Edição 99

Professor Construir

Educação sem fronteiras

Entenda como a interdisciplinaridade pode contribuir para a formação integral do estudante e como os professores das escolas públicas podem driblar a falta de recursos e estrutura para aderir a essa metodologia.

Na aula de História, o assunto é Civilizações da Antiguidade. O professor faz uma rápida explanação sobre gregos, romanos, egípcios, mesopotâmicos, persas e hebreus, para, em seguida, detalhar as características de cada povo. Durante a explicação, o conhecimento é ampliado, e os conteúdos de Filosofia, Sociologia, Geografia, Literatura, Matemática, Religião e Ciências entram em pauta. O sinal toca. Outro professor entra na sala. É aula de Filosofia, e o tema é a colaboração dos pensadores da Idade Antiga para a modernidade. Coincidência? Não! São aulas interdisciplinares previamente planejadas pelos docentes, em conjunto com a coordenação pedagógica da escola. Quem ganha? Todos os alunos, os professores, a sociedade, a educação como um todo.

De fato, a interdisciplinaridade tem sido cada vez mais adotada pelos educadores. E a metodologia também é bem recebida pelos estudantes, que são formados de forma integral e participam ativamente da construção do conhecimento. Para a pedagoga Sandra Ferreira, da Faculdade Frassinetti do Recife (Fafire), os benefícios da prática — que ganhou mais relevância nos últimos anos — são muitos. “Os alunos têm mais autonomia no pensar e no fazer por causa da construção coletiva. A integração das disciplinas contribui para o desenvolvimento de um cidadão voltado para a inserção social, que encontra mais oportunidades de crescimento e transformação”, frisa.

Segundo Sandra, a interdisciplinaridade vai além da simples junção de conteúdos específicos de cada disciplina. É preciso que os professores planejem as aulas juntos e que possam se apropriar de conceitos de outras áreas, enriquecendo o conhecimento. “Percebo que o termo interdisciplinaridade hoje é usado como um modismo, mas, na prática, nem sempre acontece. Tem gente que diz que faz, mas não faz: enquanto outros, sem saber, fazem”, salienta. O que ela quer dizer é que, em muitos casos, os professores não recebem capacitação suficiente para compreender a metodologia de ensino e que aplicam — ou tentam fazer isso — da forma que compreendem, sem articulação entre as disciplinas.

De acordo com a pedagoga, a interdisciplinaridade é marcada pelo intenso diálogo entre os diversos campos de conhecimento. Há diferentes níveis, com características próprias. O primeiro é a multidisciplinaridade. É quando um mesmo tema é trabalhado por vários professores, mas sem uma ligação entre as aulas. “Por exemplo, quando uma escola resolve enfocar o meio ambiente. O professor de Redação também realiza uma atividade voltada para a ecologia. Mas não há uma integração. É o que a maioria dos professores faz”, explica. Nesse caso, existem as ações simultâneas, mas não há uma colaboração entre os docentes para organizar a transmissão do conteúdo, a fim de que as informações se complementem.

O segundo é a pluridisciplinaridade. “O nível de integração envolve as ciências afins, mas ainda não há um trabalho coordenado, não há uma centralização”, afirma. Um exemplo é a forma como os conteúdos são trabalhados atualmente no Ensino Médio, com a contextualização criada pelo novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). As Ciências da Natureza unem Física, Química e Biologia. Geografia, História, Sociologia e Filosofia são as Ciências Humanas. Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, Literatura e Artes contemplam as Linguagens e os códigos. Matemática e suas tecnologias completam a lista. É o caminho para o envolvimento da realidade do mundo contemporâneo com o que é repassado em sala de aula.

O nível seguinte é a interdisciplinaridade propriamente dita, quando as ações são coordenadas. Dessa forma, há um diálogo entre as áreas, que promovem ações coletivas não apenas para cumprir um conteúdo programático, mas para atender a necessidades específicas das turmas. “Se uma turma tem um problema de alfabetização, essa não pode ser apenas uma preocupação da professora de Português. O professor de Matemática também deve alfabetizar, até porque como é que o aluno vai aprender a somar e subtrair se nem sabe ler?”, indaga. Dessa forma, o docente de Educação Física ensina também Matemática, o físico ensina Literatura, o geógrafo informa sobre Sociologia. Outro exemplo é a forma como temas podem ser trabalhados pelos professores. “Se a escola quer abordar o bullying, pode coordenar ações para que cada professor possa colocar o tema em prática nas aulas”, explica. Ou seja, a interdisciplinaridade não precisa, obrigatoriamente, envolver questões pedagógicas, mas pode também estar relacionada com assuntos sociais.

11

O último estágio é a transdisciplinaridade, em que não existem barreiras. As disciplinas se apropriam de conceitos mútuos e são trabalhadas simultaneamente. A relação acontece por meio de temas transversais. Para a professora da Fafire, esse nível é uma utopia. “O problema está na formação. Os professores de hoje não tiveram a interdisciplinaridade na formação deles, nem mesmo na universidade, que ainda peca por não ter uma disciplina específica sobre o tema”, considera Sandra, que lembra que as escolas também estão fragmentando o ensino. Há professor para História do Brasil, outro trabalha a mundial; um para a Geografia Física, outro para a Humana; um ensina Álgebra; outro, Aritmética; e outro, Geometria. “Em vez de unir, a escola separa como se não fosse uma coisa só”, declara.

12
Pública x privada

A pedagogia interdisciplinar, apesar de ter sido mais difundida nas últimas duas décadas, é bem mais antiga e data do início do século 20. Mais aplicada nas instituições particulares, a metodologia também está presente na escola pública. Para o professor do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a diferença é a motivação dos professores. As causas são muitas. Ele enumera três: “Primeiro, os salários são baixos. Tanto é que muita gente não quer mais ensinar. Como manter o professor estimulado com um contracheque que não satisfaz? Sem falar na falta de estrutura adequada das escolas, que possuem poucos recursos, e da falta de capacitação dos professores”, elenca.

Na escola privada, além de serem mais bem remunerados, os professores são cobrados para atingirem metas medidas pelo desempenho dos alunos. “Claro que a pedagogia e a missão de educar não ficam de lado, mas, de certa forma, há uma relação empresarial, diferentemente do que acontece na escola pública. Fora que as condições de trabalho e a estrutura são bem melhores”, considera.

A professora Letícia Santos, do Recife (PE), que leciona nas redes pública e privada, também concorda que os docentes da escola pública não encontram, muitas vezes, condições para trabalhar temas transversais. “Tudo bem que hoje em dia os governos estão investindo cada vez mais, isso é fato. Mas a estrutura das nossas escolas ainda está muito longe da ideal”, frisa. “Outro ponto a se destacar é que nem todos os gestores escolares se envolvem como deveriam para apoiar as ideias dos professores. Cada um ensina em horário diferente, é difícil reunir todos para planejarem juntos. Se a coordenadora não liderar, o trabalho fica ainda mais difícil para o professor”, comenta.

De fato, o envolvimento dos gestores escolares é essencial para o desenvolvimento da atividade interdisciplinar, mas isso não impede que um professor lidere as atividades. “É nessa hora que temos que honrar o nosso compromisso de educar com qualidade. Isso não se perdeu, mesmo com as dificuldades do sistema educacional. Mesmo com poucos recursos — ou quase nenhum —, é possível realizar um bom trabalho e fazer a diferença na vida dos nossos alunos”, conclui a professora.

13

A experiência da escola do Sertão de Pernambuco

Na Escola Estadual Oliveira Lima, em São José do Egito, a atividade interdisciplinar enfocou o uso de energia nuclear. Cada professor abordou temas de acordo com a disciplina:

Física: Física moderna; a estrutura do átomo radioativo; as radiações alfa, beta e gama; e as radiações térmicas e suas aplicabilidades (malefícios e benefícios).

Química: Conceito de energia nuclear; os riscos da utilização da energia nuclear; e o armazenamento de material radioativo com foco nas tragédias de Chernobyl, Goiânia e Fukushima.

Geografia: A crise energética; o uso dos recursos minerais; as matrizes energéticas; e a estrutura econômica e vantagens e desvantagens da energia nuclear para o meio ambiente.

Biologia: Os efeitos da radiação na biosfera; e os tratamentos com uso da radioatividade.

Filosofia: A energia nuclear: questões de ética, tecnologia e respeito à vida.

Sociologia: A energia nuclear — fatores econômicos, mudanças comportamentais e análise da sociedade atual.

Arte: Análise da tela expressionista O grito, de Edvard Munch, que trata da angústia e do desespero existencial.

Português: Literatura comparada: Carlos Drummond de Andrade (fase social — preocupação com o mundo); e análise dos poemas Congresso internacional do medo e Rosa de Hiroshima, de Drummond e Vinicius de Moraes, respectivamente.

Multidisciplinaridade: o mesmo assunto é trabalhado em diversas disciplinas, mas não há ligação entre uma e outra. As ações são simultâneas, mas não interligadas.

Pluridisciplinaridade: as disciplinas afins se aproximam para construir o conhecimento juntas, como na preparação dos estudantes que vão fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Interdisciplinaridade: as ações são coletivas, estão interligadas por um coordenador, que organiza e estabelece a ligação entre as disciplinas.

Transdisciplinaridade: não há barreiras disciplinares. A ligação é feita por meio de temas transversais que abrangem as disciplinas.

Fonte: Conceitos abordados pela pedagoga Sandra Ferreira, do Recife (PE).
15
Exemplo de quem faz

Na Escola Estadual Oliveira Lima, em São José do Egito, no Sertão de Pernambuco, a Campanha da Fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) sempre gerou uma série de atividades junto à comunidade escolar. Em 2011, o coordenador pedagógico da instituição, Kleber Ferreira Costa, resolveu ampliar as ações e levar o tema do ano — A Terra geme em dores de parto — para ser discutido em um aulão, que envolveu professores de oito disciplinas (Filosofia, Sociologia, Artes, Língua Portuguesa, Biologia, Física, Química e Geografia) e reuniu 240 alunos do 3° ano do Ensino Médio.

Individualmente, cada professor pensou como poderia contribuir para o projeto (confira no quadro da página anterior os temas destacados em cada disciplina). “O meu papel foi unir e direcionar as ações para não haver choque de conteúdos. O mais importante foi que percebemos que, com um planejamento coletivo, conseguimos descobrir uma nova forma de trabalhar com os alunos, com uma visão de mundo contextualizada”, explica. O foco foi a energia nuclear. Como trabalho final, os estudantes fizeram textos do tipo dissertativo-argumentativo seguindo um dos três temas propostos pela coordenação pedagógica (Energia nuclear: meio ambiente x segurança, O Brasil deve investir mais em energia nuclear? e Diga não à Energia Nuclear).

O resultado? Aumento da frequência dos estudantes nas aulas, ampliação da taxa de aprovação, maior envolvimento dos alunos e inclusão da família e da comunidade no cotidiano da escola, além da vantagem de aplicar uma prática educacional que permite a troca de experiência entre os professores, a formação para a cidadania e a aproximação entre o conteúdo escolar e a realidade dos estudantes. “Realmente, sentimos esse maior estímulo”, confirma o coordenador.

A proposta deu tão certo que o objetivo agora é realizar mais projetos durante o próximo ano. E não é só isso. A ideia também será multiplicada, já que o projeto foi selecionado pela secretaria de Educação de Pernambuco para participar da III Mostra de Experiências Pedagógicas Bem-sucedidas nas Escolas Públicas do Estado.

Kleber Ferreira Costa, da Escola Estadual Oliveira Lima, de São José do Egito (PE), sobre o projeto realizado na instituição: “Ficamos felizes com o resultado, e a tendência agora é repetir o feito”.

Segundo a pedagoga Sandra Ferreira, a interdisciplinaridade é marcada pelo intenso diálogo entre os diversos campos de conhecimento.

Extraído de: Revista Profissão Mestre. Curitiba: Humana Editorial, dezembro 2011. Ano 13 / N° 147.

cubos