Edição 20

A fala do mestre

Josué de Castro – Cidadão do Mundo

Josué Apolônio de Castro nasceu no Recife, em 5 de setembro de 1908; nunca usou o “Apolônio”, por não gostar. Era filho único de Manoel Apolônio de Castro e de Josepha Carneiro de Castro. O pai de Josué veio, com a família, de Cabaceiras, no alto Sertão paraibano, durante a grande seca de 1877. Era proprietário de terras e mercador de gado e leite. Josepha Carneiro, também conhecida como “Dona Moça”, era filha de senhor de engenho da Zona da Mata pernambucana e tornou-se professora no Recife. Josué fez seus estudos secundários no Instituto Carneiro Leão e no Ginásio Pernambucano, ambos em sua cidade natal. Passou a interessar-se pelos estudos graças à influência do educador Pedro Augusto Carneiro Leão, o qual, segundo Josué, foi a figura humana que mais influência teve em sua vida.

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“A fome é um fenômeno geograficamente universal, a cuja ação nefasta nenhum continente escapa. Toda a terra dos homens foi, até hoje, a terra da fome. As investigações científicas, realizadas em todas as partes do mundo, constataram o fato inconcebível de que dois terços da humanidade sofre, de maneira epidêmica ou endêmica, os efeitos destruidores da fome.”
Josué de Castro

Uma influência discreta, dissimulada, mas no fundo decisiva: a do educador Pedro Augusto Carneiro Leão, mestre insuperável de inúmeras gerações de pernambucanos, possuidor de uma penetração psicológica que lhe dava um domínio tranqüilo sobre a inquieta população de seus jovens alunos. Esse grande pedagogo, profundo conhecedor da alma infantil, não pretendeu dominar a fera pela força, quebrando-lhe o ímpeto selvagem com castigos, mas captar o seu interesse e desviar sua inquietação para objetivos mais nobres.

Com sacrifício, os pais de Josué queriam que seu filho estudasse medicina na Bahia. Lá, ele permaneceu por três anos, mas concluiu a faculdade no Rio de Janeiro, em 1929, com 21 anos de idade, onde diplomou-se pela Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Em 1930, abre no Recife o primeiro consultório especializado em doenças da nutrição. Logo seria o preferido da elite local e, em 1935, volta a morar no Rio de Janeiro, onde manteve consultório até 1955. Ganha fama como excelente profissional e torna-se médico particular do presidente Getúlio Vargas e de sua família.

Durante o período em que estudou na faculdade da Bahia, dois colegas que moravam na mesma pensão exerceram grande influência sobre Josué: Arthur Ramos e Theotonio Brandão. Ao ver um estudo de Arthur Ramos publicado nas páginas de O Jornal, o jovem Josué se sentiu motivado a escrever seu primeiro ensaio, A Literatura Moderna e a Doutrina de Freud, publicado na Revista de Pernambuco.

O jovem pernambucano Josué de Castro, estudante de Medicina, era extremamente vaidoso e, para demonstrar erudição, saía à rua com o mais grosso de seus livros de estudo, conforme relata em seu diário. Não via fronteiras sociais nem culturais que não pudessem ser ultrapassadas e acreditava em sua inteligência e competência para conquistar o reconhecimento de seu trabalho.

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“Ó, Josué, nunca vi tamanha desgraça. Quanto mais miséria tem, mais o urubu ameaça…”
“(….) tem que saber pra onde corre o rio, tem que saber seguir o leito, tem que estar informado, tem que saber quem é Josué de Castro, …rapaz!”CHICO SCIENCE

Os seus vários artigos e crônicas publicados na época de estudante já revelavam a multiplicidade de interesses; ciência, literatura, pintura e cinema foram alguns dos temas abordados naquele período.

Em 1929, viaja para o México chefiando uma delegação de estudantes, por ocasião da posse do presidente Pascual Ortiz Rubio, ex-embaixador no Brasil. Por esse motivo, deixa de comparecer à sua própria colação de grau, pedindo para alguém responder por ele durante a cerimônia.

Do México, Josué segue para os Estados Unidos, onde faz estágio por quatro meses na Universidade de Columbia e no Medical Center de Nova Iorque.

De volta ao Recife, em 1934, o jovem médico e professor casa-se com a miss Pernambuco de 1930, Glauce Rego Pinto — que fora sua aluna na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais —, com quem teve três filhos: Josué Fernando, Anna Maria e Sônia.

Em 1932, por intermédio do Departamento de Saúde Pública do Estado de Pernambuco, orientou a realização da primeira pesquisa científica sobre as condições de vida do brasileiro no Recife, intitulada As condições de vida das classes operárias no Nordeste, que constou de entrevistas com 850 famílias de três comunidades de grande concentração de trabalhadores: Torre, Encruzilhada e Santo Amaro. Com uma abordagem inédita, o estudo virou pelo avesso a discussão da questão alimentar no Brasil, repercutindo em todo o País e provocando a realização de pesquisas semelhantes em outros Estados. Esse estudo teve papel de destaque no processo que culminaria na criação do salário mínimo, em 1940. Foi inicialmente publicado pela Diretoria de Estatística e Publicidade do Ministério do Trabalho, sob o título As Condições de Vida das Classes Operárias, voltando a aparecer em 1936 como capítulo do livro Alimentação e Raça, que trataria o problema da subsistência alimentar em seus aspectos econômicos e sociais.

Com esse inquérito, Josué de Castro procurou demonstrar, através de dados estatísticos, que “o fator primário da alta mortalidade da população brasileira é o estado de pobreza que condiciona a fome coletiva”, documentando assim, segundo ele, “uma fase da evolução econômica e social do Nordeste”. Abrindo caminho para esse gênero de pesquisa (inclusive concentrando-se na Geografia e na Antropologia), o estudo influiu no surgimento de investigações semelhantes em outras áreas do País.

No Brasil colonial, o homem do Nordeste, na condição de escravo, proporcionava à metrópole portuguesa o monopólio do açúcar nos mercados europeus, sedimentando, assim, sobre sua miséria e à causa dela, o fausto lusitano. No século XXI, o camponês nordestino é um ser resignado à penúria e à fome e de tal forma descrente da possibilidade de uma mudança que se preocupa mais com a morte que com a vida. Portanto, o nordestino apenas deixou de ser escravo de um dono para sê-lo de um sistema. Mas Josué de Castro destrói os dogmas dessa predestinação, como, por exemplo, de que o Nordeste está determinado antecipadamente a servir e enriquecer os outros com o tributo do seu sofrimento.

Josué de Castro é autor de uma obra profundamente humana, elaborada acima das posições partidárias e das intolerâncias políticas.

Precursor, no Brasil, dos estudos sobre alimentação e nutrição, o sociólogo Josué de Castro tornou-se acatado em todo o mundo como especialista nos problemas da fome e do subdesenvolvimento em geral. A fome passou a ser o objetivo de seus estudos. Passou a estudá-la cientificamente, tal como ela se manifesta em nosso país, publicando sua conhecida obra Geografia da Fome, na qual apresentava o problema da subnutrição e da carência alimentar em toda a sua realidade, permitindo ao leitor compreender-lhe os diversos aspectos e a importância primordial. O livro, lançado em 1946, foi traduzido em 25 idiomas e tornou Josué de Castro conhecido no mundo. Pôs em alvoroço o ambiente intelectual e político brasileiro a tal ponto que, na opinião de Barbosa Lima Sobrinho (1897–2000), poderia ser comparado à carta de Pero Vaz de Caminha. Nos dois casos, uma descoberta: na carta, o Brasil; no livro, algo que todos tentavam ocultar: a fome. Na época, o ufanismo permeava o sentimento nacional. Porta-voz desse sentimento, o livro Por que me Ufano do Meu País, do conde Affonso Celso, entrava na 13ª edição. O livro de Josué ia na contramão dessa tendência. Por isso foi acusado de estar passando para o mundo a imagem de um Brasil “país de famintos”.

Do ponto de vista da abordagem, Geografia da Fome também trazia novidades. Até então a fome era tratada apenas em sua variante biológica, como a necessidade de comer. Josué trouxe para a análise do tema aspectos econômicos, políticos, sociais e geográficos. O livro fez o primeiro mapa da fome do Brasil; dividiu o País em cinco regiões, sendo que duas eram de fome (Norte e Nordeste) e as demais de subnutrição.

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“Josué é uma das pessoas que eu mais admirei. Eu digo mesmo que Josué é o homem mais inteligente e mais brilhante que eu conheci. (….) o diabo é que me dava uma inveja enorme — Josué era brilhante em todas as línguas… Incrível! (….) mas isso do intelectual mais eminente do País, a figura mais importante do território brasileiro, a mais visível… esse, ser levado à morte em tristeza.”
DARCY RIBEIRO

Cinco anos depois, aplicando o seu novo método de trabalho sociológico em escala universal, lança o livro Geopolítica da Fome, apresentando uma análise da aplicação prática dos conhecimentos gerados pela geografia política, isto é, a temática da relação entre o espaço e o poder e entre o Estado e o território.

Os dois livros tornaram-se referências clássicas da produção intelectual brasileira. Celebrizaram a frase que ainda hoje é repetida em quase todo estudo sobre o tema: “Metade da população não dorme porque não tem o que comer, a outra metade não dorme com medo dessa que não tem o que comer.”

Foi detentor de inúmeros prêmios no Brasil e no exterior, destacando-se o Prêmio Internacional da Paz (1954), do Conselho Internacional da Paz; o Pandiá Calógeras, da Associação Brasileira de Escritores; e o Prêmio José Veríssimo, da Academia Brasileira de Letras, pelo livro Geografia da Fome. Recebeu, também, o prêmio Franklin D. Roosevelt (1952), da Academia Americana de Ciências Políticas.

Josué de Castro exerceu numerosos cargos de projeção: eleito, em 1952, para o cargo de presidente do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para Alimentos e Agriculturas (FAO) e reeleito em 1953; para a campanha da luta contra a fome (1960), da ONU; para o Comitê Intergovernamental de Migrações Européias (Cime), em 1963; e para o Comitê Mundial por uma Constituição dos Povos, em Denver, nos EUA. Em Paris, presidiu ainda o Centro Internacional para o Desenvolvimento; em Londres, foi vice-presidente da Associação Parlamentar Mundial.

Sob os auspícios dessas e de outras organizações, viajou por todo o mundo, fazendo conferências. Professor honorário de numerosas universidades estrangeiras e membro honorário de associações científicas em vários países.

Com uma lista de trabalhos que vem chamando a atenção de nosso povo sobre um grave problema do País, Josué de Castro dedicou toda a sua vida ao estudo do flagelo, que parece não estar recebendo a merecida atenção dos governantes: o da situação de miséria e atraso em que vivem milhões de brasileiros, principalmente no Nordeste.

Os seres humanos são muito propensos a querer ignorar ou considerar do domínio da utopia os problemas que não podem resolver ou que lhes parecem de difícil solução. Afora o seu valor científico e literário, aí reside o sentido prático da obra de Josué de Castro: o de chamar a atenção de nosso povo para um problema cuja solução não comporta mais delongas.

Professor de Geografia Humana na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro desde 1939, deputado federal de 1955 a 1962, depois do golpe militar teve seus direitos políticos cassados. Mesmo não sendo um político de grande projeção nos governos presidenciais ou que neles tivesse exercido uma influência muito marcada, a sua cassação pareceu a muitos incompreensível. Na realidade, era a sua obra que atraía para si a ira das forças que subiram ao poder com o movimento de abril de 1964. Essa mesma obra — traduzida em mais de vinte idiomas e divulgada no mundo inteiro numa tiragem que hoje alcança mais de um milhão de exemplares — fez de Josué de Castro um vulto de imensa projeção internacional.

Os seus trabalhos foram considerados, no campo da alimentação, tão revolucionários quanto os de Copérnico no domínio da Astronomia. Ele denunciou a fome universal como uma praga fabricada pelo homem, e não como um fenômeno natural, mostrando a inconstância e o falso das teorias neomaltusianas, que visam apenas a defesa das minorias privilegiadas contra os interesses autênticos das maiorias espoliadas, as grandes massas deserdadas do mundo subdesenvolvido.

Em 1964, aos 56 anos, o então embaixador do Brasil junto aos Órgãos das Nações Unidas, em Genebra, Josué de Castro, teve seus direitos políticos cassados.

lnterrompia-se, pelo arbítrio, a profícua atividade intelectual do humilde médico brasileiro que, aos 21 anos, iniciara sua atividade clinicando na cidade do Recife e chegara a representante do Governo de seu país.

Longa foi a caminhada desse inconformado nordestino que se tornou mundialmente conhecido por seus livros, os cargos que ocupou, as funções que desempenhou, os organismos que criou e as aulas que ministrou, no Brasil e no exterior.

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A vida de Josué de Castro foi uma grande lição de engajamento em sua própria realidade, sua própria cultura. Procurou desenvolver toda uma ciência, a partir de um fenômeno que é a manifestação do subdesenvolvimento em sua mais dura expressão: a fome. Tentou criar uma teoria explicativa para a triste realidade do subdesenvolvimento, da pobreza, da miséria. Tentou modificar a história de seu país. É esse homem que o Brasil de hoje precisa deixar de ignorar.
Anna Maria de Castro (filha de Josué de Castro). Professora titular da UFRJ – Doutora em Sociologia Aplicada.

Entretanto, o que mais o notabilizou foi, sem dúvida — quer no exercício da cátedra, na Presidência da FAO, no Parlamento Brasileiro (como deputado pelo antigo PTB), nas salas de aula ou nos momentos solitários do escritor consagrado — a eleição de um tema até por ele mesmo considerado bastante delicado e perigoso: a fome. E foi contra ela, em todas as suas extensões e manifestações, que travou o bom combate de sua vida.

No exílio, a despeito dos muitos convites que recebeu de diferentes países, escolheu, para morar, a França, onde criou e dirigiu o Centro Internacional para o Desenvolvimento — que assessora países subdesenvolvidos — e foi professor da Universidade de Paris e do Centro Universitário de Vincennes.

Josué de Castro morreu no exílio. De infarte, conforme o boletim médico; tristeza, segundo amigos e familiares. Cassado, impedido de retornar à Pátria, com a obra banida das livrarias e universidades, ele entrou em depressão profunda logo após o golpe de 64. Nessa época, a pelo menos um amigo — o poeta pernambucano Francisco Bandeira de Mello — chegou a externar o desejo de suicidar-se. Passava horas trancado no quarto, impaciente diante do menor barulho, repetindo a quem o encontrava que não fizera nada de importante na vida.

Pouco antes de morrer, estava mais uma vez abatido. Já não tinha o fulgor que fora uma de suas marcas principais. “Em julho e agosto de 1972, um ano antes de sua morte, estive com ele em Paris. Pouco sorria, e seu olhar havia mudado bastante. Declarou então que sua vida não tinha valido a pena. Se despediu como se não fôssemos nos encontrar mais”, conta sua filha Anna Maria de Castro. Morreu aos 65 anos, em 24 de setembro de 1973, em Paris, às 4h da manhã (horário da França). Só assim, morto, a ditadura permitiu que ele voltasse ao Brasil.

A morte de Josué de Castro foi notícia em publicações estrangeiras, como o The New York Times, dos EUA, e o Le Figaro, jornal conservador da França. No Brasil, a notícia foi tratada sob censura. Nenhuma homenagem pôde ser feita. Nenhuma manifestação pôde ser organizada. Josué de Castro foi enterrado no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Chovia muito, e seu enterro foi presenciado apenas por cerca de trinta pessoas, incluindo policiais civis.

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“Ele era apenas um brasileiro — um grande brasileiro. Um cientista, um escritor, um homem público devotado à sua pátria, ao seu povo… (….) Sabia da injustiça, das nossas mazelas, sabia da fome… e como sabia da fome!”
Jorge Amado

Fontes: Revista Nordeste Magazine, ano II, nº 7; e Diario de Pernambuco, de 14/09/2004.
Agradecimentos especiais ao jornalista Vandeck Santiago.

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