Edição 107

Professor Construir

HELP! Me Eduque!

Nildo Lage

Os filhos da geração ‘‘ficamos e geramos filhos’’ subsistem como os filhos da foca: abandonados no território dos predadores dias após o nascimento. Sobreviver entre subterfúgios e subversões decreta habilidades peculiares para se escapar das armadilhas do próprio hábitat, instinto apurado para captar as ameaças a tempo de evadir e resguardar-se num lugar seguro e presteza para suplantar os famélicos que acossam sem o mínimo de piedade. Neste universo onde a supervivência está agregada à agilidade, amadurecer é essencial para construir a trincheira da autodefesa, malícia é tática para apreender, em cada bulício, uma advertência que se acerca e, assim, assegurar a existência.

As crias do humano não são dessemelhantes: como as da foca, são livres, sem limites, e, por não encontrarem quem as auxilie na formação de uma personalidade coerente, dosada de respeito, amor, afeto, desconhecem regras para acatar o outro. A indiferença aos próprios filhos, de tão notável, aborda ao desamparo. Como se os preparassem para os converter em filhos do mundo.

O diferencial é que as crias do humano, além de livres, são mal-educadas, hostis… Fazem o que a vontade delibera, pois o comprometimento é com o próprio eu, para satisfazer o ego gerido por uma personalidade egocêntrica que, simplesmente, crê que pode tudo, pois ignora o outro como próximo, o outro como cidadão e, impelido pelo egotismo, o outro como humano.8

Eu sou! Estou acima de todos! Posso o que quero e quero o que os meus caprichos estabelecem, pois meus caprichos são preceitos; o meu querer, decreto; meu agir, livre-arbítrio… Assim, nada me detém, pois eu traço caminhos para abordar o ponto almejado… Porque é a minha vontade que rege o reagir… O outro — mesmo consanguíneo — que se vire se almejar existir.

Esses “presidentes do mundo” transpõem os portões da escola, dizendo para o que vieram: dominar. Dominar por bem ou por mal, e agem com precisão, intimidam com eficácia, e reagem, excitados por uma violência que assombra. Educação? Para quê? A geração “liberdade” desconhece educação, fronteiras, princípios… O planeta é o encovado do seu quintal. Pisa onde quer, planta suas pretensões e arranca quando sente vontade… O outro — se for “bonzinho” — pode ser parceiro de zoeira. Do contrário, converte-o num tapete e o estende na passarela para ostentar as suas conquistas.

Tais deficiências impedem a escola de cumprir o seu papel, pois, sem educação e valores familiares, é difícil educar para a civilidade, para a cidadania. A diferença é a digital da identidade humana. Eles idealizam essa identidade, sem limites, respeito, educação e, o pior, de forma invasiva.

Negar o colapso é hipocrisia. O seio familiar dilacerou e exalou tudo: não há calor humano, contato, relação, afeto… amor… Basta uma discordância, e as diferenças eclodem em forma de selvageria, graças à inexistência de amabilidade, consideração e cumplicidade, fazendo com que os conflitos se convertam em bloqueadores de um existir em paz com o próximo.

A queda da família esfacelou a sociedade no instante em que o amor e o respeito foram suplantados pelas desavenças. Todos os perímetros foram rompidos. Não se tem preceitos, uma segunda chance… É tudo imediato. Sem direção, foi inevitável o acionamento do cronômetro para o ‘‘tempo da largada’’. Largada que delibera quem desabará primeiro. O aniquilamento deixou o vácuo, que foi dilatado para dar espaço a discórdias e conflitos, para que indiferenças e afastamentos se alojassem como tutores. Ceder é humilhação; estender a mão é se rebaixar, curvar-se ao outro… Em meio aos estilhaços, sociedade e família forjam as próprias armas como trincheiras de autodefesa.

A evasão de responsabilidades é notável, e não é necessário um microscópio para vislumbrarmos os mananciais que agenciam a deseducação. Para quem ousa explorar o universo familiar, é imprescindível um bote salva-vidas para não naufragar no oceano de agressividades que se forma em questão de segundos. O efeito sobrevém numa onda de violência que assusta. Jovens destroem vidas, se autodestroem… É atemorizante, simplesmente assombroso… De tão instantâneo, se assemelha a um filme de terror cujo roteiro é escrito e reescrito pelos personagens que delineiam o fim do outro… o próprio fim, num desfecho macabro.

Suplantar o outro, de tão essencial, fez com que o “tempo da largada” se convertesse no pilar para ostentar uma geração que precipitou o desfalecimento da escola, graças à imparcialidade de uma sociedade que acompanha os episódios da série “Vidas Interrompidas por Nada” como duelos naturais, consequentes da própria evolução social. E, sem amparo, a escola rui, dilatando abismos que distanciam a família da escola e a educação da formação, pois a família se converteu num apinhado de indivíduos que se afrontam, se agridem, se ferem, se trucidam… Varridos por uma brutalidade cultivada desde o berço, sem misericórdia, desfecham a arma forjada no próprio meio: a violência.
“HELP! ME EDUQUE!” Para localizar o retorno do grito entre murmúrios e lamúrias, é necessário um radar hipersensível para se autoconduzir sem atropelar ou ser postergado. Numa visita a uma turma do 9º ano da escola XXX, num bairro de classe média alta, asseverei que o poço da deseducação não é fundo… Simplesmente, é um despenhadeiro sem fim. Alunos não se respeitam, não respeitam o gestor, não respeitam o educador, tampouco o pessoal de apoio… É tudo assim: “Se for expulso, a lei me ampara, irei para outra escola”.

Uma dinâmica para delinear o perfil familiar da turma foi o primeiro passo. Havia acertado com a Direção que, ao finalizá-la, iniciaria o intervalo para não perceberem a sondagem… Fui surpreendido no primeiro olhar aos resultados: totalmente desequilibrados! Dos alunos, oito eram multirrepetentes; dois, trirrepetentes; e somente quatro estavam buscando, na educação, a estrutura para ser alguém… Além dos resultados que salientaram o desprendimento pelos estudos e a inexistência de convivência familiar, no verso da folha, havia imagens da boneca Momo, caveiras, paisagens nuviosas. Nas duas aulas em que permaneci na sala, um aluno destruiu mais de vinte folhas do livro didático para elaborar um revólver. E, quando um colega arremessou uma bola de papel na cesta de lixo, atingindo-o acidentalmente, a reação foi imediata: “Eu lhe mato!”. Levantou-se num gesto arrebatado e o golpeou na fronte… O resultado foi um tradicional galo na testa.Na segurança do meu lar, certifiquei-me que a falta de interesse, a não realização de atividades em sala, a falta de atenção, as atitudes desrespeitosas com os colegas e as brincadeiras indesejáveis são fatos triviais ante a deseducação. Repassei assuntos discorridos em conversas paralelas — baladas, drogas, sexo, confronto com gangues da escola rival —, reescrevi frases de programas de televisão, músicas e filmes mencionados… No primeiro olhar, deparei-me com o fulgor dela — a televisão —, poderoso veículo cujos condutores controvertem hábitos, transformam comportamentos, invertem papéis, dissolvem valores… No segundo, a vilã Internet e seus agentes: smartphones, computadores e tablets.

Corri para o primeiro ciclo, numa turma do 1º ano. A resposta: tudo se inicia nos primeiros meses de vida. Sons, imagens, animações… O brilho seduz, conecta, hipnotiza. Entre caminhos e descaminhos, muitos que navegam na rede sem acompanhamento dos responsáveis são fisgados pelos agentes que influenciam na formação de uma personalidade irônica e perversa.

Visitei a casa de três alunos cujo comportamento me chamou a atenção. Na primeira: angústia! Os pais não tinham comando, tampouco autoridade sobre uma criança de seis anos. “Chato, burro, idiota…” foram as palavras mais limpas… Na segunda: pânico! Agressão e desrespeito fluíam como preceitos. Imagine um lar onde ninguém respeita ninguém. A cada cinco palavras, quatro são palavrões. De cada três atos, dois são de violência… O menino de sete anos trata os pais como peteca — entre chutes e tapas. Num ato de correção da mãe — para manter as aparências diante do visitante —, a criança cuspiu na sua face… Na terceira: impotência! Impotência ao contemplar, de pernas e mãos atadas, crianças, adolescentes… Uma família se amofina sob os efeitos de drogas e bebidas alcoólicas, como plantinhas arrancadas e arremessadas ao nada… Girei o olhar… Numa poltrona com o tecido rasgado e manchado de bebidas e alimentos, uma “criança” de doze anos estava grávida… Um menino encolerizado de 8 anos estacou diante do pai, ameaçando-o, pois queria o celular. O pai reagiu com um violento tapa na cabeça. A mãe replicou imediatamente e atingiu o esposo com uma vassourada que abriu um corte na testa… A menina de seis anos — a aluna —, acuada num canto, apenas chorava. Após inúmeras tentativas, consegui abrandar os ânimos. Ato contínuo, abandonei o recinto.

As cenas, de tão fortes, causaram-me mal-estar e deixaram o alerta: quem almejar aferir a grandeza do caos, enverede pelo desfiladeiro por onde descarrilharam os valores da família e compreenderá o alastramento da violência doméstica, a proliferação do feminicídio… Os reflexos — angústia, pânico, impotência — são roteiros que preenchem os telejornais: terror nos lares, terror nas ruas, terror nas escolas — como o sucedido em Suzano — são inspirações para fortalecer os embriões de infratores desenvolvidos no laboratório chamado família.

Como precisava de respostas para me convencer de que não transitava num cenário de tramas cinematográficas, recuei até estacar à porta de uma creche.

O grito “HELP! ME EDUQUE!” é um sussurro perante berros que ecoam acompanhados de unhadas, mordidas e objetos arremessados em todas as direções. Petrificado, contemplei um espaço que acolhe “projetos de cidadãos”, onde reconstruir personalidades é mais gritante do que a necessidade de apoio pedagógico, cuidados ou alfabetização. É extraordinário como crianças — a grande maioria usando fraldas — sobem em mesas, empurram armários… E debelam o território à base de birras, gritos, peças de jogos arremetidas, chutes e puxões de cabelo.

Nesse mundo de pequenos mal-educados, o educador tem que ser tudo: psicólogo, psiquiatra, assistente social, pediatra, mãe, pai, avó, avô… E para-choque com blindagem para resistir aos impactos dos golpes que partem de todas as direções… É surpreendente como o ‘‘parasita’’ desamor consumiu princípios e valores familiares, proliferando de forma aleatória, afetando todos os níveis, a ponto de violência doméstica, vulnerabilidade, drogas, abuso sexual transitarem do condomínio de alto padrão à favela.

Se não tivermos foco e estrutura para resistir aos golpes, perderemos a direção. Eu perdi! Realmente me senti desnorteado, impotente… Olhei para a direita, para a esquerda… Não consegui conter o grito “QUEM SÃO OS RESPONSÁVEIS POR TAMANHA DESEDUCAÇÃO?”.

Nós, progenitores! Não atentamos para o estado em que as nossas crias progridem numa sociedade desconexa pelas discórdias, amordaçada pelas drogas, esfacelada pela violência. Não admitimos que nossos filhos são a essência da geração que não desconecta e, para termos um instante de trégua, consentimos que naveguem entre verdades líquidas e inverdades dispersadas nas redes digitais. Não os vemos crescer, não sabemos com quem andam, o que fazem, o que acessam na Internet… Com quem se relacionam no universo imaginário… Seus educadores são os agentes digitais que abduzem da rota da formação e, como eles não aprenderam a pôr os pés no chão nem a transitar por caminhos que não sejam veredas esboçadas nas plataformas digitais, autoconduzem-se guiados por apps, deixam-se levar por jogos que instigam a violência e incitam a matar. Assim, são arrastados por trilhas paradoxais que suprimem os velhos paradigmas, pois o subjetivo se torna pontilhão para arquitetar o próprio universo como penhor de conservar-se num planeta que submerge nas ferramentas digitais.

O chocante é que nós — pais — temos ciência de que os algoritmos compatibilizados da Internet misturam verdades, dispersam inverdades, confundem ficção com realidade. Temos ciência de que a Internet das Coisas é uma realidade aumentada que transforma smartphone num instrumento que acopla o humano ao mundo e o guia por coordenadas que o transportam ao ponto almejado, inclusive, ao fim — a exemplo da Baleia Azul. Temos ciência de que a autoridade que os códigos binários da Internet exercem sobre o humano é, simplesmente, fulminante: dilui as divisas do universo, ultrapassa os limites do outro, rompe as barreiras do eu e o estaciona na dependência, a ponto de desvirtuar valores, instigar a submersão no próprio mundo. Privacidade e segurança perdem o sentido tão somente para não abrir mão da falsa sensação de livre-arbítrio. Apesar de a pluralidade proporcionar o alargamento da gama de conhecimentos, imperam relações empáticas.

O excêntrico é que são crianças. Pequeninos que transitam pela incógnita com tamanha desenvoltura que se assemelham a vírus desenvolvidos para debelar os recursos dos softwares, suplantar as barreiras instransponíveis dos superantivírus… É como se um chip fosse instalado ainda no ventre materno e configurado para proporcionar intimidade com as parafernálias tecnológicas… Uma conexão tão extensa, um relacionamento tão íntimo que um absorve a essência do outro, a chamada upagem da mente.

A dilatação entre as gerações é abissal. As nossas meninas não querem boneca, casinha, amarelinha… Nem os meninos querem carrinho, pipas, bolinha de gude… Não se ouve mais “Atirei o pau no gato!” nas ruas, tampouco “Guarda o meu anelzinho bem guardadinho!” nas calçadas. Só trilhas sonoras de jogos eletrônicos… Olhos fixos, vidrados no fulgor da tela. Ninguém nota o outro, porque ninguém necessita de contato físico, calor humano. O mundo digital é um universo aconchegante: abriga, abraça, aquece, protege… É assustador, mas é verdadeiro… E, o pior, com o nosso total consentimento.

9Como pais, mal encaramos as nossas crias. Muitas chegam com hematomas, e não percebemos. Bateram, apanharam, feriram, foram feridos… Não notamos… Não perguntamos: ‘‘Como foi o seu dia na escola? Tem alguma tarefa para casa?’’. Educadores? Ah! “Educadores!’’ São mestres! Quando alcançam a pujança são, simplesmente, eficazes e passam! Passam para não encarar no ano seguinte “o que não quer nada com a vida”. Passam e não se arrependem de impelir adiante “o que não tem mais jeito!’’.

Quando a escola bate à porta da família em busca de suporte, os criadores contrapõem: “Não sei o que fazer com isso!’’ — apontando para o filho. ‘‘Não tem mais jeito!”.

Quem não tem mais jeito, reprodutores? Um ser em formação necessita de conteúdos à base de valores, princípios, exemplos, regras e orientação para crescer. Será que nós — pais — não podemos reverter o quadro? Sejamos francos, agimos como o sistema, cuja indiferença nos impede de vislumbrar vidas que se debatem ao nosso lado, na tentativa de agarrar qualquer oportunidade. Não como filhos da foca, mas como humanos que, mesmo suprimidos, sonham, ambicionam ser alguém. Assim como o gestor e o governo se aliam para descumprir compromissos, nosso descaso salienta a incapacidade de reverter situações que estabelecem envolvimento, ação coerente, honestidade com aqueles que necessitam de apoio para superar desafios.

Se nós — pais e educadores —, responsáveis pela formação, inserção de conteúdos e valores, nos conservarmos de braços cruzados… aonde alocaremos a escola?

Eu lhe direi! Decaia o olhar! Fixe-o exatamente lá… Visualizou a escola no fundo do despenhadeiro? Não? É porque não há escola! Não há nada além de um prédio… Não há anseio do governo para fazer a diferença com uma educação de qualidade; não há a responsabilidade do sistema na educação e nos subsídios à base de conteúdos que promovam a formação integral… Não há empenho, entrega, compromisso do educador… Não há amor, não há respeito, não há carinho… Não há endividamento, participação, implicação da família… E, sem a junção dessas ações, não há ensino, não há aprendizagem, não há educação… E, sem educação, prosseguirá o ardil cujo pano de fundo são imagens tridimensionais das sagas: todos se agridem, todos se desrespeitam, todos se abusam… Abusam fisicamente, abusam psicologicamente, abusam emocionalmente… Abusam do eu, do outro, do cidadão… Até chegarmos ao epílogo: destruição.

Apreciando a escola no fundo do despenhadeiro, certificamo-nos de que a nossa educação é enganação. A formação torna-se mito, e, quando a educação debanda de onde devem emanar regras e valores, tudo fica difícil, pois a família não quer se inclinar para fazer o resgate e ser o suporte. Mas como dar suporte à escola se, pelo mesmo precipício, desabaram os resquícios de autonomia, responsabilidade, valores e princípios familiares, a ponto de a educação das crias ficarem sob o encargo de estranhos ou da grande educadora: a vida?

Vamos nos curvar perante a crise! Não temos nada: conteúdo, valorização, regras, propósitos, limites, tendências, tampouco educação. Todavia, turmas inteiras prosseguem para o próximo ciclo. Seguem assim como os filhos da foca: abanando as mãos vazias, sem noção de que direção seguir. A situação, de tão bizarra, permite que muitos finalizem o Fundamental II sem as competências da alfabetização. A exemplo de um aluno do 9º ano da escola XXX… Somente no último ano do Fundamental II, a psicopedagoga — recém-chegada — desvendou que ele não tinha transtorno. Uma deficiência auditiva o impedia de socializar, absorver os conteúdos explicados… Os pais não descobriram, professores não se atentaram, a equipe pedagógica não foi informada, e o adolescente sofreu as consequências.

É por esse labirinto que descarrilhou a locomotiva escola, arrastando a educação para um ambiente nocivo que absorveu valores, desfaleceu o educador e dificultou o processo de ensino-aprendizagem. Se não houver um resgate, por meio de ações emergenciais, vidas se perderão e submergirão numa sociedade desnorteada. Sem educação, não há autonomia; sem educação, as mudanças sociais se arrastam, porque a sua haste — a família — está permitindo esvair de si o senso de justiça, a importância do amor e o fundamento do respeito na formação do indivíduo.

A crise de valores bate à porta, prenunciando a largada da temporada de reprodução independente. Independente porque a validade dos matrimônios é cada vez mais breve. As crias se convertem em espécies migratórias. São passadas e repassadas a babás, creches, avós, tios, vizinhos… E, em caso de vulnerabilidade, encaminhadas à adoção… Em cada espaço, valores e preceitos são plantados e arrebatados… No meio da jornada — na idade escolar —, a instituição recebe um indivíduo cuja personalidade é um mosaico: um tiquinho de todos.

De quem é a infração? Do Gasparzinho? Os responsáveis não se dão conta de que a educação de conteúdos não sana o problema, porque o nosso sistema não oferece um ensino com a qualidade mínima, a iniciar pela Educação Básica, para desempenhar funções sociais e transformar vidas.

Como a regra é prosseguir, ano após ano a escola se arremete obedecendo a rota do calendário escolar. Todavia, não progride para romper as barreiras sociais e atenuar a desigualdade.

É inevitável o grito “HELP! ME EDUQUE!”. O brado retine e silencia… Com uma olhada no interior da sala de aula, trailers da trama “Injustiças da Justiça” acendem repulsas. O educador, no ápice do seu desequilíbrio, pratica tudo: preconceito racial, social, religioso. Acende o ódio, instiga a violência, intensifica as iniquidades, mesmo consciente de que tais atitudes marcam o aluno para o resto da vida. Assim como seu cliente, foi alcançado no íntimo, na personalidade, no eu que não resistiu aos sismos e forjou um caráter disforme. De tão perverso, persegue, humilha, provoca situações que ultimam em extrusão, salientando o retorno automático da ação governo-sistema-escola-gestão-educador-família: exclusão.

Sejamos coerentes. Sala de aula é espaço de formação. Todavia, converteu-se num território de conflitos, pois a universidade não preparou o regente para recepcionar os membros de uma sociedade plural, e o sistema se encarrega de amofinar o espaço ao negar a esse regente suporte e aporte. Sobrevivendo sem segurança, apoio e contribuição, o educador se submerge no próprio universo e, na tentativa de suavizar o clima, avança às cegas. Suas ações são labaredas que alçam a temperatura.

Muitos entram em pânico ante as próprias atitudes ou quando são notificados de ocorrências. No instante seguinte, questionam: “Por qual caminho enveredaram os valores familiares?”.

família responde, educador: “Foram arremessados no abismo dos desamores, das desavenças, dos inúmeros relacionamentos turbulentos”. E, mesmo não sendo fruto da geração “zapear”, alguns pais romperam os paradigmas para criar filhos com valores, pois a febre digital — que contaminou o próprio filho — provocou a mutação mental, implantou a fugacidade para que as relações se tornassem levianas, convertendo o lar num espaço individual.

E agora? Quem poderá me defender? Não chamarei o Chapolin… Vou gritar “HELP! EDUQUE O EDUCADOR!”. para que o eco desse grito aborde às dependências do sistema e este reaja ante a deseducação docente.

Desculpe, educando, o sistema é surdo, mas não é cego e, pelas leituras labiais, compreende gritos, palavras de exclusão, gestos de repúdio… Se contabilizarmos as ações violentas que um educador emana num turno de aula, entraremos em pânico. É lastimável. Ninguém faz nada. Por isso, a maioria atua assim. Sabemos que é assim. Não necessitamos apenas de formação, apoio e contribuição; é gritante a nossa deseducação.

Vamos estacionar para ouvir os ecos que retinem por salas e corredores: é possível um profissional que grita, desfecha adjetivos pejorativos e dispersa violência formar um indivíduo aperfeiçoado, que acate limites e o eu do outro? Como ser educado por um profissional cuja base de valores não foi construída? Como ser educado por um profissional que desconhece a fonte da própria origem, que muda a ótica do outro chamando a avó de mãe, a vizinha de dinda, o tio de pai, a mãe de tia ou que desconhece pai e mãe?

Se não temos estrutura para contornar, vamos interromper o ritmo para uma reflexão? Eu silenciarei. Buscarei refúgio no silêncio, pois necessito de um encontro comigo para meditar sobre as minhas ações num ambiente — sala de aula — onde a palavra conduz ao conhecimento, redireciona vidas, mas também pode destruir sonhos, pessoas… Por serem um veículo que transporta toneladas de expressões, uma infinidade de linguagens e milhares de significados intrínsecos, palavras arrancam sorrisos, derramam lágrimas, porém, apesar de convencer multidões, não superam o silêncio, que fala mais que um milhão de palavras.

Por isso silenciei, e foi na eloquência desse silêncio, no refúgio do meu eu que me deparei comigo mesmo, divisei os meus limites e o meu posicionamento no universo educação: no marco zero. Foi exatamente no ponto de partida que me encontrei como humano, como profissional, e me certifiquei de que não sou nada além de um aprendiz. Se ambicionar ser um formador de humanos, terei que romper as barreiras do meu próprio eu, pois, para ser formador de humanos, é necessário alicerçar a minha base de humano. Humano que precisa aprender a aprender para aprender a ensinar. Ante o nada que descobri que sou, emudeci de novo.

Emudeci e aprendi a primeira lição: o silêncio é mestre, orienta-nos por meio de reflexos, atos e atitudes que discorrem a nossa volta como o grito do outro… O silêncio do outro — educando — vai além do grito “HELP! ME EDUQUE!”. É uma sentença do eu que nos impele a calar para ouvir… E, quando ouvimos o outro, percebemos e entendemos os seus anseios e interpretamos esse silêncio como ecos de sabedoria. Esta, quando fala, asfixia palavras, descarta gestos, pois o silêncio, de tão admirável, nos proporciona o privilégio de ouvir o eu de todos, nos adverte de que a palavra mais sábia é a que foi contida para não magoar, ferir e fazer o outro sofrer, não desviando do intento maior: ser feliz.

Todavia, vivemos no país do grito. Tudo é resolvido no grito, e o caos me instiga a romper o silêncio: “HELP! ME EDUQUE!”. Se eu calar, estou admitindo a ruína da família, da escola e, consequentemente, da sociedade… Meu silêncio foi o espaço entre o eu e o profissional, com o cumprimento das responsabilidades de formador de humanos… A ficha caiu, despertou a consciência de que o grito é necessário… Se todos silenciarem à minha volta, eu gritarei, mesmo que seja um grito na multidão. Contudo, em nome de uma educação inclusiva e eficaz… A sala de aula só transformará comportamentos e vidas se inserirmos, no universo do aluno, elementos à base de valores que promovam o seu desenvolvimento humano e pessoal, porque a arte de promover a mudança no outro consiste na iniciativa de oferecermos subsídios que supram às necessidades que habitam nele.

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