Edição 17

Em discussão

Indisciplina ou problema de aprendizagem?

Na alvorada do século XXI, vemos, na sociedade, a transformação, a mudança de valores sociais e individuais e a influência direta dos meios de comunicação de massa em nosso país. Essas transformações acontecem mais perto do nosso dia-a-dia na família e na Escola. Quais as influências, os valores, as regras e os limites a que estão submetidos nossas crianças e nossos jovens? Essas influências, dos mais diferentes tipos, geram novas pautas de conduta na geração atual e na futura.

É fácil observar a mudança ética e de valores através das novelas e dos noticiários, em que há o superdimensionamento da vitória do desonesto, do charme do mau-caráter, da glória do bandido, das traições entre amigos e familiares; através de fatos de corrupção como rotina; da violência como o maior atrativo dos noticiários em que se descrevem detalhes de um assalto, de um assassinato; verdadeiras aulas, na melhor didática, servindo, assim, de modelo para crianças e jovens, deixando-os presos aos pólos da violência, do sexo e da trapaça, como maior incentivo à indisciplina, ao crime e à impunidade nas instituições escolares.

Nesse contexto nacional e internacional, balizado pela globalização econômica e potencializado pela lei da competitividade, que se apóia na lógica da filosofia do capitalismo selvagem, do lucro a qualquer preço, o ter é mais importante que o ser. Essa discussão é muito antiga, e, como resultante, temos a geração do individualismo, do desrespeito e da agressão à vida humana (que perde o seu valor) tornando-se rotina, o que já não causa espanto, o que nos faz questionar: a nossa Escola poderá ficar imune a esse contexto?

Em se tratando do Brasil, a família brasileira também sofre transformação, não só em sua estrutura como em sua forma de educar os filhos, o que, na prática, vai se refletir na conduta dos alunos dentro da Escola assim como nas relações família–escola.

A família nuclear — pai, mãe e filhos — hoje se transformou numa complexa rede de relações entre filhos, irmãos “Só do meu pai”, “A minha irmã que é dos dois, mas agora a minha mãe tem um filho”, “O meu irmão do tio, sabe como é?”. Imaginem os diferentes padrões disciplinares a que está submetida essa criança. Na casa da mãe, ela tem certas normas, mas o padrasto atual pode ter outras: “Quando criei meus dois filhos anteriores, eu fazia diferente…”, mas essa mesma criança, na casa do pai, terá outras normas dadas por ele e, talvez, alguma interferência da madrasta atual.

Por outro lado, as relações entre pais e filhos, mesmo se mantendo numa família nuclear padrão, se modificam numa direção de menor autoridade dos pais e de uma certa perda de equilíbrio nessa convivência (por uma interpretação errônea de teorias educacionais, por excesso de trabalho fora de casa — basicamente da mulher —, por comodismo em relação ao trabalho de educar, por culpa de estarem muito tempo fora de casa, etc.). Nessas novas relações domésticas, vemos crianças sem limites; sem regras básicas do viver em grupo, do respeito ao próximo — seja ele da mesma idade ou um adulto, em diferentes situações. Muitas vezes, a falta de cumprimento de regras e normas é justificada, pelos pais, por meio de questionáveis problemas médicos: medica-se uma criança ou um jovem, fazendo-os “sossegar” através de remédios.

Há famílias que exigem da Escola a educação dos próprios filhos, enquanto eles, os verdadeiros responsáveis sociais, se omitem. Não realizam as funções paternas e maternas que são de sua responsabilidade e, paralelamente a isso, fazem a desqualificação da Escola e do professor perante seus filhos. Como um aluno respeitará um professor desqualificado pelo pai? Como aprenderá de quem não valoriza? Como obter um equilíbrio emocional na vida como um todo e na Escola, em particular? Que quantidade e diversidade de expectativas de produção escolar pesam sobre essas crianças? A que comparações estará submetida no seio das diferentes famílias nucleares em que vive? Como reage a tudo isso? Ficando mais tímida; introvertendo-se ou ficando mais agitada ou mais agressiva por não se sentir apoiada emocionalmente em seus diferentes lares; buscando sempre alguma coisa que lhe falta: mais atenção, mais carinho, mais um pouco de olhar para ela, etc. Tudo isso se reflete na aprendizagem e/ou na disciplina escolar.

Considerando que os membros da família funcionam como os primeiros mediadores entre a criança — enquanto aprendiz, com todo o seu potencial (corporal, cognitivo, afetivo-social) — e o mundo externo — físico e social —, fica transparente que esses pontos estão intrincados nas questões de indisciplina e possível não-aprendizagem escolar.

Para analisarmos essas relações, precisaremos retornar aos paradigmas explicativos da aprendizagem escolar — vista como um processo integrado em que se articulam o organismo e o psiquismo, que permite que o corpo, as dimensões cognitiva e afetivo-social sejam mobilizadas através das situações pedagógicas que acontecem na instituição social Escola, existentes em determinado contexto social e em determinado momento histórico. Sem termos essa perspectiva mais ampla, torna-se impossível a abordagem de relações entre aprendizagem e disciplina escolar.

O contexto histórico-social sempre define as relações, os valores, a ética que influenciarão cada sujeito em particular, em cada momento histórico, em cada lugar deste país.

Como bem esquematizou Sara Pain, toda a aprendizagem se processa numa interação entre as condições internas do aluno enquanto um aprendiz, as condições externas do meio físico e social em que está esse aprendiz e os objetos do conhecimento, representados, na Escola, por: leitura; escrita; Matemática; Educação Física; informações da Biologia, História, Geografia e de todas as disciplinas; e por conteúdos, valores e atitudes presentes na Escola. O meio social externo, no caso da Escola, envolverá tudo o que diz respeito ao ensino formalizado, através das condições escolares de: metodologia de ensino; livros; material didático; laboratórios; colegas; professores; administração; formas de avaliação; normas da Escola; relações do professor com o aluno, enquanto aprendiz; regimento escolar; e valores e ética de cada Escola. Sintetizando, aprendizagem no ambiente escolar.

Logo, o processo de aprendizagem é integrado. Algo externo (objeto) se torna interno (subjetivo) e volta para o externo no mecanismo de assimilação e acomodação piagetiano, envolvendo sempre o organismo (o corpo) e as estruturas intelectual (cognitiva) e afetivo-social. No processo de subjetivação e objetivação, estão presentes relações, imagens, conceitos, afetos, valores e tudo o que envolve o objeto do conhecimento, qualquer que seja a sua natureza, seja ele escolar ou do mundo físico e social à volta do aprendiz.

Numa visão construtivista e interacionista, o aluno, o aprendiz ou o sujeito da aprendizagem tem a sua relação com o objeto do conhecimento escolar mediada pelo professor. Nesse conjunto de relações: professor–objeto do conhecimento, professor–aluno, aluno–objeto do conhecimento, aluno–professor, constroem-se vínculos positivos, que impulsionam a aprendizagem; ou negativos, que proporcionam um afastamento da situação de aprendizagem.

Se, para o aluno-aprendiz, o professor é o mediador na busca do conhecimento escolar, no auxílio na construção de uma boa aprendizagem, como ficará o seu papel e a sua função quando ele é desqualificado e desvalorizado socialmente e, mais ainda, pela família de seu aluno?

Pela amplitude da questão, torna-se claro que não existe uma equação absoluta: tudo será relativo e dependerá das circunstâncias em que começarão a surgir as dificuldades disciplinares e de aprendizagem. É possível uma análise da questão abrangendo várias perspectivas. Dentre elas, destacamos:

A primeira perspectiva envolveria indisciplina gerando dificuldades na aprendizagem escolar:

* Aumento do individualismo, do egocentrismo, impedindo o aluno de ver o outro como um mediador na busca do conhecimento escolar, seja o outro o professor ou o colega, nas trocas indispensáveis nos trabalhos em grupo. Tentativas constantes de fazer a aula girar em torno de seus interesses e de suas idéias.

* Ausência de limites sociais, gerando interrupções inoportunas, confusões, conflitos em sala de aula que perturbam o ambiente externo adequado a uma boa aprendizagem.

* Desvalorização, desqualificação do professor, da situação escolar, dos conhecimentos escolares.

* Tensões, grande ansiedade aliada à conduta indisciplinada, causando alterações no foco de atenção, atrapalhando a memória imediata e de médio prazo em testes e provas, perturbando as construções de relações lógicas apoiadas nas informações do momento e nas anteriores.

* Atenção dispersa, dividida, voltada para brigas, trapaças, roubos, etc., em que esteja envolvido, direta ou indiretamente, ou seja simples “torcedor”, na sala de aula ou fora dela.

* Perda de aula por atraso, retirada de sala por indisciplina ou, ainda, suspensões disciplinares, gerando descontinuidade na construção de determinados conhecimentos.

* Não-cumprimento de tarefas escolares fora do horário regulamentar, que auxiliariam na desejada fixação e ampliação de conteúdos programáticos, servindo como suportes para novos conhecimentos posteriores.

A segunda perspectiva envolveria dificuldades internas do aluno, de caráter orgânico, corporal, cognitivo, afetivo ou social, gerando, de algum modo, dificuldades iniciais na aprendizagem, que levariam, posteriormente, o aluno a condutas de indisciplina escolar. Se o aluno, nesse momento de aprendizagem formal, não tiver uma boa acolhida, um olhar e uma escuta especial do professor ou dos vários professores envolvidos, poderá ter suas pequenas dificuldades iniciais ampliadas. As pequenas dificuldades citadas, se não forem percebidas em tempo hábil pelo professor, poderão se consolidar numa dificuldade maior.

A questão que se impõe é: como poderemos interromper esse processo negativo? Independentemente de punições e limites impostos pela Escola, nas situações que o exigirem, é fundamental dar uma acolhida aos alunos, aumentar a observação de suas condutas e estudar cada caso em particular com os professores e a equipe técnica existente na Escola. É fundamental considerar a singularidade do sujeito e não precipitar interpretações generalizadoras, para não abandonar possíveis questões básicas de aprendizagem. É necessário ver a possibilidade de atuação dentro dos limites da Escola junto aos professores e pais. Esgotadas as possibilidades da Escola, em diferentes níveis, alguns casos exigem a atuação de profissionais especializados, como psicopedagogos e psicólogos do ambiente escolar.

Gostaríamos de deixar algumas sugestões aos educadores:

1. Procurem atuar nos primeiros momentos de dificuldade do aluno, seja ela de aprendizagem ou de conduta indisciplinada dentro do ambiente escolar, através de um olhar, uma escuta ou uma pergunta.

2. Procurem localizar e, se possível, separar o que revela algo ligado com a aprendizagem escolar de atos simples, reveladores de vandalismo e de outras formas de agressão aos colegas e professores no ambiente escolar (autocrítica).

3. Sejam carinhosamente firmes (ser autoridade sem ser autoritário). É possível exercermos a autoridade necessária em cada situação sem agredirmos, sem humilharmos nossos alunos. Dar punições regimentais não exclui olharmos com carinho e atenção o aluno e sua produção acadêmica (alunos indisciplinados geralmente apresentam carência afetiva).

4. Não misturem o ato negativo praticado indisciplinarmente com a relação pessoal, com esse aluno que está na Escola como um aprendiz. (O sujeito não é. Ele está.)

5. Não misturem as punições disciplinares com a produção acadêmico-escolar demonstrada pelo aluno.

6. Incentivem sempre, para o estudo, os alunos com problemas disciplinares.

7. Procurem ouvir mais, olhar mais, dar um acolhimento maior ao aluno que começa a apresentar os problemas em questão.

8. Desenvolvam situações que permitam a aprendizagem coletiva, cooperativa, de pequenos grupos de estudo e trabalho. Os membros do grupo terão trocas afetivas, sociais e de informações que possibilitarão a construção do conhecimento escolar.

9. Aumentem as situações que possibilitam a construção da consciência crítica não só de informações, mas também de afetos e ações sociais.

10. Proporcionem espaços, nas aulas e atividades da Escola, para reflexão ética sobre afetos, ações e informações.

11. Sejam modelos de ética profissional e social para os alunos, que aprendem por identificação com a pessoa-modelo.

Finalmente, é importante avaliarmos sempre as múltiplas variáveis envolvidas nas questões escolares nas diferentes perspectivas: do aluno, da família, de todos os professores diretamente ligados, da Escola como instituição e da sociedade, para podermos, assim, ter uma atuação mais correta e ajustada a cada caso em particular.

Maria Lúcia Weiss – Professora em diferentes níveis de ensino de escolas da rede pública do Rio de Janeiro; pedagoga; psicóloga com especialização em Psicopedagogia; professora-adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; professora de cursos de pós-graduação em Psicopedagogia em universidades de diferentes estados do Brasil; conferencista na área da Psicopedagogia em diferentes congressos nacionais e internacionais; autora de inúmeros artigos na área da Psicopedagogia Clínica.

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