Edição 105

Nós e a escola: Agonias e Alegrias

Entre a frustração da escola desejada e a felicidade do aprender

Rosangela Nieto de Albuquerque

A escola, na chamada pós-modernidade, tem sido frequentemente associada a um espaço de frustrações, o que leva muitos pais a pensar no chamado ensino domiciliar. Essas frustrações estão também permeadas pela crise moral e ética que vivenciamos e pela qualidade da instrução que as crianças recebem. Certamente, neste período histórico-social em que vivemos, os pais se veem imobilizados na questão educacional escolar, pois os motivos que levam as famílias a aderir à modalidade de ensino domiciliar vão desde a insatisfação com a escola, no sentido instrucional, ao medo em relação à integridade física e psicológica dos filhos, como bullying, drogas, violência, doutrinação ideológica e sexualização precoce.

Se a escola, por um lado, exerce a função de transmitir conhecimentos e de seleção social, moral e ética, no sentido de herança normativa deontológica, pautada no caráter obrigatório da norma; por outro, atua na formação do sujeito como figura ideal de indivíduo e como meio de inserção social deste para viver em sociedade, garantindo assim a continuidade da vida social.

No que tange à crise da educação moral, percebe-se que a sociedade assiste a uma fratura entre os valores éticos e os princípios morais. E a escola tem dificuldade de reconhecer a importância dessa estrutura ética rompida e, assim, permeada pela crise, não consegue desenvolver ações no cotidiano dos alunos e docentes. É necessária, portanto, uma renovação da ética na escola, certamente, nas três grandes dimensões: na relação consigo mesma, na relação com o outro, e na relação com a sociedade.

Hoje, observa-se o que os estudiosos chamam de desencanto moral, um conflito entre a escola desejada, idealizada, e a escola real, talvez não mais sonhada, conforme os estudos da fundamentação weberiana, a escola do desencanto. Sabemos que algumas características desse momento, associadas à perda de consistência das ideias, trazem um abalo significativo das crenças tradicionais e dos sentimentos que se apresentam com outras configurações. Assim, a escola passa por essas vicissitudes. Desaguamos, então, no chamado desencanto social — frustrações em vários níveis que enfatizam a ruptura da continuidade, um lapso entre o passado e o futuro ­­­— uma espécie de “destradicionalização”—, isto é, entre o desejo de valores passados, tradicionais, e modernos, contemporâneos.

Esse processo a respeito da escola não é “novo” nos estudos de Arendt. A autora já enfatizava que a ideia de sociedades modernas sofre um processo de deserdação, provocando esse estado de frustração. Essa crise de educação moral a que a sociedade assiste provoca uma fratura entre os valores éticos e princípios morais. Para Arendt, a sociedade nunca retirou da escola sua preocupação educativa, e, nesse sentido, a ordem moral sofre a concorrência de um objetivo ético, o que reverbera na função propriamente educativa da escola.

É importante enfatizar que é quase utópico que moral e ética coexistam em perfeita harmonia. Apesar da possível articulação entre as duas, o processo educativo permite reduzir os conflitos sociais e promover a integração social. Quando essa articulação falha, então, surgem as denúncias a respeito da crise de autoridade na escola, do comportamento individualista e das “maldades” vivenciadas hoje. Essas críticas não são novas, os estudos sociológicos enfatizam, há muito tempo, o caráter inevitável desse novo sujeito presente no espaço educativo.

Parece-nos que a principal dificuldade da escola está na sua incapacidade de reconhecer as consequências originadas pela ênfase na ética sobre as preocupações morais. E, nesse emaranhado de dificuldades, surgem agonias e frustrações em relação à escola, levando muitos pais a desejar o ensino domiciliar, na esperança de um caminho mais eficiente e eficaz para seus filhos. Talvez na tentativa de protegê-los dos discursos institucionais dos docentes, que muitas vezes pautam-se na representação ideológica da ordem social, sem reconhecer a necessidade das preocupações éticas contemporâneas, conduzindo-os a um individualismo.

Nos discursos evidenciados, a escola é o meio de transmissão da estrutura ética em consonância com o indivíduo; na atualidade, esse processo requer uma ruptura entre o ideal educativo do sujeito e os modelos familiares e sociais. Esses modelos variam nas sociedades e nos momentos históricos.

Certamente, a escola continua sendo, pelo menos nos discursos, o lugar por excelência da transmissão dos valores morais na sociedade. Entretanto, o que impressiona na situação contemporânea é o desaparecimento progressivo do ensino da moral; esse movimento se caracteriza pela agonia moral, expressão da pós-modernidade. Apesar de a escola ainda ser reconhecida por lugar de vivências éticas, ela se apresenta adoecida nas relações com o outro.

Para Durkheim, existe um ideal de Homem para cada sociedade, mesmo se os saberes, com certas variações, diferenciem-se em razão dos meios sociais e dos papéis que cabem aos indivíduos. Assim, constrói-se uma expectativa da figura ideal de sujeito, e a escola tem sua parcela nessa construção. Verifica-se, então, que a escola está atrasada em relação às exigências éticas cívicas da atualidade.

Nessa perspectiva, o ensino domiciliar, também chamado de ensino doméstico, ou homeschooling, é uma modalidade de educação em que os principais processos de ensino são responsabilidade dos pais do aluno, e, de forma “familiar”, a aprendizagem não ocorre de forma tradicional — sistematizada. Talvez na agonia da construção de um sujeito cuja moral possa ser forjada de forma não esperada, os pais sofrem, agonizam e se frustram quanto à escola idealizada para seus filhos. Desse modo, apresentam a justificativa para a escolha dessa modalidade: a escola é ineficiente e incapaz de educar com valores morais, éticos e pedagógicos.

As alegrias na escola

Embora haja agonias e frustrações em relação à escola, há que se refletir sobre o contexto escolar e a necessidade de a criança vivenciar as alegrias que permeiam o espaço escolar. No conviver e viver com o outro, a criança experimenta as questões dos relacionamentos interpessoais, dos limites, da felicidade do brincar, de fantasiar, de aprender brincando, de conhecer a si e o outro. Enfim, essa criança vai se socializar, vivenciar o manejo do espaço social, conhecer a diversidade, as múltiplas opções de convivência, saber esperar sua vez, aprender a liderar, valorizar a opinião do outro, desenvolver a linguagem. A escola proporciona, com naturalidade, momentos de saber fazer, saber ser, saber conviver, que são muito importantes e fundamentais para o desenvolvimento da criança. Nessa vivência do brincar, do lúdico, do fantasiar, a criança aprende a viver em sociedade, a respeitar as diferenças, a respeitar o outro, a conhecer-se e a ser cidadão.

Na práxis pedagógica, permeada pela construção desse eu-sujeito, sujeito-cidadão social, há que significar a questão instrucional, norteada também pela construção dos saberes, do conhecimento juntamente com as ferramentas didáticas e metodológicas. Na escola, a criança vivenciará a diversidade de contatos com os vários docentes, com uma riqueza de metodologias, com métodos variados, que irão proporcionar a oportunidade de vivenciar as múltiplas modalidades de aprendizagem (visual, auditiva e cinestésica). Nesse contexto, observa-se a importância da vivência escolar, pois se valoriza o desejo de fazer valer a autenticidade, a questão “humanitária”, o (com)viver com o outro e a relação consigo mesmo.

Na escola contemporânea há muitas alegrias, e a mais significativa é a felicidade do aprender… quando a uma criança é dada a oportunidade de aprender a ler e escrever, de ler o mundo em sua volta, de conhecer a sua existência, de pensar, analisar e refletir, de desenvolver a sua criticidade, a escola estará proporcionando vida.

Considerações finais

O mundo atual, permeado pelas tendências da globalização, com transformações que são fruto da crise contemporânea da identidade, certamente traz dúvidas, inseguranças, agonias, frustrações sobre a educação e a escola. Os pais buscam a melhor opção para educar os filhos. Desanimados e muitas vezes chocados com o panorama escolar brasileiro, onde a violência e a crise de valores e princípios estão legitimadas, apresentam-se sofridos e em busca de outras soluções, como, por exemplo, a educação domiciliar.

Muito se fala sobre a importância da educação na construção do sujeito-cidadão, como ela pode transformar os indivíduos e a sociedade. O desafio da educação e dos educadores é significativo, principalmente na construção de cidadãos melhores. Há muitas agonias no processo educativo, mas há muito mais alegrias e felicidades.

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Rosangela Nieto de Albuquerque é ph.D. em Educação (Untref), pós-doutoranda em Psicologia (Universidad John F. Kennedy), Doutora em Psicologia Social (Universidad John F. Kennedy), Mestre em Ciências da Linguagem, psicopedagoga clínica e institucional, pedagoga, licenciada em Letras (Português/Espanhol), Consultora ad hoc do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), professora dos cursos de graduação e pós-graduação; coordenadora do curso de Pedagogia, autora e organizadora de dez livros.

E-mail: rosangela.nieto@gmail.com

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