Edição 56

A LEI Nº 11.645/08

Identidade afro-brasileira O mito da democracia racial e a defesa de ações afirmativas

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Um dos assuntos mais em voga no Brasil atual é a questão racial, com foco na posição dos descendentes de africanos no conjunto da nação e em suas relações com o segmento detentor do poder econômico. A ascensão de uma classe média afrodescendente mais escolarizada e abastada que nas gerações anteriores é o principal dado dessa questão, que se reflete e é refletida na presença — improvável entre a Revolução de 1930 e o fim da Ditadura Militar, em 1985 — de negros nas altas cortes do Poder Judiciário como ministros e com destaque em vários outros campos da vida nacional. Daí emerge o debate.

Mestiçagem e multiculturalidade

Só a convivência harmoniosa entre os segmentos e as culturas poderá levar à democracia total com que sonhamos.

O mito da democracia racial

O Brasil pós-abolicionismo esforçou-se, segundo muitos autores, em remover a “mancha negra” deixada pelo escravismo. E essa “assepsia” teria tido como principal estratégia a promoção da imigração maciça de europeus a partir, segundo o historiador Sidney Chalhoub, da falsa ideia de que o negro era um mau trabalhador e de que o europeu, sim, era o agente mais eficaz para acelerar a passagem do Brasil agrícola e rural para o capitalista industrial e urbano.

Na década de 1930, começam a surgir, principalmente em São Paulo, em face da opressiva presença do imigrante, entidades negras que denunciam e contestam o preconceito de a lei nº 11.645/08 Identidade afro-brasileira O mito da democracia racial e a defesa de ações afirmativas que eram vítimas seus membros e a população afrodescendente como um todo. É a luta contra o racismo que começa a tomar corpo. E, para combatê-lo, na observação de Joel Rufino dos Santos, constrói-se a ideologia da democracia racial, apontando ao elemento negro a música popular e o futebol como os caminhos através dos quais sua ascensão social seria possível.

Segundo essa ideologia, o Brasil seria a pátria da convivência pacífica e harmônica das raças, mas seus formuladores se esqueciam de fatos como a proibição governamental da inclusão de jogadores negros na seleção nacional de futebol em 1920; a proposição ao Congresso Nacional, pelos deputados Andrade Bezerra e Cincinato Braga, de projeto legislativo proibindo a imigração de “indivíduos humanos de cor preta” no ano seguinte; o discurso, na Câmara Federal, do deputado Gilberto Amado, contrário à viagem à Paris, em 1922, do grupo musical Oito Batutas (“negroides” e “pardavascos”, segundo a imprensa da época), liderado pelo mais tarde celebrizado flautista Pixinguinha, desqualificando sua música e sua imagem.

A luta ao longo dos anos

É nesse ambiente que se funda, em São Paulo, a Frente Negra Brasileira (FNB), com o objetivo declarado de “unir a gente negra para afirmar seus direitos históricos e reivindicar seus direitos atuais”. Mais que uma simples entidade de ajuda mútua ou recreativa (o que também era, mantendo inclusive um grupo instrumental de samba para animar seus bailes e apresentar-se em programas radiofônicos,

além de uma banda de música), a FNB foi uma trincheira de luta. Quase um partido político, chegou até a articipar da Revolução Constitucionalista de 1932, com um contingente de soldados batizado com o nome Legião Negra.

Depois de atrair um bom número de adeptos em vários estados brasileiros; de editar um jornal, A Voz da Raça; e de ter seus representantes recebidos em audiência por Getúlio Vargas, então chefe do Governo Provisório, a Frente Negra acabou por se enfraquecer, até ser colocada pelo Estado Novo, em 1937, na ilegalidade, como todos os partidos políticos.

Com o fim da FNB, a luta organizada dos negros experimentou um relativo declínio: a militância, camuflando-se em iniciativas de ação declaradamente culturais ou recreativas,como o Teatro Experimental do Negro, criado por bdias Nascimento em 1944; e em diversos clubes sociais surgidos ou mantidos em todo o Brasil, como o carioca Renascença Clube, de 1951, e o paulistano Aristocrata, fundado dez anos depois.

O final da década de 1960 começa a ver o renascimento da militância negra e a retomada das denúncias contra o mito da democracia racial no Brasil, principalmente depois da brutal discriminação sofrida pela coreógrafa afro-americana Katherine Dunham em um hotel da cidade de São Paulo, que motivara a produção, em junho de 1951, da primeira lei a reconhecer o racismo brasileiro, a Lei Afonso Arinos.

O surgimento de uma nova militância

A nova militância dos movimentos negros no Brasil veio, segundo John Burdick, ensinar às jovens gerações de brasileiros afrodescendentes que sua história e muitos termos até então usados por eles mesmos para se autodefinirem tinham sido criados ou distorcidos pelo poder político e econômico dominante. Integrado inclusive por entidades leigas surgidas no seio da Igreja Católica, além de centros de pesquisa em universidade, esse moderno ativismo passou a respaldar-se, também, numa nova vertente da pesquisa acadêmica de relações raciais no Brasil. Através de militares qualificados por meio de graduações e pós-graduações universitárias, os afrodescendentes passaram a assumir o lugar de destaque no discurso antirracista, necessitando mais de intérpretes intermediários.

Foi assim que, segundo muitos analistas, a democracia racial, supostamente existente no Brasil, foi desmarcada e o pensamento conservador, alegadamente preocupado com a divisão racial do País (quando se discute a adoção de ações afirmativas para incluir os negros), passou a enfatizar o elogio da mestiçagem.

A defesa de ações afirmativas

Os defensores das ações afirmativas argumentam que é impossível desvincular-se da questão social, que toda discussão sobre a má distribuição da renda no Brasil e sobre a consequente pobreza que assola a maioria da população nacional precisa ser compreendida em sua dimensão etnorracial. E isso porque, segundo eles, a divisão a sociedade brasileira entre brancos e não brancos sempre existiu.

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Na defesa de seus pontos de vista, lembram os partidários das ações afirmativas que, no Brasil, a ascensão da miscigenação, quando se deu, foi em ocorrências isoladas. Aqui, pelo menos até o fim da época imperial, a mestiçagem entre brancos e não brancos foi, em geral, no âmbito da superioridade dos primeiros sobre os outros, encoberta pelo manto de temor reverencial através da imposição do poder sobre o corpo: do estupro, real ou presumido. Sem falar dos momentos em que a miscigenação foi vista como solução eugênica, como possibilidade de resolução de um problema, dentro da perspectiva que tinha a sociedade brasileira de “melhorar a raça” — para usar a expressão empregada, ainda em 2008, por um senador da República em relação ao casamento interétnico de um colega seu afrodescendente.

É dentro da perspectiva de “aprimoramento genético” que, outrora, no Brasil rural, em contraponto à rotina dos coronéis “tombado” regras nos carnavais, alguns cidades homens “brancos” e alfabetizados para eles entregarem suas filhas em casamento. Acreditava-se que — como expressou no I Congresso Universal de Raças, em Londres, em 1911, o então diretor do Museu Nacional Brasileiro —, no Brasil, a mestiçagem da população levaria ao total embranquecimento em 100 anos, o que evidentemente não ocorreu.

O caso é que, na sociedade brasileira, salvo raríssimas exceções conhecidas, a efetiva mestiçagem da população quase que só se verifica nos estratos mais baixos, entre aqueles que não têm acesso à mobilidade social ascendente. Então, ela é sempre um fator de perpetuação da exclusão — diz a moderna militância negra.

Em busca da harmonia

Com base nesses argumentos, os defensores do Estatuto da Igualdade Racial, em discussão no Congresso Nacional, apregoam que todo debate sobre justiça social no Brasil tem que passar sempre pelo enfoque étnico. E esse enfoque é aquele que destaca a afirmação da identidade de cada grupo formador da sociedade brasileira. Não fosse assim, a Constituição Federal — dizem eles — não disporia sobre a proteção das culturas de todos os grupos “participantes do processo civilizatório nacional”, descendo à minúcia de abordar a “fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais”. Se, na luta por melhores condições sociais, a afirmação da identidade afrodescendente carecesse de sentido, também não se justificaria a existência das milhares de associações étnicas ou racionais, tanto recreativas quanto assistenciais e beneficentes, que aglutinam, legitimamente, milhares de pessoas e famílias por todas as grandes cidades brasileiras. Essas associações se tornam mais fortes e politicamente influentes à proporção que aumenta o poder econômico dos que as criaram e mantêm.

De nossa parte, entendemos que o Brasil é um país múltiplo e que a nação brasileira é um todo multicultural. E que só com convivência pacífica, harmoniosa e tolerante entre todos os segmentos e culturas, com equilíbrio econômico e político, é que se poderá chegar à democracia total com que todos sonhamos.

Para você pensar e agir

“O Brasil é um país múltiplo” e a “nação brasileira é um todo multicultural”. Essas são as ideias finais deste texto. Como você as compreende? Elas se aplicam à região em que você vive? Junto com seus amigos, pesquise como é a realidade da população e da cultura local. Descubram quem foram seus antepassados, construam a árvore genealógica de sua família indicando a etnia de seus membros. Em sala de aula, observem essas informações e identifiquem a miscigenação que aconteceu, a múltipla origem da sua comunidade e os povos que colaboraram para a existência de sua cidade. Depois, façam um levantamento das manifestações de cultura popular da sua região, dos “causos” contados pelos moradores mais antigos e das religiões que são praticadas. Discutam essa realidade e identifiquem a origem de tudo isso. Agora, vocês conhecem melhor suas raízes, e é o momento de valorizá-las e homenageá-las. Como? Vocês podem, por exemplo, criar um dia de atividades na escola, aberto a toda a comunidade, com músicas, poemas, exposição de cartazes, discursos e tudo o mais que acharem interessante para mostrar a todos a importância dessa miscigenação e da riqueza cultural brasileira.

Para saber mais

Filmes

O que é o Movimento Negro (1998/Documentário – Núcleo de Estudos Negros) Filhas do Vento (2004. Dir. Joel Zito Araújo) O Povo Brasileiro (2000/Documentário. Dir. Isa Grinspum Ferraz)

Música

Um Jeito pra Ninguém Botar Defeito (Samba-enredo de 1986 da escola Imperatriz Leopoldinense) País da Fantasia (Cidade Negra) Negros (Adriana Calcanhotto)

LOPES, Nei. História e Cultura Africana e Afro-brasileira. São Paulo: Barsa Planeta, 2008.

Um Jeito Pra Ninguém Botar Defeito
Composição: Niltinho Tristeza, Guga, Jurandir e Tuninho

Despontou, ô ô ô
e faz ouvir, ao longe, o seu cantar. (Bis)
Ser feliz
é sempre amar, amor, Imperatriz.

Um grito emana do povo.
Os direitos são iguais.
Brancos, negros, índios
agitam a bandeira da paz.
Desperta a esperança,
a vida acende, é luz, é cor.
Surge nova era.
O que passou, passou, ô ô.
O que passou, passou.
Vem brincar, amor,
de um jeito tá (bis)
que eu também tô.
Vou cair na brincadeira,
rasgar de Norte a Sul.
Vou pegar minha bandeira,
dançar o frevo e o maracatu.
Quero ver clarear.

Aguenta, coração.
Há verde e branco em minha vida. (Bis)
Meu futebol, meu Carnaval,
minhas bandeiras na avenida.

País da Fantasia
Compositores: Da Gama, Lazão, Toni Garrido, Bino Farias

No país da fantasia,
impera a alegria,
e amanhã é um novo dia.
No país da fantasia,
impera a utopia,
e amanhã é outro dia.
Feriado nacional
se estou bem, se estou mal…
Com meu time na final
do campeonato estadual,
já tá legal.
Se como bem, se como mal,
só não pode faltar sal
pra me enterrar, pra me proteger,
me afastar dos urubus.
Pra me enterrar, pra me proteger,
me afastar dos urubus.

No reino da fantasia,
um Carnaval de hipocrisia
pro cidadão que agoniza
na porta do hospital.

Eu passo mal, eu passo mal
quando vejo, no jornal,
antas e pequenos roedores
na coluna social.

Se exibindo na TV,
falando dos antepassados
que vieram pro Brasil
trazendo negro acorrentado.
Nossos índios massacrados,
E dizem que descobriram o Brasil…

Cadê Zumbi,
cadê Dandara,
cadê Manoel Congo,
João Cândido,
Luísa Main?
Personagens da nossa história.

Negros
Composição: Adriana Calcanhotto

O sol desbota as cores,
o sol dá cor aos negros,
o sol bate nos cheiros,
o sol faz se deslocarem as sombras.
A chuva cai sobre os telhados,
sobre as telhas
e dá sentido às goteiras.
A chuva faz viverem as poças,
e os negros recolhem as roupas.
A música dos brancos é negra.
A pele dos negros é negra.

Os dentes dos negros são brancos.
Os brancos são só brancos.
Os negros são retintos.
Os brancos têm culpa e castigo.
E os negros têm os santos.
Os negros na cozinha,
os brancos na sala.
A valsa na camarinha,
a salsa na senzala.
A música dos brancos é negra.
A pele dos negros é negra.
Os dentes dos negros são brancos.
Os brancos são só brancos.
Os negros são azuis.
Os brancos ficam vermelhos.
E os negros não.
Os negros ficam brancos de medo.
Os negros são só negros.
Os brancos são troianos.
Os negros não são gregos.
Os negros não são brancos.
Os olhos dos negros são negros.
Os olhos dos brancos podem ser negros.
Os olhos, os zíperes, os pelos.
Os brancos, os negros e o desejo.
A música dos brancos é negra.
A pele dos negros é negra.
Os dentes dos negros são brancos.
A música dos brancos,
a música dos pretos,
a música da fala,
a dança das ancas,
o andar das mulatas.
“Ó essa dona caminhando.”

A música dos brancos é negra.
Os dentes dos negros são brancos.
Lanço o meu olhar sobre o Brasil e não entendo nada.

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