Edição 69

Matérias Especiais

Fundamentos epistemológicos da relação entre professor e aluno

Vasco Pedro Moretto

O professor transmite muitas informações, mas nem sempre elas se transformam em conhecimento para os alunos

A escola é uma instituição com a missão de oferecer aos estudantes saberes socialmente construídos, visando à inserção das crianças na cultura de seu grupo e o preparo do jovem cidadão para a vida em seu contexto social. Os saberes socialmente construídos, socializados e legitimados são a matéria-prima na relação entre o professor e o estudante. Há, no entanto, muita confusão na função social da escola. Parte dessa confusão relaciona-se com a linguagem utilizada na relação entre o professor e o aluno. Nessa linguagem, estão as palavras: dado, informação, conhecimento e saber, que passamos a analisar no âmbito da educação em contexto escolar.

Dado

Chamamos de dado um signo ou conjunto de signos que tem a possibilidade de ter vários sentidos, dependendo do contexto em que é utilizado. São exemplos de dados: folha, dois, estrela, condução, quadrado. Se perguntarmos a alguém o que significa a palavra folha, possivelmente ele dirá: “Depende! Pode ser folha de árvore, folha de papel, folha corrida da pessoa, etc.”. Então, o dado folha tem vários sentidos possíveis, dependendo do contexto em que é utilizado. Da mesma forma, a palavra dois é um dado cujo sentido necessitará ser complementado. A pergunta natural será “dois o quê?”. Fica claro que o dado dois já tem um núcleo de sentido (conjunto formado por dois elementos), mas que precisará de informações complementares para esclarecer de que se está falando.

A escola, como instituição social, ainda passa para seus alunos muitos dados, que são internalizados por eles e armazenados em sua estrutura cognitiva para serem repetidos em provas e, frequentemente, esquecidos logo a seguir, porque não relacionados nem com a experiência de vida dos estudantes e nem com seus conhecimentos anteriores. Analisemos uma situação que pode ilustrar o que estamos dizendo.

Em uma prova de Matemática do 5º ano do Ensino Fundamental encontrei a seguinte questão: “Pela manhã, os funcionários da cantina colocaram na geladeira 72,3 latas de refrigerante para gelar. À tarde, foram colocadas 8,7 latas. Quantas latas ficaram fora da geladeira se sua capacidade máxima é de 535 unidades?”.

Analisando o enunciado, vemos algumas situações esdrúxulas e mesmo ilógicas. Vejamos: 1) De que forma alguém pode colocar três ou sete décimos de lata numa geladeira? Cortando a lata ou derramando o líquido? A situação é irreal. 2) Há inúmeras respostas para o problema, pois não se sabe qual era o estoque de latas que já estavam fora. Se havia 200 latas, não ficou nenhuma de fora. Se havia 601 ou 1.000 ou não importa o número acima de 535 latas, qualquer resposta seria correta. No caso específico, a criança perdeu meio ponto (0,5) porque não entendeu o problema. Sabemos, como neste caso, que sobre os alunos sempre recai a crítica: vão mal em Matemática porque não sabem ler e compreender os problemas. Não seria o momento de se perguntar se isto não é consequência da má formulação das questões propostas, como esta que acabamos de apresentar?

Outro exemplo está na mesma prova de Matemática, na questão de número oito. No início da prova, a professora contextualizou a atividade escrevendo: “Para a semana da Criança aqui no Colégio do Mundo Repetitivo [nome fictício], planejamos diversas atividades para comemorarmos esse dia tão especial”.

Questão oito: Arme e efetue as operações indicando o material de limpeza usado pelo Colégio para deixá-lo novamente em ordem:

a. 63 + 12,7 + 84,68 =
b. 15.600 – 39,47 =
c. 4.867 : 32 =
d. 7.039 x 0,57 =
e. 11.845 : 25 =

De que material de limpeza poderia estar tratando a questão? As operações com esses dados pouco ou nada significam para que se tenha a ideia do material utilizado. O aluno poderá fazer as operações, acertá-las e não ter a mínima ideia do que o contexto quer dizer. Novamente o comentário volta: dizemos que os alunos não sabem ler e não sabem operar porque não entendem o que leem. Ou será que não entendem porque o que escrevemos tem sentido em nosso contexto, mas não no contexto deles? Voltamos a lembrar a importância da linguagem no processo de ensino e da aprendizagem.

Informação

falando_sala_aulaChamaremos informação a um conjunto de dados relacionados logicamente de forma a dar sentido a uma sentença. Tomemos, para análise, os seguintes dados: caminhão, Curitiba, JFV, placa, cidade, 2437, Ford. Esses dados, tomados isoladamente, têm um sentido possível, ao qual chamaremos de núcleo do dado. No entanto, podem ter muitas interpretações, dependendo do contexto em que forem utilizados. Uma das informações possíveis é: “Acabou de passar um caminhão de marca Ford, placa JFV 2437, de Curitiba”.

Uma das atividades do professor é propor aos alunos informações para ajudá-los a elaborar o sentido das sentenças em contextos específicos. Na verdade, muitas informações acabam sendo absorvidas pelos alunos como simples dados, porque eles não conseguem captar seu sentido.

Alguns exemplos podem ser analisados:

1ª informação

O produto notável “(a + b)² = a² + 2ab + b²” ainda é, para muitos alunos, um simples decorar de resultado: “O quadrado do primeiro, mais duas vezes o primeiro vezes o segundo, mais o quadrado do segundo”. Sabem até mesmo “aplicar a fórmula”, no caso (x + 3)², cujo resultado é x² + 6x + 9. No entanto, essa expressão nada significa para eles, não passando da mera repetição de um conjunto de dados que nem sequer se transformam em conhecimento, pois não adquirem sentido em sua estrutura cognitiva.

2ª informação

“A fórmula para achar a área de um triângulo é base vezes a altura dividido por dois.” Essa informação, muito utilizada e mesmo transcrita em livros-texto, está com alguns erros grosseiros. O primeiro é saber se um triângulo realmente tem área. Não tem! Se considerarmos área como a medida de uma superfície e definirmos triângulo como uma figura geométrica plana formada por três segmentos de reta (um polígono de três lados), ele não tem superfície, portanto não podemos determinar sua área. O leitor deverá estar se perguntando: “Então, a fórmula tão ensinada —

não existe?” Claro que sim, só que com outro sentido, ou seja, ela serve para determinar a área de uma superfície plana delimitada por um triângulo (ver Quadro 1).

quadro_1

Mas a maioria das pessoas não interpreta assim. Este é um caso de um conjunto de dados que nem sempre adquire o real sentido, ficando em nível de simples interiorização de informação, sem transformar-se em conhecimento, pois os alunos a interiorizam, não captam seu sentido e a repetem mecanicamente.

3ª informação

professor_aula“João pesa 40 quilogramas.” É muito comum ouvir essa informação. Quem tem conhecimentos na área das ciências da natureza sabe que “40 quilogramas” é uma informação referente à massa do João, e não a seu peso. Este seria de, aproximadamente, 400 Newtons (usamos g = 10 m/s² na aplicação da relação P = mxg, ou seja, P = 40 kg x 10 m/s², P = 400 Newtons). Para quem trabalha com Física, por exemplo, seria um grave erro confundir os conceitos de massa e de peso, mas para as pessoas que usam a linguagem do senso comum, quando se fala 40 kg como peso, elas têm uma noção do que se fala, não tendo, no entanto, a informação correta do ponto de vista da Física, da diferença entre massa e peso.

Ao ler esses exemplos, vemos que informações, mesmo que logicamente estruturadas, nem sempre se transformam em conhecimentos, pois os sujeitos não lhes dão automaticamente sentido ao interiorizá-las. Vejamos com mais detalhes o que isso significa explorando o conceito de conhecimento.

Conhecimento

Chamamos conhecimento as informações interiorizadas pelo sujeito cognoscente e que tomam sentido em sua estrutura cognitiva ao se relacionarem lógica e significativamente às demais existentes, passando a ter significado novo, no contexto de uma rede de informações. Essa estrutura é única para cada sujeito, pois as histórias de cada um são únicas. Com isso estamos dizendo que o conhecimento é uma construção individual mediada pelo social. Por isso, afirma-se que cada sujeito constrói seu próprio conhecimento. Essa construção, no entanto, não tem sentido de elaboração de uma estrutura de conceitos e relações estruturadas de maneira fixa e estática, como na estrutura de uma casa. Pelo contrário! A expressão “construção de conhecimento pelo sujeito cognoscente” tem sentido dinâmico, ou seja, a cada nova informação assimilada, o sujeito procura acomodá-la em sua estrutura cognitiva com os demais conhecimentos aí elaborados.

Na verdade, a escola transmite muitas informações, sem que nem sempre elas se transformem em conhecimentos para os alunos, ou seja, os estudantes as recebem, repetem quando solicitados, não lhes dando sentido em sua estrutura cognitiva. Neste caso, dizemos que há uma justaposição de informações sem estabelecer novas relações. Dizemos, numa linguagem comum, que ficam “soltas”. Muitas vezes pode mesmo ocorrer uma contradição entre informações, e, por consequência, o estudante convive com elas justapostas. Para ele não há conflito cognitivo. É o caso que já relatamos em texto anterior de uma menina que havia recebido na escola as informações relativas aos movimentos do Sol, da Terra e da Lua.

Uma aluna de 11 anos chegou em casa, de volta da escola, e falou para a mãe:

— Mãe, mãe! Hoje vou tirar dez na prova de Geografia. Coloquei na prova tudo o que a professora queria.

A mãe, atenta à linguagem da filha, perguntou pelo assunto tratado em aula, e a filha respondeu:

— A professora estava explicando que a Terra gira em torno do Sol e que era isso que ela queria que a gente respondesse na hora da prova. Sabe, mãe, para explicar melhor o assunto ela colocou um menino de pé, parado em frente à turma. Chamou uma menina e mandou ela andar ao redor dele, dizendo que ela era a Terra girando em torno do Sol. Aí, ela chamou outra menina e mandou ela andar ao redor da primeira, dizendo que era a Lua que estava girando em torno da Terra, enquanto a Terra girava em volta do Sol. Foi isso que ela perguntou na prova e eu respondi certinho, escrevendo tudo que acabo de contar.

— Que bom, minha filha — disse a mãe entusiasmada. Isso mostra que você entendeu a matéria e agora sabe como as coisas acontecem, não é mesmo?

— Ora, mamãe! Eu só escrevi assim porque sei que era isso que a professora queria que eu respondesse. E tem mais, se eu não colocasse do jeito que ela queria eu não iria tirar dez na prova.

— Mas, filha, então você acha que o que a professora explicou não é verdade?

— Claro que não, mãe. Olha só! Nós duas estamos paradas aqui em casa. De manhã, o Sol nasce lá (e aponta para o nascente). Nós continuamos aqui, e o Sol vai subindo, subindo, subindo. Ao meio-dia está sobre a cabeça da gente. Depois, ele vai descendo, descendo e no final do dia ele está lá (e aponta para o poente). E então, mãe, quem andou? Foi a Terra ou foi o Sol?

Essa situação nos ilustra como a menina recebeu informações e as justapôs com outras já existentes em sua estrutura cognitiva, mas não as acomodou com outras informações já existentes, provindas do senso comum. Para ela, foram duas situações distintas, não contraditórias. Uma delas ela “via” com clareza, e a outra eram as informações dadas pela professora. A primeira era fruto de suas observações, e a segunda eram dados a serem repetidos no dia da prova para alcançar seu objetivo: obter notas boas.

Houve época em que nós, professores de Matemática, ensinávamos números primos de modo que os alunos, acreditando conhecerem o assunto, sabiam apenas duas coisas. Primeiramente, repetir a informação: “Número primo é todo aquele que é apenas divisível por si mesmo e pela unidade”. Ou de outra forma: “Número primo é todo aquele que tem apenas dois divisores distintos, ele mesmo e a unidade”. Em seguida, sabiam repetir: “Os números primos são: 2, 3, 5, 7, 11, 13…”. As duas informações são corretas. O aluno que as repetiu havia possivelmente interiorizado sem ter delas se apropriado dando-lhes o sentido da razão pela qual são chamados números primos.

Vejamos uma explicação. A palavra primo vem de primeiro. Primogênito quer dizer o primeiro nascido. Da mesma forma, os números 2, 3, 5, 7, etc. são primos porque são os primeiros números naturais, de séries de múltiplos, como podemos ver no quadro que segue:

Quadro 2

Primos

2
3
5
7
11
13

Demais múltiplos

2, 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 18…24…48…60…
3, 9, 15, 21, 27. …
5, 25, 35, 55. …
7, 49, 77, 91. …
11, 121, 143. …
13, 169. …

Observe que os números chamados primos são os primeiros das respectivas séries de múltiplos. Podemos, numa linguagem simples, dizer que 4 e 6, por exemplo, não são números primos porque o primeiro da série à qual eles pertencem é o 2 (dois). Diremos, então, que eles são os primos do 2. E por que, então, não colocamos o 6 (vindo de 3 x 2) como primo do 3? Porque, embora seja um dos múltiplos do 3, o 6 é primo do 2. O leitor pode compreender, assim, a razão pela qual os números 10, 15 e 20, embora múltiplos de 5, não são primos do cinco.

Se o leitor que já havia estudado números primos e apenas repetia as informações agora compreendeu por que se chamam números primos, é porque, possivelmente, as informações se transformaram em conhecimento.

Para ilustrar ainda mais o que estamos querendo transmitir, apresentamos o que aconteceu com o menino Vitor Pedro, de 7 anos e 11 meses. Ele morava com sua mãe e seus avós. Com frequência, pedia para que alguém fizesse as coisas por ele. “Vô, calça minhas meias”, “Mãe, pega água pra mim”, “Vô, calça minhas botas”, eram pedidos frequentes. Na tentativa de desenvolver sua autonomia, os familiares combinaram de utilizar a expressão “Vitor, autonomia”, para estimulá-lo a fazer as coisas por si mesmo.

Numa conversa com seu avô, aprendeu que o oposto de autonomia é heteronomia, isto é, fazer as coisas por dependência dos outros. Seu avô imaginava que Vitor guardaria o dado “heteronomia” apenas como um dado, sem conseguir transformá-lo em informações e muito menos aplicá-lo corretamente em alguma situação específica. Num determinado dia, Vitor Pedro falou para sua mãe: “Mãe, pega meus tênis, quero sair com meu avô”. Imediatamente o avô, que escutava a conversa dos dois, lembrou da palavra mágica: “Vitor, autonomia”. Ele respondeu de imediato: “Vô, agora prefiro heteronomia”.

Essa situação é indicadora da apropriação por Vitor da informação associada à palavra heteronomia, uma vez que ele soube repeti-la, utilizá-la com correção, numa situação singular e no momento oportuno. Dizemos que Vitor recebeu uma informação, apropriou-se dela integrando-a com sentido em sua estrutura cognitiva e aplicando-a na hora certa: ele construiu um conhecimento.

Saber

O conhecimento é uma construção individual, mediada pelo social. Embora cada sujeito construa seus conhecimentos, essa construção não é idiossincrática, ou seja, ela não tem um sentido diferente para cada sujeito. Pelo contrário, é resultante de uma interação social, via linguagem, e da imersão em determinado contexto cultural, com o objetivo da inserção do sujeito em seu meio.

Essa inserção ocorre por meio de uma atividade intersubjetiva, em que um conjunto de informações é discutido, originando um conhecimento construído pelo sujeito transcendental constituído por aquele grupo. A esse conhecimento chamamos saber.

escrevendo_quadro

Para melhor explicar, vejamos como podemos ilustrar o assunto: Um grupo de médicos estuda determinado assunto. Cada um constrói um corpo de conhecimentos em torno do mesmo. Esse corpo é pessoal e único. Mas a finalidade do estudo não é o desenvolvimento de conhecimentos individualizados. Eles, então, reúnem-se, debatem o assunto, afinam a linguagem e convencionam o que será a verdade aceita pelo grupo naquele momento. Socializam-na buscando sua legitimação por meio de seus representantes. Dessa maneira, constitui-se um saber médico sobre determinado assunto, que pode ser compartilhado por um pequeno grupo ou grupo maior, dependendo do poder de convencimento, de comprovação e de aplicabilidade do assunto. Idêntico raciocínio pode ser feito para os saberes na área das ciências jurídicas, das ciências da natureza, das tecnologias ou outras.

Retomando o conceito de sujeito, diremos que o saber é o conhecimento de um sujeito transcendental, resultado do compartilhamento intersubjetivo de um grupo de sujeitos e legitimado por representantes daquela área do saber. Assim, cabe a instituições da área médica legitimar o saber médico. Da mesma forma, os representantes legais da área jurídica legitimam os saberes jurídicos.

Essa linha de pensamento nos leva a afirmar que, no domínio dos saberes, não há verdades absolutas. Elas serão sempre contextualizadas, em função da evolução dos grupos sociais, das necessidades e dos projetos dos cidadãos.

A escola, por sua vez, adquire uma função com foco bem definido, à luz do conhecimento de saber que acabamos de apresentar, ou seja, a ela cabe o dever de selecionar, dentre os saberes socialmente construídos, aqueles que constituem as bases com vistas à introdução dos novos membros da sociedade no contexto da cultura e dos saberes de seu grupo social. Essa introdução tem dois objetivos. O primeiro é selecionar os conteúdos e apresentá-los para que seus membros entendam os valores e os saberes que identificam seu contexto. O segundo é, desenvolver a capacidade crítica para entender o que seria melhor para as novas gerações e ser um agente transformador de sua própria sociedade.

O conceito de saberes está associado ao fato de que a quantidade de conhecimentos construídos no mundo de hoje se torna cada dia mais difícil de ser abarcada pelos sujeitos tomados individualmente. Por isso, cada vez mais é necessário o compartilhar de ideias e de conhecimentos, numa forte atuação intersubjetiva para que o todo se construa pelo desenvolvimento das partes num forte sujeito transcendental. Essa é uma forte razão para promoverem-se trabalhos em grupos.

 

Referências bibliográficas

MORETTO, Vasco P. Construtivismo, a produção do conhecimento em aula. 4ª ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2004.

_______________. Prova, um momento privilegiado de estudo, não um acerto de contas. 4ª ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2004.

Vasco Pedro Moretto é Doutor e Mestre em Didática das Ciências pela Universidade Laval, Québec, Canadá, além de Licenciado em Física pela UnB e pós-graduado e Especialista em Avaliação Institucional pela Universidade Católica de Brasília.

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