Edição 15

Lendo e aprendendo

Jurupari, o filho do Sol

Houve um tempo muito antigo em que somente as mulheres governavam os povos. Mandavam sem leis severas e sem costumes cruéis.

Em meio à boa paz, eram senhoras de todos, enquanto os homens, nas matas, colhiam os alimentos e caçavam para as tribos.

Eis que, por esse tempo em que não havia guerras nem maus desentendimentos, a bela jovem Ceuci, num dia de muito sol, estando às margens do rio que hoje se chama Negro, após banhar-se nas águas, pôs-se, feliz, a comer uma cucura-do-mato, fruta doce e suculenta que, conforme se dizia na aldeia em que morava, tinha gosto semelhante ao bom sabor da paixão nos lábios de alguém que ama.

Distraída com a fruta, em plena praia das águas, a jovem não percebeu que o caldo da cucura, tendo pingado em seus seios, logo alcançou o ventre, cobrindo assim o seu corpo.

O Sol, que tudo assistia, lá, no alto do céu, em um céu todo lavado, completamente sem nuvens, azul feito araraúna, encantou-se com a moça.

Sendo senhor do dia, banhou Ceuci com seus raios, sorvendo toda a doçura da cucura-do-mato sobre o corpo da donzela.

E a moça, em meio à dança daquela magia plena, sentiu-se mãe da criança que, assim, herdou do Sol.

Não custou muito a nascer o menino de Ceuci.

Nasceu, também, em um dia de sol alegre no céu.

Um garoto diferente, pois, ao bater as mãozinhas, catando os seios da mãe, querendo se alimentar, fez ouvir sonora música com seus gestos de criança.

Logo, porém, o menino bem mais espantou sua gente, quando desapareceu dos braços de sua mãe, após ser amamentado.

Ninguém soube do garoto, nem explicou seu sumiço, muito menos seu destino. O que trouxe desacerto nas mentes e nos corações do pessoal da aldeia, que via, no acontecido, um sinal de sortilégio, de feitiço ou bruxaria.

Anúncio de que a paz em que viviam os povos se encontrava ameaçada.
Ceuci, muito preocupada, procurou deter o medo que atormentava a tribo.
Garantia para todos que bem sentia a presença de seu filho na aldeia.

— Feito sombra disfarçada, na escuridão da noite, ele sobe em minha rede para mamar e brincar. Mesmo sendo invisível, é uma criança alegre, um menino carinhoso, incapaz de fazer mal a mim e a qualquer um — adiantava Ceuci, mostrando os seios vazios, provando, assim, que o filho havia mamado nela.

Por fim, o tempo passou, e tudo tornou à calma da mesma vida de sempre.

Muitos até se esqueceram do menino de Ceuci, que, por dura maldição, praga ou encantamento, logo desaparecera, bem no dia em que nasceu.

Já os que se lembravam dele lembravam porque a mãe insistia em contar, a uns e outros da tribo, que por vezes percebia, mas não via, só sentia, por aqui ou acolá, a presença da criança, seja no meio da aldeia ou no centro da maloca, seja até mesmo na mata.

— Hoje, na praia do rio, senti meu filho nas águas, nadando, todo feliz! É um curumim esperto! Alegre feito ele só! — assegurava, teimosa, a jovem mãe do garoto.

Coisa que quem ouvia nem sempre acreditava.

Só treze anos depois é que, de fato, o menino, já com corpo de rapaz, apareceu para a tribo, em manhã de sol bem quente, sendo reconhecido por Ceuci, por outras mães e, enfim, por todo o povo.

Era um moço muito lindo.

Alto, bastante forte, tinha os olhos bem brilhantes, os ombros grandes e largos, braços e mãos poderosos, mais postura de guerreiro, traço incomum entre os homens das gentes de sua aldeia.
Trajava roupas de plumas de arara, araraúna, tucano e pavão grená.

E trazia na cabeça, como belo ornamento, as amplas asas abertas de um gavião gigante.
Tinha, nas mãos, suas armas. Lança, tacape, arco e flechas. Todas da cor do sol, plenas de plumas douradas.

E, sem deixar se tocar, manteve a tribo a distância, pois nem sequer se aproximou da mãe, que, emocionada, tinha os braços estendidos para receber o filho.

— Meu nome é Jurupari, o que é filho do Sol com a virgem Ceuci!, anunciou-se à tribo. — Sob as ordens de meu pai, venho mudar os costumes dos que vivem nas florestas desse mundão de terras e rios de águas grandes! Quero o mando para os homens, que, assim, governarão as crianças, os mais velhos e, sobretudo, as mulheres! Exijo, também, respeito a meus mistérios sagrados, segredos que vou passar para os jovens da aldeia!

Dito isso, convocou todos os moços da tribo, reunindo-se com eles junto à praia do rio que hoje se chama Negro.

Já aos demais proibiu que aparecessem por lá, às margens daquelas águas.
Aos moços de sua gente, por rituais vigorosos, ensinou formas de luta e bem os submeteu às mais duras provações.

Fez com que aprendessem o que era ser valente e o que é a coragem. Assim como fez saber o que era o poder e de que forma um homem se torna um conquistador justo e vitorioso.

Também fez com que soubessem canções de briga e de paz.

Ensinou a fazerem armas e instrumentos de som.

E bem ensinou as festas, que, certamente, merecem os que cumprem seus deveres, quando plantam, quando colhem, quando caçam e nas lutas pelos direitos das tribos.

Depois sagrou seus guerreiros e, com eles, retornou à aldeia de sua gente, onde, com severidade, impôs costumes e leis.

Pediu respeito à memória dos bravos antepassados. Determinou os cuidados de que precisam as crianças. E a devida atenção e toda a generosidade que merecem os mais velhos.

Ordenou aos valentes que usassem de tolerância com as nações conquistadas.

Cuidou, também, de ensinar como é que se devia aproveitar a madeira das árvores da floresta. Qual era a melhor palmeira no uso de suas fibras. E como bem escolher e, também, limpar a terra própria para plantação, cuidando de instruir que se devia evitar todo e qualquer desperdício no uso da natureza.

Assim, bem determinou as ocasiões mais certas para caçar e pescar. Mais, exigiu que o plantio fosse feito para todos, sem abusos ou ganâncias.

E instruiu as aldeias nas artes de algumas trocas, permitindo que trocassem mulheres para casar e objetos de adorno, tais como plumas de aves e peles de animais ou pedrinhas coloridas. Que trocassem até armas ou instrumentos de som. Tudo com moderação!

Das mulheres, exigiu fidelidade aos maridos. E, logo, estabeleceu os seus ofícios na aldeia. Proibiu suas presenças nos rituais dos guerreiros. E quis que tivessem filhos, muitos filhos, para a tribo.

Além dos ritos sagrados, dos mais duros desafios dispostos secretamente para os curumins mais fortes, quando se tornavam homens, Jurupari, sem sigilo, ensinou a todo o povo como sepultar seus mortos e como devia agir nas cerimônias festivas, tanto para consagrar as crianças que nasciam como para festejar as meninas que alcançavam a idade de ser mãe.

Compôs mais de mil mandamentos, leis e ordenações para justa obediência. E, também, mil punições para aqueles que ousassem descumprir suas ordens.

Claro está que não foi fácil consolidar os costumes de tamanhas novidades, pois, se a muitos alegraram, a outros descontentaram.

Daí surgiram rumores, muita coisa diferente, que jamais acontecera, quando o poder e o mando pertenciam às mulheres.

Houve até mesmo guerras!

O filho do Sol, porém, em meio a tais contratempos, não se deixou abater.

Com firmeza e mais rigor, fez com que sua aldeia e os demais povos das terras da vastidão da floresta e dos rios de águas grandes adotassem suas ordens e seu modo de viver, seguissem seus rituais, cumprissem suas cerimônias e se entregassem às festas, mais as comemorações prescritas por seu poder.

E, assim, bem garantiu aos homens, seus seguidores, todo o governo das tribos.
Houve, porém, certa vez, um feito que entristeceu o bravo Jurupari. Foi quando Ceuci, sua mãe, ousou desobedecer a sua lei mais severa.

Quando, em plena noite escura, tentada por seus desejos de se aproximar do filho, ela se meteu nas matas, indo até a beira-rio, onde os guerreiros da aldeia realizavam seus ritos, suas cerimônias secretas, proibidas para os olhos das mulheres e das crianças.

Escondida em meio às árvores que circundavam a praia junto das águas do Negro, cometendo transgressão claramente inaceitável, pôs-se Ceuci a olhar o que lá acontecia.

Eis que ela foi descoberta, sendo logo aprisionada e levada até a tribo. Ainda de madrugada, submeteram Ceuci à justiça do filho.

E o próprio Jurupari sentenciou sua mãe, que foi transformada em pedra, como exemplo para todos.

Quando chegou a manhã, o implacável juiz sentiu no corpo a dor daquele dever cumprido, com um grito sem limites, tomou a pedra nas mãos, lançou a pedra no ar, bem na direção do Sol, ficando a pedra no céu, numa distância medonha, no alto do firmamento.

E, à noite, todos viram que Ceuci virara estrela.

Mais, viram Jurupari mirando o céu da floresta, sozinho, junto das águas, infeliz em seu silêncio, na praia do vasto rio que hoje se chama Negro.

Vinte anos se passaram, até que o filho do Sol deixou os povos da mata, indo para algum lugar que ninguém sabe onde é.

Partiu bastante seguro de suas ordenações, como tradição dos povos.

Às vezes, aparecia nos sonhos de uma criança, de uma jovem ou de um moço, das mulheres e dos homens, ou mesmo nos poucos sonhos dos mais velhos das aldeias, lembrando suas lições, caso alguém corresse o risco de esquecer os costumes e abandonar suas leis.

Depois, quando apareceu, nas terras da região, o mando do homem branco, este, astuto e de má-fé, espalhou pelas aldeias a mais perversa calúnia.

Disse que Jurupari era um demônio, um trem ruim, um espírito malvado, verdadeiro pesadelo que apertava as gargantas das crianças e dos jovens, das mulheres e dos homens, enquanto todos dormiam. Também, cuidou de mudar as leis do filho do Sol, seus ritos e suas cerimônias, sobretudo suas festas. Desse modo, pretendia confundir e enfraquecer a confiança dos povos a quem chamava de índios.

Inclusive, esse homem branco, com suas invencionices, metendo temor nos povos, assegurou para todos que o grande senhor dos céus não era o dourado Sol, pai de Jurupari. Era o trovão, mais o raio, o ronco que vem das nuvens prometendo tempestades e que, na língua das tribos, tem o nome de Tupã.

Se muitos acreditaram e ainda acreditam nessa intriga do homem branco, abandonando os costumes, os muitos ensinamentos do bravo Jurupari, passando a viver com medo, perdendo o brio de antes, com isso se dispersando e, assim, se destruindo, sempre houve e há de existir, entre os povos da floresta, quem se lembra e não se esquece das vigorosas lições, das cerimônias e festas desse valente guerreiro que é o filho do Sol com a bela e jovem Ceuci.

 

ARRABAL, José. Lendas Brasileiras: Norte, Nordeste e Sudeste. São Paulo: Paulinas, 2001.Ilustrações: Sérgio Palmiro

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