Edição 28

Em discussão

Gênero e Raça: uma questão de identidade

Dados estatísticos sobre o negro no Brasil e no Mato Grosso do Sul

Ao longo de vários momentos da História do Brasil, os negros e as mulheres, entre outros grupos sociais, protestaram contra a discriminação racial e de gênero, uma luta permanente, enquanto muitos se apegavam à idéia de que, talvez, vivêssemos num país onde não existisse qualquer contradição ou desarmonia, que descarta os incidentes de discriminação por considerá-los insignificantes às vítimas, dedicadas a perturbar a paz social.

Disfarçado, o racismo ainda é a forma mais clara de discriminação na sociedade brasileira, apesar de o brasileiro não admitir seu preconceito. “A emoção das pessoas, o sentimento inferior delas é que é racista. Quando racionalizam, elas não se reconhecem assim, não identificam em suas atitudes componentes de discriminação”, analisa Alcione Araújo, escritora e dramatista. O brasileiro tem dificuldade em assumir o seu racismo devido ao processo de convivência cordial que distorce o conflito. Devido a isso, por estar dissimulado, é difícil de ser combatido.

A discriminação racial está espalhada pelo Brasil. Escola e mídia apresentam um modelo branco de valorização. O acesso aos espaços políticos, aos bens sociais, à produção de pensamento, à riqueza tem sido determinado pela lógica escravocrata.

As práticas do racismo são diversas e se apresentam de diversas formas. Por meio das estatísticas sobre escolaridade, mercado de trabalho, criminalidade, presença nas artes e outros, pode-se perceber o problema na prática.

A discriminação dá-se de duas formas: direta ou indireta. Diz-se discriminação direta a adoção de regras gerais que estabelecem distinções através de proibições. É o preconceito expressado de maneira clara como, por exemplo, dar tratamento desigual, ou mesmo negar direitos, a um indivíduo ou grupo determinado.

A discriminação indireta está internamente relacionada com situações aparentemente neutras, mas que criam desigualdades em relação a outrem. Esta última maneira de preconceito é a mais comum no Brasil.

É espantosa a naturalidade com que as pessoas — mesmo as públicas, dotadas de cargos importantes da sociedade, e as pessoas mais esclarecidas — manifestam seus preconceitos. Elas parecem não perceber o que estão fazendo e como colaboram para a internalização do preconceito, já que suas falas são tidas como verdade.

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“Milhões de seres humanos — negros, índios,
mulheres, etc. — tiveram e ainda têm suas vidas afetadas
negativamente pela discriminação racial e de gênero”

Discriminado e marginalizado, o negro perante a sociedade tem uma imagem de desqualificado, incapaz, impondo-se-lhe a restrição do mercado de trabalho. Em posições aquém da merecida, sofre com maior intensidade a situação socioeconômica intensa do desemprego, marcado pelo estigma de ser preto ou pardo.

Na sociedade capitalista, em que sobressaem as desigualdades sociais, a reprodução dessa situação impede a mobilidade social do negro, percebendo, estes, rendimentos de trabalho inferiores aos percebidos pelo branco e sendo associados a trabalhos menos qualificados, ocupando, principalmente, posições menores, em setores de menor status social. Através do preconceito, a mão-de-obra negra é direcionada para trabalhos domésticos e pesados. A sua cor é fator determinante, sobrepondo-se à sua competência ou formação.

O quadro que ora traçamos é decorrente de um processo de ausência de conscientização entre as pessoas, e esse resultado é acusado no debate da discriminação racial, principalmente no âmbito das instituições públicas e sociais. Alguns chegaram a afirmar que era impossível, até mesmo, mencionar o tema e, muito menos, pensar em mudança. O tema Discriminação racial e de gênero aparece como assunto esquecido, que não precisa e não deve ser tratado. É temido porque significa mudança de status quo, uma ameaça aos direitos adquiridos por pessoas em seus locais de trabalho e até mesmo transtorno às normas e aos privilégios estabelecidos. Essas são algumas razões por que o tema é evitado ou, quando abordado, é minimizado. Milhões de seres humanos — negros, índios, mulheres, etc. — tiveram e ainda têm suas vidas afetadas negativamente pela discriminação racial e de gênero, mas o quadro, felizmente, está mudando e exige dos novos gerentes públicos, privados e administradores uma postura de mudança organizacional. É uma questão de tempo e de sobrevivência.

Os esforços para a mudança organizacional também estão levando em conta a necessidade de abordar, discutir e ampliar a nossa reflexão sobre o tema. No enfoque sobre relações raciais, a maioria das pessoas trabalha com suas experiências de vida e com seu senso comum. Assim, a discriminação não é muito bem entendida, muito menos se sabe como se manifesta; daí o brasileiro afirmar que existe racismo e discriminação na sociedade, mas, individualmente, ter dificuldade de afirmar atitudes e práticas racistas.

Portanto, há um preconceito em se reconhecer que há preconceitos — quem discrimina é sempre “o outro”. Além disso, todos discriminam ou são discriminados de alguma forma. As respostas têm de ser procuradas nos que discriminam, não nas vítimas ou nos discriminados, que sofrem muitas arbitrariedades, sob os mais mesquinhos pretextos.

Visando contribuir para o avanço do nosso senso comum, vamos apresentar uma definição preliminar de etnia, raça e gênero.

O que é, o que é: Etnia/ Raça

Durante muito tempo, fomos acostumados a classificar pessoas usando categorias baseadas na cor de pele, na textura do cabelo, nos traços físicos, etc. Assim, criou-se o senso comum das três raças distintas: amarela, negra e branca. O conceito de raça, segundo o Dicionário Aurélio (1986:1442), é um “conjunto de indivíduos cujos caracteres somáticos, tais como cor da pele, a conformação do crânio e do rosto, o tipo de cabelo, etc., são semelhantes e se transmitem por hereditariedade, embora variem de indivíduo para indivíduo”.

No mesmo dicionário, etnia (1986:733) é “um grupo biológico e culturalmente homogêneo”. Mas, como não somos homogêneos, as culturas não estão condicionadas à nossa aparência física. Assim, etnia também não pode ser usada isoladamente para classificar ou determinar os humanos, pois as culturas não são estáticas nem puras, uma vez que as fronteiras não existem, possibilitando a inter-relação das tradições e dos costumes entre pessoas que partilham de uma mesma sociedade.

Em nossa sociedade, houve a tentativa de imposição da cultura branca, mas isso não tem sido possível, pois a resistência dos negros e índios fez produzir o que podemos chamar de cultura brasileira. Portanto, é importante afirmar que, no Brasil, estão presentes manifestações culturais desses três grupos étnico-raciais formadores dessa sociedade. Raciocinando dessa forma, não podemos supor a superioridade de um determinado grupo — o branco — em detrimento de um outro — negro ou índio —, uma vez que vivemos num caldeirão cultural.

Inserida, então, nesse mar de diversas culturas, resolvemos adotar a terminologia étnico-racial, uma vez que tais conceitos já fazem parte da cultura brasileira.

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O que é Gênero?

Gênero é o conceito que se refere a um sistema de papéis e relações entre mulheres e homens, determinado pelos contextos social, cultural, político e econômico.

O sexo de uma pessoa é determinado pela natureza biológica; o gênero é construído, difere de uma sociedade para outra e pode ser alterado de acordo com a época.

Mulheres e homens possuem diferenças sexuais e biológicas que são arbitrariamente utilizadas pela cultura para, baseado na idéia do sexo fraco (mulheres) e do sexo forte (homens), limitar a autonomia feminina, seu potencial e acesso ao poder político econômico.

As características sexuais são determinadas no útero, no momento da concepção. A construção dos papéis e das relações de gênero é um processo permanente. Essas relações sociais, que dividem os sexos, propiciam diferentes oportunidades para homens e mulheres.

As diferenças biológicas entre o corpo feminino e o corpo masculino foram se traduzindo em desigualdades inaceitáveis, provocando reações por parte das mulheres, que, ao não aceitarem essa condição de subordinação, lançaram-se em movimentos pela emancipação feminina.

Começaram com a luta pelo voto e o direito a decidir sobre o próprio corpo.

Foram tão hábeis e corajosas que, em apenas cinqüenta anos, mudaram muita coisa em quase todas as culturas. Atualmente, temos mulheres atuantes em quase todas as áreas e, sobretudo, naquelas que podem mudar o perfil do nosso sistema social injusto: movimentos pacifistas, pela preservação do meio ambiente, pela saúde integral, por uma educação não discriminatória acessível a todas as pessoas.

Para finalizar, é importante destacar que é fundamental que se faça uma avaliação profunda, que se vá além de uma análise limitada e intuitiva da realidade, para prever as formas que a resistência pode assumir e conscientizar os responsáveis pela mudança das razões mais comuns que levam as pessoas à resistência.

A decisão de mudar exige de nós sacrifícios, pois, para construir uma sociedade livre de preconceitos, não basta só constarem, na Constituição Brasileira, instrumentos que proíbam a discriminação. É preciso reconhecer que o preconceito também é fruto de motivação do inconsciente e que as nossas ações para combatê-lo encontram forte resistência. O silêncio e a falta de solidariedade para com os discriminados, sejam negros, índios ou mulheres, não podem ficar só na constatação. É preciso valorizar o debate e enfrentar o tema das relações raciais e das relações de gênero com novos paradigmas, principalmente como da promoção da igualdade.

Portanto, a presença viva e ativa dos movimentos sociais dos negros através de suas entidades e mesmo a criação de alguns órgãos de governo evidenciaram que, para diminuir os efeitos da discriminação, não bastava a instituição de um estatuto legal proibindo-a, pois ela se apresenta de maneira muito difusa.

Para superar o processo de discriminação social, econômica, cultural e estabelecer uma eqüidade de gênero e raça são necessárias políticas públicas e específicas para tal fim. O desafio que se coloca, então, é: como garantir a participação de todos sem discriminação? Pode uma sociedade multirracial e multicultural reconhecer a igualdade de seus cidadãos? Sem que as instituições reconheçam as particularidades e a discriminação a que estão sujeitos determinados segmentos da sociedade?

As esferas governamentais terão, portanto, um desafio maior, que é o de continuar a propagar as idéias de não-discriminação e, ao mesmo tempo, difundir os ideais de tolerância e de respeito aos direitos humanos. Enfim, a construção de uma sociedade que não discrimine passa por mudanças de atitudes bem radicais, a começar pelo reconhecimento de que a discriminação existe até mesmo no cotidiano das pessoas.

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Cidadania: Por uma educação não discriminatória. Etnia e Raça. Brasília: MEC/SEF, 1998.
Governo Popular/SED – Secretaria Estadual de Educação – Mato Grosso do Sul. Projeto Preliminar de Combateà Discriminação Racial no Estado de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: 2001.
LIMA, Terezinha Bazé de. O Comportamento do Negro no Mato Grosso do Sul Frente à Conjuntura Atual. Campo Grande: 2000.
Material pesquisado na internet. Projeto de Pesquisa Racismo no Brasil: As dificuldades do negro no Mercado de Trabalho. Brasília, DF: 1999.
SANTOS, Ivair Augusto Alves dos. Discriminação: Uma Questão de Direitos Humanos. In 50 Anos Depois: Relações Raciais e Grupos Socialmente Segregados. Brasília: Movimento Nacional de Direitos Humanos, 1999.

* Professora Doutora em Educação pela Unicamp, aposentada da UFMS, Presidenta do Instituto Casa da Cultura Afro-brasileira, Coordenadora de Cursos do Instituto de Ensino Superior da Funlec/Campo Grande e Diretora Pedagógica da Associação Escola de Governo de Mato Grosso do Sul.
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