Edição 71

Espaço pedagógico

Educadores do século XX e sua ação na atual sala de aula

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Contextualização e habilidades operatórias: Paulo Freire entre a opressão e o sonho

Missão:

Oportunizar informações conceituais sobre a vida profissional e a obra de Paulo Freire, dando destaque ao que se refere ao método de alfabetização que sugeriu e sua importância na exploração da aprendizagem significativa do aluno, confrontando seus estudos e suas pesquisas com a realidade atual da escola brasileira, a ação do professor com recursos e meios que poderá utilizar, visando reabilitar algumas ideias do autor em seu cotidiano.

1ª Parte

Fundamentação teórica

• Quem foi Paulo Freire? Qual a característica cultural do tempo e ambiente em que viveu?

Um brasileiro que visite Estocolmo, na Suécia, pode talvez se surpreender de ver ali colocada uma estátua de Paulo Freire, em pleno centro da capital de um dos mais avançados países do mundo. Nesse reconhecimento, não existe um desejo gratuito de agrado ao Brasil, mas sincera homenagem a um dos maiores pensadores do século XX.

Doutor honoris causa em 28 universidades entre as maiores do mundo, esse educador pernambucano, ainda pouco conhecido no Brasil, é reverenciado como um dos mais importantes educadores do século passado. Paulo Reglus Neves Freire nasceu no Recife, em 19 de setembro de 1921, e teve uma infância difícil. Órfão aos 13 anos, sobreviveu sem fartura, mas formou-se em Direito, sem jamais exercer a advocacia. No começo dos anos 1960, atormentado pelo analfabetismo que ainda marginalizava o povo nordestino, criou um método de alfabetização para adultos, simples, mas revolucionário para seu tempo.

Mostrou que, em menos de 2 meses, poderia alfabetizar trabalhadores adultos e, mais ainda, transformá-los progressivamente em leitores conscientes. A prova da força de suas ideias se manifestou em Angicos, Rio Grande do Norte, onde, em apenas 45 dias, alfabetizou 300 camponeses.

Sua obra representa uma das mais sólidas esperanças de que a educação popular não é complicada e, sobretudo, que pode ser libertadora. A leitura e a compreensão crítica do entorno representam, para ele, um primeiro passo para uma leitura de mundo e para uma reflexão sobre o estado do homem. A pedagogia de Paulo Freire, com notória tendência política, volta-se para a transformação e, nesse sentido, representa ponto muito além de uma alfabetização de adultos.

A obra de muitos educadores mostra-se preciosa, independentemente do contexto de seu entorno e de seu tempo. É provável que Piaget seria extraordinário, mesmo se vivesse antes e mesmo se fosse um cidadão de outra parte do mundo. Essa referência vale para muitos outros, mas não serve para Paulo Freire. Sua obra não pode jamais ser compreendida fora do contexto realista do processo de desenvolvimento social e econômico brasileiro durante os anos em que viveu.

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O Brasil de hoje, em muitos aspectos, é diferente do Brasil em que viveu Paulo Freire, e, se essa transformação foi possível, deve-se, entre outros motivos, a pensadores como esse pernambucano. Intelectualmente dependente de uma mentalidade colonialista, Paulo Freire cresceu na efervescência de um processo de transição entre uma sociedade rural hierarquizada e fechada e uma outra, que se transformava em urbana e queria construir uma democracia em que o povo pudesse ser o principal protagonista. Envolvido por esse contexto, o pensamento de Paulo Freire o transcendeu e influenciou outras terras, apoiando-se sempre no pressuposto que dá título à sua primeira obra, de 1966: A Educação como Prática de Liberdade. Nessa obra, define a concepção antropológica que sustenta seu pensamento e sua proposta educativa:

“o homem é ser inacabado que não está largado no mundo como um cão, mas que busca se integrar em seu contexto para intervir e transformá-lo, transformando o mundo”. Concebendo o ser humano não como entidade que necessita apenas adaptar-se ao meio, mas como agente transformador do mesmo, o processo educativo não pode ter como objeto apenas a transmissão de conhecimentos, dados e fatos, mas se fortalecer como um processo de libertação.

paulo_freire_opt• Vida e obra de Paulo Freire

A vida de Paulo Freire, como concordam seus biógrafos, torna-se melhor compreendida quando dividida em três momentos: o do Recife, o dos duros tempos de exílio e o dos tempos de São Paulo.

O primeiro e mais longo período compreende as fases em que viveu no Recife e em Jaboatão, pontilhadas de ocorrências de uma infância pobre, mas estimulante, até 1932, quando a família, atingida pela crise de 1929, perde a possibilidade de manter suas atividades comerciais e passa a viver em Jaboatão. Permanece lá durante 9 anos, onde conclui o curso Primário. Como nessa cidade não tinha como prosseguir estudos em escola pública, consegue fazê-lo com uma bolsa de estudos obtida no Colégio Oswaldo Cruz, no Recife.

Nessa instituição, realiza o curso pré-jurídico, como era comum nesse tempo; mais tarde, inicia sua atividade no magistério, como professor de Português. Apaixona-se pela literatura, lê tudo que cai em suas mãos e, em 1943, ingressa na Faculdade de Direito do Recife. No ano seguinte, casa-se com Elza Maria Costa Oliveira, professora primária e que exerceria papel fundamental na construção de suas ideias. “Alfabetizado no quintal de sua casa com palavras riscadas na areia e que falavam de seu mundo, ainda muito jovem se torna um leitor apaixonado por literatura e ideias filosóficas e, mais tarde, casado com uma professora que lhe mostrava, passo a passo, os caminhos do ensino, Paulo Freire reconhece nessas três influências a base do método de alfabetização que mais tarde iria imortalizá-lo”.

Quando ainda professor de Português no Colégio Oswaldo Cruz e prestes a terminar seu curso de Direito, surge para Paulo uma outra oportunidade, decisiva para sua experiência de educador. É convidado a ocupar a direção do Sesi, que acabava de ser criado pela Confederação Nacional das Indústrias. Nesse emprego, ao descobrir que a maioria de seus clientes era formada por trabalhadores adultos na indústria, muitos analfabetos e poucos efetivamente leitores, Paulo tem a oportunidade de associar o fazer administrativo à ação pedagógica, tudo isso temperado em um clima de renovação política e ideias progressistas que agitavam o País nos anos 1950 e que eram fortemente refletidas por sua sólida e diversificada formação cultural. A integração desse intenso e fervilhante pensar e fazer leva-o a definir sonhos e utopias, sem jamais se afastar do pragmatismo que sua ação pedagógica impunha.

A substituição do até então imutável formato convencional das salas de aula pela distribuição dos alunos em círculos, o emprego sistemático de técnicas de trabalho em grupo, o resgate intenso do saber e da experiência do alunado, a alternativa do diálogo à exposição sumária preparavam o clima para debates e para descobertas que não apenas dariam base ao seu método, como fortaleceriam a essência de seus pensamentos de educador.

Quando emergem os anos 1960, o Brasil já encontra um Paulo Freire plenamente delineado em seu pensamento político-pedagógico, dialógico e libertador, empenhado na construção de uma nova maneira de ser e agir como aluno.

Com o golpe de Estado de 1964, Paulo Freire é preso, considerado propagador de ideias subversivas, e permanece 70 dias detido. O Programa Nacional de Alfabetização, que por inspiração em seu pensamento fora implantado, estava extinto; ele, vendo-se forçado a viajar do Recife ao Rio de Janeiro para responder inquéritos político-militares, percebe não ser mais possível sua luta e resolve partir para seu tempo no exílio.

Sua obra e seu método de alfabetização já ganharam conhecimento internacional, e, assim, é procurado por autoridades educacionais bolivianas, que o contratam para prestar assessoria educacional nesse país. Não suportando a altitude de La Paz, vive e trabalha 5 anos no Chile, quando produz algumas de suas principais obras, saindo esporadicamente para exercer atividades pedagógicas experimentais no México e nos Estados Unidos.

Quando emergem os anos 1960, o Brasil já encontra um Paulo Freire plenamente delineado em seu pensamento político-pedagógico, dialógico e libertador, empenhado na construção de uma nova maneira de ser e agir como aluno.

Mais tarde, consagrado professor na Universidade de Genebra, na Suíça, ganha liberdade para desenvolver experiências pedagógicas na Ásia, Oceania, América Latina e, sobretudo, em Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau. Seu período de exílio, ainda que pessoalmente sentido e sofrido, foi muito dinâmico, e, se, para muitos, ensinou, ainda mais estudou e aprendeu, amadurecendo a certeza de seu compromisso com o sonho de uma integral liberdade através da Educação.

Mostrou que os problemas da área educacional não são apenas de natureza pedagógica, mas também de essência política, e, por ser assim, toda aula precisa ser instrumento de reflexão e de crítica, e sua consciência não pode existir fora da prática. A “educação bancária” (aquela na qual o professor deposita conhecimento na mente dos alunos) necessitava transformar-se em uma educação libertadora, que, levando à reflexão, desperta a críticas, e estas levam à ação. Não é difícil imaginar como essas ideias incendiárias de Paulo Freire incomodavam uma classe detentora da fortuna e do poder, uma imprensa a ela subordinada e, sobretudo, uma ditadura militar que, em seu nome, por muitos anos, governou o País.

O terceiro e último período da biografia de Paulo Freire ocorre com a gradual democratização do País e seu entorno, quando incorpora-se à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e de Campinas, exercendo também uma ação político-pedagógica como secretário municipal da Educação da cidade de São Paulo.

• Períodos significativos na vida e na obra de Paulo Freire

1921 – Nasce no Recife (Pernambuco), onde conclui seus estudos secundários e forma-se em Direito.

1944 – Casa-se com Elza Maria Costa de Oliveira, professora de Ensino Primário, que o envolve nos desafios do mundo educacional. Depois das primeiras atividades que realiza no Sesi, envolve-se com o Movimento de Cultura Popular, quando desenvolve um programa de alfabetização e a criação dos Círculos de Cultura.

1963 – Convidado pelo presidente João Goulart, inicia o desenvolvimento em escala nacional de um programa de alfabetização de adultos. O Golpe de Estado no ano seguinte põe fim a essa experiência educativa.

1964–1980 – Período de exílio, inicialmente no Chile, onde trabalha no Instituto de Capacitação e Investigação em Reforma Agrária. Em 1969, é nomeado especialista da Unesco e ministra aulas na Universidade de Harvard (Estados Unidos). Em 1970, muda-se para Genebra, na Suíça, onde trabalha como consultor do Conselho Mundial de Igrejas, desenvolvendo programas de alfabetização em apoio à reconstrução nacional em diferentes países africanos. Nessa época, publica seus livros mais marcantes (Extensão ou Comunicação?, A Conscientização no Meio Rural e Pedagogia do Oprimido), editados inicialmente nos Estados Unidos e, no Brasil, somente após 1970.

1980 – Retorna ao Brasil e incorpora-se à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e de Campinas.

1989 – O Partido dos Trabalhadores (PT), do qual é um dos fundadores, vence as eleições municipais em São Paulo; e Paulo Freire é nomeado secretário municipal de Educação, cargo que ocupa até 1991. Desse período, resultam obras como A Importância do Ato de Ler, Processo de Libertação e A Educação na Cidade.

1922–1997 – Retorna à Universidade, escreve suas últimas obras e, convidado, realiza em toda parte muitas conferências, sendo nomeado doutor honoris causa por diferentes universidades internacionais. É desse período À Sombra dessa Mangueira e Pedagogia da Autonomia. Falece no dia 2 de maio de 1997.

• Quais as maiores realizações de Paulo Freire no campo da Pedagogia e em quais aspectos os pensamentos e o método Paulo Freire divergiam dos que em sua época eram considerados válidos para uma educação de qualidade?

A vida e a obra de Paulo Freire foram marcadas por alguns substantivos revolucionários, que constituem a base de um pensamento educacional que causou e causa reflexões e admiração no mundo inteiro.

No quadro a seguir, os conceitos que podem emergir desse pensamento e as ideias habituais em nossa escola cotidiana que o afrontam:

O PENSAMENTO VIVO DE PAULO FREIRE

Homem – Um ser inacabado, que não se encontra só no mundo como uma “coisa” ou um objeto a mais, ligado ao seu entorno como um animal se liga, mas um ser capaz de se integrar em seu contexto para intervir no mesmo, com isso transformando o mundo.

Escola – Espaço privilegiado para que se desenvolva um conhecimento crítico como ferramenta de construção da realidade, a partir das capacidades em identificar situações e razões que determinam os contextos sociais, econômicos e culturais em que o aluno vive, no momento histórico em que vive.

Processo educativo – Como o homem é um ser inacabado, chega à escola em condições de “transformação”, e, por esse motivo, o processo não pode limitar-se a transmitir informações, fatos, mapas e dados, situando-se em uma acomodação e um ajuste ao estabelecido, mas em um processo de compreensão e de efetiva libertação.

Práxis alfabetizadora – Fazer com que o aluno, ao descobrir o mundo das palavras, possa identificá-las como símbolos que o ajudem a pensar sua realidade. O analfabeto não deve ser visto como “pessoa ignorante”, tendo em vista que sua vivência permitiu-lhe acumular experiências e reformular seu próprio saber de forma a interpretar a realidade. As diferentes etapas do método de Freire têm como objetivo partir da realidade cultural do aprendiz, de seu universo temático, para relacioná-lo com suas condições de vida e com a condição de vida de seus pares.

Processo de ensino – A educação libertadora necessita desenvolver novos processos de ensino, estabelecendo uma aprendizagem dialógica, que se apoia no método de problematização. O professor não mais é visto como proprietário do saber e detentor do conhecimento, mas como personagem crítico na proposição de desafios e encaminhamentos de processos de procura, sabendo sempre que “ninguém ignora tudo, ninguém sabe tudo”.

O DISTANCIAMENTO DESSE PENSAR EM NOSSO COTIDIANO

Homem – Um ser completo, mas que necessita do domínio de técnicas para se desenvolver e para prosperar. Todo aluno é visto, assim, como “indivíduo”, e sua socialização é desejável, ainda que essa integração social não seja um objetivo da escola em si.

Escola – Um espaço transmissor de informações que, na maior parte das vezes, se distanciam da realidade do aluno e são transmitidas porque fazem parte de um programa. Dessa forma, não respeita a individualidade do aluno e o contexto do lugar e do tempo em que vive. O conhecimento é propriedade específica do professor, que acredita transferi-lo.

Processo educativo – A função essencial do processo educativo é abastecer o estudante de informações associadas ao ajuste estabelecido. Comumente é uma “educação bancária” na qual os professores, no cumprimento de seus programas, “depositam” conhecimentos na mente de seus alunos de maneira acrítica.

Práxis alfabetizadora – O aluno analfabeto é pensado como um ser com uma mente vazia para a realidade da palavra escrita, e a função da alfabetização é preencher esse vazio, tendo em vista uma função prática na decodificação das palavras, como, por exemplo, saber o destino do ônibus que passa, mas jamais uma função política, não o fazendo capaz de compreender e decodificar a realidade que se esconde na interpretação dos fatos, além da singela realidade da forma como o mesmo se apresenta.

Processo de ensino – O professor é aquele que sempre “sabe” (ou pelo menos deveria saber) e tem diante de si alunos que “pouco” ou “nada sabem”; portanto, o processo de ensino se inspira na aula expositiva e nas anotações que transformam o caderno do aluno em sua “caderneta de poupança”, onde guarda seus conhecimentos ali depositados para seu uso nas provas. A Educação é, assim, “bancária”, e o saber, uma referência para uso eventual, quando solicitado.

O PENSAMENTO VIVO DE PAULO FREIRE

Sonho em Educação – Toda ação educativa deve sempre perseguir um objetivo essencial, um determinado sonho, que abomina a neutralidade ou a indiferença por parte de quem educa. Isso não significa que o professor deve impor ao aluno sua opção, antes despertando o aluno para suas próprias e autênticas opções e seus sonhos.

Felicidade – A felicidade é sinônimo de luta e, dessa forma, somente pode ser inteiramente feliz a pessoa que acredita em si e em sua transformação e se dispõe a empreender uma caminhada em direção a essa meta, sabendo que ao atingi-la outras por certo irão surgir e, dessa forma, desafiar novas buscas.

Formação de professores – A Educação não pode abrir mão de uma formação técnica e científica, mas necessita também abrigar sonhos e utopias; portanto, exige dupla leitura (palavra/mundo – texto/contexto) para que, como profissional, o professor se sinta sujeito da história como tempo de possibilidades e não possa tudo, podendo apenas contribuir para a transformação do mundo em um mundo melhor.

O DISTANCIAMENTO DESSE PENSAR EM NOSSO COTIDIANO

Sonho em Educação – Quando existe, geralmente percebe a Educação como uma finalidade em si mesma e a formatura do aluno como a conquista de um volume de informações que lhe permite o exercício de uma profissão, por meio da qual se busca poder e prestígio.

Felicidade – A felicidade geralmente é associada à conquista de bens e/ou de posições: dessa forma, busca-se a Educação como quem procura uma escada para, conquistando mais bens e mais elevada posição, poder sentir-se distinguido dos demais.

Formação de professores – O profissional em Educação é um trabalhador que maneja a aprendizagem como um mecânico a sua ferramenta, alienando-se de um significado para a transformação social. Sua racionalidade econômica sob a perspectiva da globalização desperta uma visão fatalista e reduz o trabalho educativo à conquista de uma técnica.

Revista ABC Educatio. São Paulo: Criarp.
Ano 6. n. 49.

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