mundo saber a mesma coisa ao mesmo tempo, e o professor não tinha o que fazer a não ser virar páginas: “Hoje nós vamos tratar da página 3 e da página 15”.

CA – O Brasil segue essas orientações do Banco Mundial?

MG – Veja bem, o Brasil é um país que tem uma enorme variedade de sistemas, tem autonomia nos estados e municípios.
Então não dá para dizer que o Brasil segue só esse modelo. Mas predomina o instrucionismo, que ainda limita a Educação; e não é uma Educação emancipadora, que desperta primeiro a pessoa para o ser, para a sua vida, para o seu bem viver. É uma visão que ainda acha que você tem certos conteúdos; sabendo passar, você consegue ter êxito nas coisas. Você não tem êxito porque tem isso ou aquilo, a informação não é poder. O poder está em como se usa a informação. Então, o instrucionismo reduz a Educação à simulação de uma informação, e não à criação. Nós precisamos de gente que pense, que não repita o já dito, o já feito, o já realizado.

CA – Os manuais…

MG – Os manuais são importantes. Paulo Freire, embora tenha sido contra as cartilhas, não as desprezava. Mas é formar gente para pensar. Eu acho que a Educação da era da
indústria, que era para formar gente em série, não dá para ser transportada para hoje, época em que nós precisamos de gente mais autônoma; o sucesso ou o fracasso dependem muito da capacidade de a pessoa ter iniciativa, saber falar, saber defender seus direitos e também defender o que falou, através da participação, através da criação. Eu não estou muito preocupado com o ranking, estou preocupado em formar cidadãos, tirar o indivíduo da miséria que está aí. A Educação pode ajudar e transformá-lo em cidadão.

CA – Isso depende de programa de treinamento dos professores?

MG – Sim, mas eu acho que se você desperta na criança, no jovem, o desejo de aprender, ele vai entrar muito mais rapidamente num ensino de Matemática, de Língua Portuguesa, de Inglês, que é exigência básica para viver na sociedade. Ele avança muito mais. É preciso que o que sei tenha sentido para mim. E quantas crianças não vão para a escola e se perguntam que sentido tem aprender isso? A formação do professor tem que ser numa direção de ele ser um orientador da aprendizagem, um incentivador. Há dados que mostram que com um professor que aprende com o aluno, pesquisa com o aluno, está com o aluno, gosta do que está ensinando, as crianças se interessam mais em aprender. É só não fechar essa torneirinha da aprendizagem. Eles dependem muito da
criação de um professor estimulador; que encontre boas condições de aprendizagem; que dialogue — diálogo é fundamental — com a comunidade, com os pais; que seja um gestor do conhecimento, um animador cultural. Então, depende muito de ele ser um dirigente; o professor precisa ser um dirigente, não um burocrata, executor de programa. Ele precisa ser um dirigente, um intelectual orgânico, que tenha ideia, que estimule a participação política. Não precisa ter faculdade, só instrução da política da escola, da política da comunidade. Só uma liderança, só uma liderança democrática.

CA – A remuneração do professor é investimento na Educação?

MG – Está no Supremo Tribunal Federal o piso salarial. Enquanto eles estão discutindo o teto deles, não estão liberando o nosso piso.

CA – Os professores ganham bem no Brasil?

MG – Acho que tem professores que ganham bem, mas a maioria dos professores não ganha bem. O piso de 950 reais…

CA – Vai ser aprovado ainda?

MG – Foi aprovado em várias instâncias, mas houve prefeituras e estados que entraram no Supremo para não cumprir a lei. Então, o Supremo não se manifestou ainda, precisaria até cobrar dele. Eu acho que é uma limitação histórica dos professores, nós estaríamos sem essa limitação, nós estaríamos melhor, até iria mais gente para o ensino. Você sabe que existem muitas vagas nas universidades públicas nas áreas de Pedagogia e licenciatura que não são preenchidas? Muitas ainda, acho que são umas quatro mil vagas que não são preenchidas. Por quê? Porque não há um estímulo salarial
para o professor. Há dados terríveis: em torno de apenas 20% dos professores de Química são formados em Química. Há falta de professor de Química, de Física. Por quê? Há falta porque não atrai. Então, falta, sim, recurso para Educação. Então, aprovar o piso é um bom começo para a melhoria do salário. Há professores que ganham bem? Poucos, pouquíssimos.

CA – Quanto o Brasil investe em Educação?

MG – O Plano Nacional de Educação pedia 7% do PIB, aliás estão aprovados, no Plano Nacional de Educação, 7%. Nos países desenvolvidos, fala-se em 7% do PIB, e a Unesco fala em 6% do PIB como uma necessidade mínima. Os dados não são difíceis de achar. Mas houve um avanço na questão do Fundeb. O Fundeb aumentou em 1 bilhão por ano, mas, se considerarmos que o orçamento era de 60 bilhões do Governo Federal, 80% iam para o Ensino Superior, não para a Educação Básica. Eu acho que aí também há um problema dessa diversidade de sistema: tem o municipal, o estadual, o nacional, e não trabalha o plano oficial. As pessoas têm um plano e não trabalham esse plano articulado com o Governo Federal. Não trabalham. Eles têm o seu sistema, inclusive de Ensino Superior, e trabalham de forma mais autônoma. No Estado de São Paulo, piorou, nos últimos anos, a qualidade da Educação.

CA – O que explica isso?

MG – No Estado de São Paulo há um sistema com 6 milhões de alunos. É um sistema gigantesco, em primeiro lugar, incontrolável. E muito burocratizado. Não tenho dados que
expliquem essa piora no desempenho do Estado. Eu não tenho dados específicos, teria que fazer uma análise… Eu acho até que os recursos aumentaram, porque diminuiu a matrícula.

CA – Qual é a sua opinião sobre a progressão continuada?

MG – Não sou tolerante à progressão automática, mas à progressão continuada, que são duas coisas diferentes. A automática é quando você opera sem avaliação. Paulo Freire instituiu a progressão continuada em São Paulo, em programas de ciclos, por várias razões: primeiro, para manter a criança na escola, o que já é um ganho; ter uma criança na escola é melhor do que a ter abandonada na rua. Segundo, porque acreditava que, se fosse bem implantada, em forma de ciclos, estaria associada a um programa de formação. Porque, se você não explica direitinho para as partes o que é progressão continuada, elas vão dizer claramente que é promoção automática. Porque não se tem provas, não se passa por análises. A promoção continuada, através de ciclos, exige outro sistema de avaliação, que é um sistema de acompanhamento, é o que se faz no mundo inteiro. Você tem uma escola que tem um projeto pedagógico, então ela precisa funcionar como um coletivo, e não só o professor de português ir lá, dar aula e ir embora. O professor tem que estar em tempo integral naquela escola, não pode dar aula em cinco escolas. Não adianta só baixar um decreto da progressão continuada, tem todo um acompanhamento, é uma nova proposta da Educação.

CA – O Paulo Freire é referencial em Educação. Mas, às vezes, parece que ele é quase ignorado no Brasil. Acontece isso mesmo?

MG – Olha, ele está presente na Educação popular, nos movimentos sociais. O MST é um bom exemplo de como se está aplicando Paulo Freire, acho que o melhor exemplo são as escolas do MST. O Muda Brasil, por exemplo, tem um programa importante com a Frente dos Petroleiros, o Instituto Paulo Freire e outros movimentos sociais e populares. Então, em todo o Brasil temos exemplos importantes da adoção da filosofia educacional de Paulo Freire, que era uma filosofia de uma Educação democrática, emancipadora muito apropriada para os nossos dias, eu diria. Tem toda a vantagem de você formar uma pessoa emancipada, ela precisa ser emancipada. A Educação pode ser oferecida, a Educação tem que ser o espaço da formação da liberdade da pessoa. E Paulo Freire tinha isso, da Educação como prática para a liberdade. Mas isso ainda não é nacional, está mais associado a movimentos. Você pega, por exemplo, o documento final da Conferência de Educação de 2010, você não encontra Paulo Freire, não existe.

CA – Essa escola brasileira, que não é emancipadora, forma para quê?

MG – Eu acho que a cidadania no Brasil é ainda muito consumista, uma cidadania restrita. Você não discute política na escola. Onde se aprende a política? Onde se aprende a ser cidadão? Nos movimentos, na política. A escola não discute política, não discute o País. A escola precisa dizer que país queremos. A cara da escola tem que ser a cara do país que queremos. E aí isso não é discutir política no sentido partidário, de eleição, não é para discutir eleições na escola, é para discutir que país seremos, essa questão é importante. Que país queremos? Nós somos o país das Olimpíadas, do Rio de Janeiro, do futebol. Queremos um país sem miséria, sem fome; país participativo; país onde a vida seja distribuída, onde o Estado tenha distribuição de renda, não doada, como adoção de uma política elitista. Buscar o seu direito de ter o todo desse país distribuído, mais dele repartido. A distribuição de renda caminha a passos lentos, mas está caminhando. Houve distribuição de renda neste país durante este governo? Houve, mas nós queremos mais. Então, é isso que deve vir da escola.

CA – No Ensino Superior, o ProUni é transferência de dinheiro público para a escola privada?

MG – Tem esse problema, mas, além disso, existe um lado que salvou algumas escolas de falirem, porque elas tiveram, com esse recurso, que pagar menos impostos. Eu acho que essa é uma questão conjuntural. Eu não sou contra o ProUni. Agora, tem que se aperfeiçoar o ProUni, não adianta você só dar a matrícula para ele, se você não der condição; tem que ter material didático, acesso a computador. Eu acho que toda Educação deve ser pública e gratuita. Logicamente, a privatização da Educação é uma grande ameaça. Mas a mercantilização da Educação é diferente da privatização. A iniciativa privada é um direito, em uma sociedade democrática, e eu não sou contra a iniciativa privada; eu acho que o problema está na mercantilização, porque se tem também instituições estatais que têm uma mentalidade mercantilista, que promovem uma visão capitalista do mundo. E existem escolas privadas que não são mercantis, que são públicas, assim como você tem as que são estatais, tem as privadas, mas que são públicas no sentido não estatal. Não se pode dizer que as escolas do MST sejam ercantilistas, embora elas não sejam estatais. A disputa maior não é entre o privado e o público, é entre o mercantil e o público, porque há escolas que têm uma visão mercantil, mesmo sendo estatais financiadas pelo Estado. A Educação é um direito, e não um serviço. A Educação é um direito.

CA – Nos últimos anos, cresceu muito o número de instituições privadas no Ensino Superior. Por que você acha que houve esse crescimento?

MG – Aí você fala em demanda, né? Porque existe muita demanda do Ensino Médio para o Superior que não é atendida pelas vagas no ensino público e pelas escolas técnicas. Hoje tem muita gente com um ensino muito bom nos cursos federais de tecnologia, formação profissional. Então, essa demanda hoje é muito grande, o que é muito importante; e a base do desenvolvimento nacional está aí. E o Ensino Superior Tradicional? Como a demanda pública não é sempre a oferta pública, então há essa demanda por Ensino Superior, porque hoje, sem o Ensino Superior, você também não tem
um ensino de qualidade. Eu não sou contra que proliferem, eu sou muito mais que tenham ensino melhor, até privado, quem pode pagar que pague lá. Eu acho que nós precisamos aumentar a oferta no ensino público, acho que é dever do Estado. A educação deveria ser gratuita.

CA – Numa visão geral da Educação no Brasil, como a classifica?

MG – Como a Unesco. Se não mudar, o projeto não sai do lugar, a Educação não sai do lugar como em outros países. Piorou em dezoito lugares, e outros tiveram forças maiores
do que nós. Segundo o governo, a prioridade está em três coisas: crescimento econômico, distribuição de renda e Educação. Mas eu acho que o governo brasileiro vai ter que priorizar o sistema educacional, não está havendo esforço especial na Educação. Não é pessimismo, mas eu acho que distribuição de renda hoje precisa ter crescimento, e você só cresce se tem conhecimento. Esse tripé, concordo com ele que estas são três prioridades — distribuição de renda, crescimento e Educação. Só que com a Educação se atinge um patamar muito maior. Então, onde se pode aproveitar isso, esse tripé? A Educação vem muito lentamente. Existe um movimento chamado Todos pela Educação, mas ainda está muito no campo do marketing. Promove a Educação, porque é importante. Eu gostaria que o anúncio fosse assim: “Quem é lá da Cidade de Tiradentes vai encontrar vaga para estudar”. Aí muda completamente, é preciso indicar.
E tem que ter investimento. Então, no Todos pela Educação, a iniciativa privada também tem que ter papel de incentivar, tem que defender a Educação, temos que trabalhar pela
Educação. Eu acho que nesses Bric que nós temos aí, de países emergentes, a Educação é o maior entrave na condição brasileira para o desenvolvimento. E a Educação depende
de mobilização social, precisa de todo mundo, da empresa privada, da empresa pública, da mídia, como vocês estão fazendo agora. É uma questão de cidadania.

Revista Caros Amigos. Ano XIII n. 155. São Paulo: Editora Casa Amarela, fevereiro de 2010.O professor Moacir Gadotti é um dos mais respeitados educadores brasileiros.
Lecionou nos vários níveis do ensino e nas principais universidades do País.
Aposentou-se pela USP depois de 46 anos de magistério. É autor de muitos livros, inclusive em parceria com Paulo Freire — com quem estudou nos anos 1970, na Suíça. Foi assessor de Freire na Secretaria de Educação de São Paulo, durante a gestão da Prefeita Luiza Erundina (1989–1992). Atualmente, é diretor do Instituto Paulo Freire, que desenvolve inúmeros projetos de Educação Popular.
Nesta entrevista para Caros Amigos, Gadotti analisa a situação da Educação no Brasil, aponta por que o País não conseguiu erradicar o analfabetismo e indica os pontos de avanço e de atraso no sistema educacional.

Caros Amigos – Fale sobre a sua trajetória, como se tornou educador, quando passou a trabalhar com Paulo Freire.
Moacir Gadotti – É muita responsabilidade falar de si mesmo, não é muito fácil. Mas eu acho que eu sou um professor, simplesmente.

Tenho 46 anos de magistério. Trabalhei desde a pré-escola até a pós-graduação, hoje ainda continuo na USP.

CA – Está na USP ou na Unicamp?

MG – Na USP. Aposentado no ano passado, mas continuo dando aula e orientação na pós-graduação.

CA – Como começou na área da Educação?

MG – Eu comecei como professor de Matemática, quando estava fazendo o curso de Pedagogia. Terminei em 1967. Iniciei também um curso de Filosofia, mas demorei dez anos para terminar, porque estava trabalhando e estudava, foi difícil.
Então eu comecei dando aula de Matemática, porque o curso de Pedagogia daquela época dava uma licença para ensinar Matemática nas séries iniciais, não era Matemática
avançada. Trabalhei em creches, em pré-escolas, dei aula de Filosofia depois que terminei o curso de Pedagogia.

CA – Em São Paulo?

MG – Em São Paulo. Eu cheguei a dar aula em oito escolas ao mesmo tempo.

CA – No ensino público?

MG – Ensinos público e privado. Havia uma aula minha de Filosofia que, depois de 1969, foi substituída por Educação Moral e Cívica; foi proibida a Filosofia. Eu me lembro muito
bem, nesse dia eu estava lecionando no Colégio Sagrado Coração de Jesus, e a diretora me falou assim: “Olha, a partir de hoje você não é mais professor de Filosofia, você é professor de Moral e Cívica, e aqui está o programa”. Aí eu disse: “Bom, então eu vou passar a ser professor de Educação Moral e Cívica, mas não vou mudar o programa”, o programa já estava em andamento. Uma história daquele período difícil. Depois eu terminei meu curso de Filosofia. Comecei a dar aula de Filosofia na Faculdade Nossa Senhora Medianeira, na Avenida Paulista, enquanto concluía, na PUC, o mestrado. O mestrado,concluí em 1973 e, no mesmo ano, fui para Genebra fazer o doutorado a convite de uma associação de Filosofia de lá.
Participei de um concurso em 1973, havia uma só vaga de bolsista, e consegui ganhar essa única vaga. Eu também queria
muito ir a Genebra porque Paulo Freire, em 1970, tinha se mudado para lá, e eu tinha trabalhado, em 1967, com o seu primeiro livro, que era Educação como Prática da Liberdade, no trabalho de conclusão de curso de Pedagogia.

CA – Ele estava exilado nessa época?

MG – Ele foi pra Genebra em 1970, o exílio começou em 1964.
Foi primeiro para a Bolívia, depois para o Chile, fez uma rápida passagem pelos Estados Unidos, em 1969; em 1970, ele foi pra Genebra; e, de lá, voltou ao Brasil em 1980. Então eu peguei esse período até 1977 com ele, voltei ao Brasil a convite da Unicamp, em 1977. O Paulo conseguiu voltar definitivamente em 1980 como professor da Unicamp e da PUC. Eu lecionei na PUC-São Paulo, na PUC-Campinas e também na USP, mas eu comecei na Unicamp. Então isso é, um pouco, a minha trajetória. E nesse período também me envolvi na fundação do PT, fui um dos dirigentes da Fundação Wilson Pinheiro, que era a fundação do Partido dos Trabalhadores na época, um grupo extraordinário, foi uma grande escola para mim. Tinha a Marilena Chauí, o Paul Singer, o Florestan Fernandes, o Perseu Abramo. Então, para mim, foi uma vivência muito bonita, de participar da executiva do partido como membro da fundação. Foi lá que eu escrevi o livro Pra Que PT, sobre a origem do PT. Foi lançado na campanha presidencial de 1989.

CA – Você participou também da gestão da Prefeita Luiza Erundina em São Paulo?

MG – Na época da fundação do PT, o pessoal estava muito envolvido com Educação. Então, a gente tinha um pé na escola, um pé na militância. E, para mim, o Paulo Freire também foi uma grande escola, uma escola de formação mesmo como ser humano, como educador. Então, em 1989, fui ser assessor de gabinete na prefeitura. Acho que o Paulo deu, para a Educação brasileira, uma contribuição enorme, por várias razões: primeira, a fundação do Mova, Movimento de Alfabetização, para mostrar que, na superação do analfabetismo brasileiro, é preciso que a sociedade se envolva. O Estado não dá conta sozinho, a luta contra o analfabetismo exige a mobilização da sociedade. Nós tivemos 97 convênios de uma vez só, e não era só para alfabetizar, ele queria fazer uma alteração social. Eu lembro que algumas entidades não tinham condição alguma de fazer convênio com a prefeitura mais burocrática do planeta. Então, o que ele fazia? Tinha um departamento jurídico para ajudar as entidades a se estruturarem, terem um estatuto, gerarem uma diretoria, terem uma sede e, assim, fazerem o convênio. A ideia era a de que Educação não era só ensinar o bê-á-bá, era ensinar a população a ser soberana. E, para ser soberana, precisa ter organização social. A Educação tem esse papel, não tem que ficar só na questão do letramento, precisa conscientizar. O Paulo nunca abandonou a ideia da emancipação, da luta pela libertação, da Educação como caminho para a libertação do ser humano, como um direito. A emancipação é um direito. É um direito de quem vai à escola. A emancipação humana passa pela formação da consciência. Então, o Mova foi algo extraordinário que devia ter sido assumido como política pública no governo Lula, que nós, como movimento social, propomos como um avanço da sociedade brasileira nesse sentido.

CA – Por que o Brasil não conseguiu até hoje erradicar o analfabetismo?

MG – Bom, primeiro existe um atraso secular, de décadas, um atraso crônico na Educação brasileira que vem desde os jesuítas, a colônia, o império, a república. Nós despertamos para a Educação no século XX, na década de 1930, já que na década de 1920 tivemos as primeiras formações de educadores.
Então, esse atraso é crônico, o esforço é muito maior do que o esforço de dois governos. Nós tivemos um dado muito negativo que saiu no dia 19 de setembro de 2009, do Pnad. Eu me lembro dessa data porque dia 19 é o dia do nascimento de Paulo Freire, ele completaria 88 anos nesse dia. O dado é que aumentou o número oficial de analfabetos no Brasil de 2007 para 2008, foram dados do IBGE de 2009. Aumentou o número.
Nós temos hoje o mesmo número de analfabetos que tínhamos quando Paulo Freire deixou o Brasil para ir para o exílio: 15 milhões. Continua e aumentou. Quer dizer, essa pergunta procede. Aumentou em número absoluto, e diminuiu a taxa de analfabetismo, de 9,9% para 9,8%; a taxa caiu 0,1%.

CA – Mas aumentou a população…

MG – Aumentou a população. O Estado de São Paulo deu uma grande contribuição para isso. No Estado de São Paulo, nós temos mais de 600 mil analfabetos; só na região da
Grande São Paulo, em torno de 600 mil.

CA – Na Grande São Paulo?

MG – Na Grande São Paulo. Então, o analfabetismo é a negação de um direito. O analfabetismo tem a ver com um conjunto do bem viver das pessoas. Imagina agora:
chegamos a ter mais de trezentas classes de catadores de produtos recicláveis de lixo. Imagina que a pessoa está na rua das 5 horas da manhã até as 7 horas da noite, catando
lixo, e às 7 horas da noite vai para uma sala de aula. É muito difícil essa pessoa ter condições, depois de um dia passando fome, de se alfabetizar. Então, as condições sociais são determinantes. Condições sociais de moradia, de trabalho, de emprego, de saúde, fora a Educação. A Educação não está desligada, não é um problema setorial, é um problema estrutural com os outros condicionantes. Então, a qualidade da Educação tem a ver com esses outros fatores, está ligada. Não estou dizendo que é preciso, primeiro, resolver o problema da moradia, do emprego, do transporte, para depois resolver a Educação. Isso vai ser junto. O nosso analfabetismo é muito maior do que o de outros países da América Latina. A taxa do Mercosul, por exemplo, é de 2,5%, 3%, a nossa é de 9,8%, são 15 milhões de pessoas. Vou dar dois pontos em que o atraso continua, em que nós paramos, simplesmente estacionamos: Educação de Adultos — nós
praticamente estacionamos nos analfabetos — e o outro é a creche, de 0 a 4 anos, em que 34% das vagas são pagas e apenas catorze em cada cem crianças de 0 a 4 anos têm acesso.

CA – O que isso representa?

MG – Bom, claro que não vamos considerar que nasceu e já vamos colocar em uma creche, mas quando eu vejo, principalmente em São Paulo, que uma mãe trabalhadora,
empregada doméstica, sai lá da zona leste para trabalhar nos Jardins e amarra, acorrenta, uma criança de 4 anos, e é responsabilizada criminalmente por isso, quem deve ser responsabilizado é o Estado. A prefeitura daqui tem 84 mil pedidos de vagas em creche que não são atendidos. É um crime que se faz com essa criança e com essa mãe. Como é que está uma mãe que vai trabalhar em uma casa? É de chorar isso aí, é de chorar, é de arrepiar. Eu me coloco na pele dessa mãe que deixa uma criança em casa, que não tem onde deixar ou que deixa com uma outra de 7 anos.
Essa criança teria que estar na escola, caramba! Não pode. E é isso que nós sustentamos ainda. Não podemos ficar com 84 mil crianças esperando, em São Paulo, para ter uma vaga em creche. Está certo que tem muitos problemas, mas eu acho que começa na base. E quando se fala em Ensino Fundamental, por que a Unesco coloca a gente lá em 88º lugar? É porque há muita evasão. A gente matricula as crianças, mas a média de evasão da primeira à oitava série está em torno de 20%.

CA – É uma quebra de 20%?

MG – É uma quebra de 20%, e se mantém. E há 40% de defasagem em torno da questão idade-série. Então, a criança está fora da série em que deveria estar. Isso causa, primeiro, um custo muito elevado, porque você paga duas, três vezes a mesma matrícula. Então, a evasão custa caro para o Brasil. Eu sei que o Governo Federal avançou muito, não só nas últimas décadas; eu diria até, fazendo jus ao que o FHC fez há oito anos, ele deixou uma boa legislação. Deixou um Plano Nacional de Educação, que, bem ou mal, faz um diagnóstico; deixou uma lei de atividades, bem ou mal, se fossem cumpridas, dariam uma boa base; deixou o Sistema Nacional de Avaliação de Educação Básica; do ponto de vista legal, deixou o Fundeb; deixou os Parâmetros Curriculares Nacionais. E Lula avançou mais ainda. Os três ministros de Lula avançaram. Que há um avanço é reconhecido, há avanço. Mas naqueles dois pontos, para mim, acho que nós ainda precisamos avançar muito.

CA – Vamos retomar um pouco o ponto do analfabetismo.

Você não concluiu a resposta do analfabetismo. MG – Então, a resposta do analfabetismo é que, no caso, é muito mais difícil você zerar no Ensino Básico, alcançar o analfabetismo zero. Tem que ter cuidado com esse slogan, eu vi isso em outros países, na Venezuela, nos Estados Unidos. Cuidado, porque não é só saber ler, só saber assinar
o nome, é muito mais que isso. Mas haverá, sempre haverá, mesmo nos países mais avançados, sempre tem lá 0,1%, 0,5% ou 1%. Não é zerar. Mas, digamos, ter o índice
de analfabetismo razoável de 2%, 2,5% muitos municípios conseguem. Eu mesmo nasci em um município em que, na minha época, não havia nenhum analfabeto, município pobre
de Santa Catarina.

CA – Você é de onde?

MG – De Rodeio, em Santa Catarina, e hoje têm analfabetos lá. Na época não tinha, não existiam analfabetos porque existiam escolas paroquiais, criadas pela comunidade; não
havia nem escola pública, mas escolas das igrejas. Não havia escola para crianças de 0 a 3 anos, apenas para a escolaridade de 3 a 4 anos. Mas, então, há uma dificuldade muito grande porque o Estado não chega a certos lugares, por isso seria preciso de mais ONGs e movimentos sociais comprometidos, igrejas comprometidas, para chegar lá, nesses territórios da cidadania em que é difícil de se chegar.

CA – Quais foram os erros que o Brasil cometeu para não baixar os índices do analfabetismo?

MG – Olha, claro que a escolarização é um fator importante.
A escolarização, você pôr a criança na escola, é importante, porque a taxa de analfabetismo vai diminuir. Vou dar um dado: hoje, se nós considerássemos os estados brasileiros, excluindo os estados do Nordeste, nós teríamos 2,6% de analfabetismo no Brasil.

CA – Infantil?

MG – Não, não. Adulto, a partir dos 15 anos. E 2,6% é uma taxa bem baixa. A maior contribuição para o analfabetismo está no Nordeste; há município que tem 30%, 40% de analfabetos. O Estado do Maranhão tem em torno de 19%, hoje está com 800 mil analfabetos. É o estado que tem mais analfabetismo, ao lado de Alagoas. Em número de analfabetos, a Bahia também contribui muito. Então é porque não houve a mesma taxa de escolarização que o Sul teve, que o Sudeste teve.

CA – Demos um passo atrás no processo de envolver a sociedade?

MG – Toda vez que o governo quer envolver a sociedade, há uma reação muito forte da direita deste país. Quando ele quer envolver. Agora, nas conferências nacionais, na definição das políticas públicas, vê-se toda a carga da elite brasileira, que quer impedir que a população tenha mecanismo de controle deixado ao mercado. No caso do Plano Nacional de Direitos Humanos está claro, da Conferência Nacional de Cultura, da Conferência Nacional de Comunicação. A direita está muito atenta, ela lê nos detalhes. Porque ela foi buscar uma expressãozinha lá de um documento. A gente pensa que ela não está viva, mas ela está muito viva, muito atuante, muito articulada e reprime qualquer tentativa de uma democracia direta, por exemplo. É constitucional a democracia participativa; está na Constituição, caramba! É um direito da população, é um direito constitucional eu poder manifestar a minha opinião em uma conferência. Então, o governo avançou muito nos compromissos, portanto ele encontrou um caminho. O Luiz Dulci é um dos caras que discute para encontrar esse caminho das conferências. Milhões de pessoas, mais de 4 milhões de pessoas participando das mais de trinta, quarenta conferências. Houve uma ação estratégica da mobilização de participação popular que foi a das conferências. E que, quando avança um pouquinho, existe um movimento de repressão.

CA – Como você define o que é direita no Brasil?

MG – Eu acho que aí é: no momento em que você toca em alguns pontos, ela se manifesta. Nessa questão, por exemplo, eu estava gostando muito do Plano de Direitos Humanos, eu acho que ele ainda vai dar um grande avanço. Mas, por exemplo, ela se manifesta por meio da mídia, do impacto da mídia, que é raivosa com a situação, é brava. Não vou dar nem exemplos aqui. No debate que houve sobre os direitos humanos, é mexer com o capital privado. Ela se manifesta aí nesse controle da informação. Sob o pretexto da liberdade de expressão, constrói-se o monopólio da expressão.
Eu acho que o MST, quando mostrou que o governo gasta muito mais com a própria imagem do que com a alfabetização, no boletim do MST que eu vi, deixa claro como a mídia ainda controla as verbas do governo em relação à publicidade.
Então, Lenin dizia que análise de conjuntura é análise de correlação de forças. Conjuntura significa correlação de forças. Eu acho que nós não conseguimos implantar a
democracia participativa como está na Constituição. Nós temos algo em democracia representativa, nós avançamos, bem ou mal, nós avançamos. Mas não avançamos no mesmo ritmo com a democracia participativa. Porque o artigo primeiro da Constituição fala exatamente isto: que todo o poder emana do povo seja por meio de representantes ou diretamente nos termos dessa Constituição. Esse “diretamente” é uma palavrinha tão pequena na Constituição, mas está no parágrafo primeiro do artigo primeiro. Tem uma força muito grande. E nós não temos correlação de forças para conseguir diretamente. No que nós avançamos foi nas conferências.
E seria preciso que a mídia alternativa e os demais veículos de comunicação apoiassem as conferências. Que elas estivessem mais presentes nas conferências, porque é a única porta que se abre para a democracia direta. A Educação tem papel importante para se educar para a democracia direta. Então, quando nós insistimos nisso na primeira escola,
no projeto pedagógico, na participação da comunidade, na escolha direta dos dirigentes da escola, não é porque é mais eficaz no que é específico da Educação, que é o ensino-
aprendizagem, mas porque forma para a cidadania. Se fosse só para se formar, não seria necessário o ensino da cidadania, mas apenas de mecanismos concretos. Isso está
na Constituição. Quando a Conferência Nacional da Comunicação fala que é preciso criar uma comissão para poder analisar os casos de desrespeito aos direitos humanos, não é uma intervenção na liberdade de expressão e imprensa. É um exercício de cidadania.

CA – Qual a avaliação que faz da situação da Educação formal?

MG – Como sempre, a questão é complexa, e não vou me ater a apenas um fator. Vou dar dados que eu gosto muito de dar: em 1996, no final do ano, foi promulgada a LDB, que amplia de 180 para 200 os dias letivos. Qual era a intenção da lei? Era melhorar a qualidade do ensino. Em 2004, saía a primeira avaliação do desempenho do aluno, que foi menor depois do aumento de 180 para 200 dias letivos. Não funcionou. Eu até mandei uma carta para o Tarso Genro porque me questionava isso. Então escrevi para ele: se aumentando o número de dias letivos piorou, vamos voltar a 180 dias, que temos a chance de melhorar. Aí, a questão da progressão continuada piorou, porque o aluno passa sem saber. E aí o Lula falou que agora depende da formação dos professores, tentando achar o culpado dessa questão. E não há culpado, há fatores diretos. É um castigo para a criança ficar mais tempo na escola se ela não gosta da escola, e mais de 80% das crianças não gostam de ir à escola. Tem estatística sobre isso. Alguma coisa está errada na escola também, que não consegue acolher essas crianças. Eu sou favorável à Educação Integral, o tempo todo na escola. A criança tem que ter Educação integradora, em tempo integral na escola. Por exemplo, a classe privilegiada tem Educação Integral, mas ela tem quatro, cinco horas na escola, depois tem o balé, a piscina; depois tem esportes; depois tem o judô, tem cinema, tem teatro; e isso é Educação Integral. Todos terem Educação Integral é um direito de cidadania, e não só dos mais ricos. A formação do professor tem que ter outro paradigma, que não é o de ser um lecionador; ele tem que ser um organizador da aprendizagem, despertar o desejo de aprender.

CA – Os educadores não estão preparados?

MG – Há educadores que estão mostrando seus novos paradigmas de formação. Mas não adianta aumentar a qualidade do professor num paradigma em que ele vira um mero instrutor de um programa que está aí. Ele precisa continuar com a alma de professor. Isso tem muito a ver também com o Banco Mundial, que não utiliza nenhum dinheiro com a gente. É um banco sem dinheiro, mas com ideias. E esse banco de ideias é um banco de soluções entre aspas. E as soluções sempre foram dadas a instrucionistas, numa visão de que era possível todo mundo saber a mesma coisa ao mesmo tempo, e o professor não tinha o que fazer a não ser virar páginas: “Hoje nós vamos tratar da página 3 e da página 15”.

CA – O Brasil segue essas orientações do Banco Mundial?

MG – Veja bem, o Brasil é um país que tem uma enorme variedade de sistemas, tem autonomia nos estados e municípios.
Então não dá para dizer que o Brasil segue só esse modelo. Mas predomina o instrucionismo, que ainda limita a Educação; e não é uma Educação emancipadora, que desperta primeiro a pessoa para o ser, para a sua vida, para o seu bem viver. É uma visão que ainda acha que você tem certos conteúdos; sabendo passar, você consegue ter êxito nas coisas. Você não tem êxito porque tem isso ou aquilo, a informação não é poder. O poder está em como se usa a informação. Então, o instrucionismo reduz a Educação à simulação de uma informação, e não à criação. Nós precisamos de gente que pense, que não repita o já dito, o já feito, o já realizado.

CA – Os manuais…

MG – Os manuais são importantes. Paulo Freire, embora tenha sido contra as cartilhas, não as desprezava. Mas é formar gente para pensar. Eu acho que a Educação da era da
indústria, que era para formar gente em série, não dá para ser transportada para hoje, época em que nós precisamos de gente mais autônoma; o sucesso ou o fracasso dependem muito da capacidade de a pessoa ter iniciativa, saber falar, saber defender seus direitos e também defender o que falou, através da participação, através da criação. Eu não estou muito preocupado com o ranking, estou preocupado em formar cidadãos, tirar o indivíduo da miséria que está aí. A Educação pode ajudar e transformá-lo em cidadão.

CA – Isso depende de programa de treinamento dos professores?

MG – Sim, mas eu acho que se você desperta na criança, no jovem, o desejo de aprender, ele vai entrar muito mais rapidamente num ensino de Matemática, de Língua Portuguesa, de Inglês, que é exigência básica para viver na sociedade. Ele avança muito mais. É preciso que o que sei tenha sentido para mim. E quantas crianças não vão para a escola e se perguntam que sentido tem aprender isso? A formação do professor tem que ser numa direção de ele ser um orientador da aprendizagem, um incentivador. Há dados que mostram que com um professor que aprende com o aluno, pesquisa com o aluno, está com o aluno, gosta do que está ensinando, as crianças se interessam mais em aprender. É só não fechar essa torneirinha da aprendizagem. Eles dependem muito da
criação de um professor estimulador; que encontre boas condições de aprendizagem; que dialogue — diálogo é fundamental — com a comunidade, com os pais; que seja um gestor do conhecimento, um animador cultural. Então, depende muito de ele ser um dirigente; o professor precisa ser um dirigente, não um burocrata, executor de programa. Ele precisa ser um dirigente, um intelectual orgânico, que tenha ideia, que estimule a participação política. Não precisa ter faculdade, só instrução da política da escola, da política da comunidade. Só uma liderança, só uma liderança democrática.

CA – A remuneração do professor é investimento na Educação?

MG – Está no Supremo Tribunal Federal o piso salarial. Enquanto eles estão discutindo o teto deles, não estão liberando o nosso piso.

CA – Os professores ganham bem no Brasil?

MG – Acho que tem professores que ganham bem, mas a maioria dos professores não ganha bem. O piso de 950 reais…

CA – Vai ser aprovado ainda?

MG – Foi aprovado em várias instâncias, mas houve prefeituras e estados que entraram no Supremo para não cumprir a lei. Então, o Supremo não se manifestou ainda, precisaria até cobrar dele. Eu acho que é uma limitação histórica dos professores, nós estaríamos sem essa limitação, nós estaríamos melhor, até iria mais gente para o ensino. Você sabe que existem muitas vagas nas universidades públicas nas áreas de Pedagogia e licenciatura que não são preenchidas? Muitas ainda, acho que são umas quatro mil vagas que não são preenchidas. Por quê? Porque não há um estímulo salarial
para o professor. Há dados terríveis: em torno de apenas 20% dos professores de Química são formados em Química. Há falta de professor de Química, de Física. Por quê? Há falta porque não atrai. Então, falta, sim, recurso para Educação. Então, aprovar o piso é um bom começo para a melhoria do salário. Há professores que ganham bem? Poucos, pouquíssimos.

CA – Quanto o Brasil investe em Educação?

MG – O Plano Nacional de Educação pedia 7% do PIB, aliás estão aprovados, no Plano Nacional de Educação, 7%. Nos países desenvolvidos, fala-se em 7% do PIB, e a Unesco fala em 6% do PIB como uma necessidade mínima. Os dados não são difíceis de achar. Mas houve um avanço na questão do Fundeb. O Fundeb aumentou em 1 bilhão por ano, mas, se considerarmos que o orçamento era de 60 bilhões do Governo Federal, 80% iam para o Ensino Superior, não para a Educação Básica. Eu acho que aí também há um problema dessa diversidade de sistema: tem o municipal, o estadual, o nacional, e não trabalha o plano oficial. As pessoas têm um plano e não trabalham esse plano articulado com o Governo Federal. Não trabalham. Eles têm o seu sistema, inclusive de Ensino Superior, e trabalham de forma mais autônoma. No Estado de São Paulo, piorou, nos últimos anos, a qualidade da Educação.

CA – O que explica isso?

MG – No Estado de São Paulo há um sistema com 6 milhões de alunos. É um sistema gigantesco, em primeiro lugar, incontrolável. E muito burocratizado. Não tenho dados que
expliquem essa piora no desempenho do Estado. Eu não tenho dados específicos, teria que fazer uma análise… Eu acho até que os recursos aumentaram, porque diminuiu a matrícula.

CA – Qual é a sua opinião sobre a progressão continuada?

MG – Não sou tolerante à progressão automática, mas à progressão continuada, que são duas coisas diferentes. A automática é quando você opera sem avaliação. Paulo Freire instituiu a progressão continuada em São Paulo, em programas de ciclos, por várias razões: primeiro, para manter a criança na escola, o que já é um ganho; ter uma criança na escola é melhor do que a ter abandonada na rua. Segundo, porque acreditava que, se fosse bem implantada, em forma de ciclos, estaria associada a um programa de formação. Porque, se você não explica direitinho para as partes o que é progressão continuada, elas vão dizer claramente que é promoção automática. Porque não se tem provas, não se passa por análises. A promoção continuada, através de ciclos, exige outro sistema de avaliação, que é um sistema de acompanhamento, é o que se faz no mundo inteiro. Você tem uma escola que tem um projeto pedagógico, então ela precisa funcionar como um coletivo, e não só o professor de português ir lá, dar aula e ir embora. O professor tem que estar em tempo integral naquela escola, não pode dar aula em cinco escolas. Não adianta só baixar um decreto da progressão continuada, tem todo um acompanhamento, é uma nova proposta da Educação.

CA – O Paulo Freire é referencial em Educação. Mas, às vezes, parece que ele é quase ignorado no Brasil. Acontece isso mesmo?

MG – Olha, ele está presente na Educação popular, nos movimentos sociais. O MST é um bom exemplo de como se está aplicando Paulo Freire, acho que o melhor exemplo são as escolas do MST. O Muda Brasil, por exemplo, tem um programa importante com a Frente dos Petroleiros, o Instituto Paulo Freire e outros movimentos sociais e populares. Então, em todo o Brasil temos exemplos importantes da adoção da filosofia educacional de Paulo Freire, que era uma filosofia de uma Educação democrática, emancipadora muito apropriada para os nossos dias, eu diria. Tem toda a vantagem de você formar uma pessoa emancipada, ela precisa ser emancipada. A Educação pode ser oferecida, a Educação tem que ser o espaço da formação da liberdade da pessoa. E Paulo Freire tinha isso, da Educação como prática para a liberdade. Mas isso ainda não é nacional, está mais associado a movimentos. Você pega, por exemplo, o documento final da Conferência de Educação de 2010, você não encontra Paulo Freire, não existe.

CA – Essa escola brasileira, que não é emancipadora, forma para quê?

MG – Eu acho que a cidadania no Brasil é ainda muito consumista, uma cidadania restrita. Você não discute política na escola. Onde se aprende a política? Onde se aprende a ser cidadão? Nos movimentos, na política. A escola não discute política, não discute o País. A escola precisa dizer que país queremos. A cara da escola tem que ser a cara do país que queremos. E aí isso não é discutir política no sentido partidário, de eleição, não é para discutir eleições na escola, é para discutir que país seremos, essa questão é importante. Que país queremos? Nós somos o país das Olimpíadas, do Rio de Janeiro, do futebol. Queremos um país sem miséria, sem fome; país participativo; país onde a vida seja distribuída, onde o Estado tenha distribuição de renda, não doada, como adoção de uma política elitista. Buscar o seu direito de ter o todo desse país distribuído, mais dele repartido. A distribuição de renda caminha a passos lentos, mas está caminhando. Houve distribuição de renda neste país durante este governo? Houve, mas nós queremos mais. Então, é isso que deve vir da escola.

CA – No Ensino Superior, o ProUni é transferência de dinheiro público para a escola privada?

MG – Tem esse problema, mas, além disso, existe um lado que salvou algumas escolas de falirem, porque elas tiveram, com esse recurso, que pagar menos impostos. Eu acho que essa é uma questão conjuntural. Eu não sou contra o ProUni. Agora, tem que se aperfeiçoar o ProUni, não adianta você só dar a matrícula para ele, se você não der condição; tem que ter material didático, acesso a computador. Eu acho que toda Educação deve ser pública e gratuita. Logicamente, a privatização da Educação é uma grande ameaça. Mas a mercantilização da Educação é diferente da privatização. A iniciativa privada é um direito, em uma sociedade democrática, e eu não sou contra a iniciativa privada; eu acho que o problema está na mercantilização, porque se tem também instituições estatais que têm uma mentalidade mercantilista, que promovem uma visão capitalista do mundo. E existem escolas privadas que não são mercantis, que são públicas, assim como você tem as que são estatais, tem as privadas, mas que são públicas no sentido não estatal. Não se pode dizer que as escolas do MST sejam ercantilistas, embora elas não sejam estatais. A disputa maior não é entre o privado e o público, é entre o mercantil e o público, porque há escolas que têm uma visão mercantil, mesmo sendo estatais financiadas pelo Estado. A Educação é um direito, e não um serviço. A Educação é um direito.

CA – Nos últimos anos, cresceu muito o número de instituições privadas no Ensino Superior. Por que você acha que houve esse crescimento?

MG – Aí você fala em demanda, né? Porque existe muita demanda do Ensino Médio para o Superior que não é atendida pelas vagas no ensino público e pelas escolas técnicas. Hoje tem muita gente com um ensino muito bom nos cursos federais de tecnologia, formação profissional. Então, essa demanda hoje é muito grande, o que é muito importante; e a base do desenvolvimento nacional está aí. E o Ensino Superior Tradicional? Como a demanda pública não é sempre a oferta pública, então há essa demanda por Ensino Superior, porque hoje, sem o Ensino Superior, você também não tem
um ensino de qualidade. Eu não sou contra que proliferem, eu sou muito mais que tenham ensino melhor, até privado, quem pode pagar que pague lá. Eu acho que nós precisamos aumentar a oferta no ensino público, acho que é dever do Estado. A educação deveria ser gratuita.

CA – Numa visão geral da Educação no Brasil, como a classifica?

MG – Como a Unesco. Se não mudar, o projeto não sai do lugar, a Educação não sai do lugar como em outros países. Piorou em dezoito lugares, e outros tiveram forças maiores
do que nós. Segundo o governo, a prioridade está em três coisas: crescimento econômico, distribuição de renda e Educação. Mas eu acho que o governo brasileiro vai ter que priorizar o sistema educacional, não está havendo esforço especial na Educação. Não é pessimismo, mas eu acho que distribuição de renda hoje precisa ter crescimento, e você só cresce se tem conhecimento. Esse tripé, concordo com ele que estas são três prioridades — distribuição de renda, crescimento e Educação. Só que com a Educação se atinge um patamar muito maior. Então, onde se pode aproveitar isso, esse tripé? A Educação vem muito lentamente. Existe um movimento chamado Todos pela Educação, mas ainda está muito no campo do marketing. Promove a Educação, porque é importante. Eu gostaria que o anúncio fosse assim: “Quem é lá da Cidade de Tiradentes vai encontrar vaga para estudar”. Aí muda completamente, é preciso indicar.
E tem que ter investimento. Então, no Todos pela Educação, a iniciativa privada também tem que ter papel de incentivar, tem que defender a Educação, temos que trabalhar pela2q2q1 Educação. Eu acho que nesses Bric que nós temos aí, de países emergentes, a Educação é o maior entrave na condição brasileira para o desenvolvimento. E a Educação depende de mobilização social, precisa de todo mundo, da empresa privada, da empresa pública, da mídia, como vocês estão fazendo agora. É uma questão de cidadania.

 

Revista Caros Amigos. Ano XIII n. 155. São Paulo: Editora Casa Amarela, fevereiro de 2010.

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