Edição 63

A fala do mestre

MORTE…

Nildo Lage

morte

Uma visitante indesejável que chega para ceifar. De tão auspiciosa, não emite ruídos, um sinal sequer para avisar a hora, nem pede licença para se apossar do que temos de mais precioso: a vida. E, mesmo sendo uma velha conhecida de todos, é o  maior enigma da humanidade… Um mistério que a ciência não consegue revelar. Nem as religiões, com as suas múltiplas interpretações, obtêm entendimento que a traduza, pois ela extrai e guarda a sete chaves a essência humana — a alma —, num local onde somente as mãos do Pai tocam e onde apenas o Seu olhar é capaz de vislumbrar, transformando o caminho num paradigma peculiar do Criador.

O que se tem conhecimento é que essa passagem é a consumação de um curso que o humano — único mortal com autonomia para construir a felicidade, edificar sonhos e liberdade para escolher o caminho e reconstruir projetos para transformar o percurso do “viver” numa doce trajetória — não compreende.

Muitos tentaram desvendá-la, mas, século após século, milênio após milênio, é tida como um dos maiores segredos do universo, e, em meio a investigações, estudos, interpretações, ninguém consegue impedir que ela transite ameaçando a todos, que se  protegem como podem para não embarcarem nessa nave.

Ante tantas dúvidas, perguntas ecoam e respostas não satisfazem curiosidades nem dissipam medos: por que morremos? Para onde vamos?

Esse questionamento ecoa, provoca tremores e silencia… Pois da morte sabemos apenas… NADA. As suas roupagens enganam, sua silhueta confunde os que surfam nesse mar de “inelutabilidade”, que jogam com a própria vida para dissimular a tensão provocada pela expectativa de um encontro com essa mensageira, que, sem o mínimo de misericórdia, decreta o momento do fim. É nesse instante que ela — a morte — nos encurrala e dá duas opções: morrer ou morrer.

Nesse cruzamento, a vida vislumbra o fim e não há nada mais a fazer a não ser olhar para trás, arrepender- se de erros, desvios, pedir perdão e se entregar, pois nenhum super-herói jamais criou dispositivos nem contraiu poderes e habilidades para se defender ou escapar das suas investidas. E, mesmo sendo ela ambiciosa, é insaciável por vidas, e todo ouro do planeta não é suficiente para negociar, pois sua visita é a sentença, a primeira porta para a eternidade.

A morte é uma realidade tão cruel que aterroriza pela perspicácia em espargir seus agentes em todas as direções, posicionar-se estrategicamente em todos os lugares: em casa — por meio da violência doméstica —; na escola — onde lápis e cadernos estão sendo substituídos por revólveres e pistolas. A eficiência dos seus radares, graças ao ultramoderno sistema de rastreamento, permite esquadrinhar uma vida nos pontos mais longínquos da Terra, pode transitar em vias fundamentais para tropeçarmos com ela ao sairmos de casa — seja como vítimas de um assalto, um sequestro relâmpago, uma bala perdida das polícias clandestinas… Ou até mesmo de uma bactéria, um vírus letal… Uma overdose… Até do trânsito, pela irresponsabilidade de motoristas embriagados, que fazem com que as estradas se transformem em abatedouros que executam mais do que muitas guerras.

Ante o inelutável, segredos irreveláveis, muitos seguem linhas diferentes, chegam a extremos guiados pela fé de que a vida não termina com a morte, como diz Joana de Angelis, psicanalista clínica e interdimensional:

A tua vida não termina no túmulo. Com essa consciência, aprende para a eternidade, reunindo valores que jamais se consumarão. Toda lição que liberta do mal se incorpora à alma como força de vida indestrutível. Fosse a morte o fim da vida, sem sentido seria o universo. A criação se esmaeceria e o ser pensante estaria destituído de finalidade. Tudo, porém, conclama o ser à glória eterna, à continuidade do existir, ao progresso incessante. Estuda e trabalha sem cessar, com os olhos postos no teu futuro espiritual, vivendo alegre hoje e pleno sempre.

Outros, como o filósofo alemão Von Humboldt, defendem que a morte não termina a vida, pois esta não se evaporará enquanto o indivíduo não cumprir a sua missão: “A morte não é um período que termina uma existência, mas um interlúdio somente, uma passagem de uma forma para outra do ser infinito”.

E, por ter linhas de interpretação aristocráticas, a morte se converte num tema discutido, temido, questionado, permitindo, assim, a abertura de espaços para contestações entre ciência e religião. Esses dois sentidos opostos, por mais que apostem as suas fichas, conseguem, no máximo, meras acepções.

As inúmeras facetas da morte nos obrigam, sobretudo, a parar, encará-la como passagem cogente. E são essas facetas que provocam discussões acirradas, pois, com tantos caminhos paralelos que impedem a compreensão, a única certeza é a de que um dia morreremos… Mas como? Por quê? E para onde seguiremos?

Diante de tantas perguntas sem respostas, a morte não se volta para replicar, prosseguindo no seu percurso, transformando-se num fenômeno tão indecifrável que se tornou cultural, social, religioso… E, apesar de muitos jogarem, brincarem com a vida, se desesperam, chegam a perder o sono pelo simples fato de participarem de um velório. Essa vulnerabilidade é o bastante para muitos se chocarem, se comoverem com a fragilidade humana perante o poder da morte.

É somente nesse instante que ela se torna instrumento de reflexão, pois só de nos fazer imaginar as perdas, a dor de uma separação e que a sua sentença é a finitude, converte-se na mola que impulsiona muitos a partir em busca de consolo que conforte o íntimo, experimentando, assim, o elixir da vida eterna: Deus.

Mas, com tantos deuses agindo para confundir, muitos erram de endereço e acabam adorando extorsões, o que faz com que partam crentes de que descansarão nos braços do Pai.

Segundo o dicionário, que tem uma definição exata para todos os termos, a palavra morte é tida como “o ato de morrer, o fim da vida”… Ao passo que a ciência, em constante processo de evolução, já chegou a defini-la como “parada cardiorrespiratória”. Com os progressos alcançados graças a uma mãozinha da tecnologia, mudou de conceito, pois o incremento da ressuscitação cardiopulmonar — procedimento de emergência em vítimas de paradas cardíacas — e da desfibrilação — aplicação de corrente elétrica — ampliou os horizontes do entendimento. Mesmo assim, não foi muito longe e simplesmente usa a expressão “morte clínica” para justificar as paradas cardiorrespiratórias irreversíveis, que provocam o óbito.

Já a Bíblia — fruto da inspiração divina — nos explica a morte em dois paralelos: no Velho Testamento, enfoca a morte física e, no Novo, a morte espiritual, sendo a primeira “a separação entre o espírito, ou a alma, e o corpo” e a segunda “a separação eterna do homem e de Deus”.

Mas a Bíblia, como fonte de revelação sublime, desnorteia os que acreditam interpretá-la para traduzir sinais, sinais que levam muitos a se aglomerarem atraídos por escólio. E assim vão surgindo religiões, a exemplo do budismo, que prega o renascimento — ou reencarnação — com a veemência de que a essência humana — a alma — é a mesma eternamente. O que muda é o sobe e desce na constante transferência de residência — corpo —, ocorrida entre a morte carnal e o renascimento, prosseguindo a alma no interior de outra pessoa.

Daí o equilíbrio dos seguidores do budismo ante a morte: absoluta certeza de que o espírito estará em paz e em constante processo de evolução, como declara o monge budista Nitiren Daishonin:

shutterstock_3713719_AH_optSe o mau carma do passado de uma pessoa não é expiado no presente, ela deve passar pelos sofrimentos do inferno no futuro. Mas, se experimentar extremas privações presentes por causa do Sutra de Lótus — livro sagrado —, os sofrimentos do inferno dissipar-se-ão instantaneamente.

Seguindo essa mesma linha, o hinduísmo vai um pouco além: palavras, atitudes, pensamentos compõem o tripé que sustenta a alma na Terra, e, como a lei que impera nesse universo é a Lei do Carma, a transição fica sujeita a influências de inúmeros fatores, entre eles a conduta da pessoa. Se esta não for correta, podem sobrevir mortes e nascimentos — a chamada Roda de Samsara, que venera a Lua como fonte de energia que ilumina o espírito e o deixa preparado para a transmigração, ou transferência da alma. A alma é a essência genuína do humano, não pode vagar e, imediatamente, habita em outra pessoa ou num animal, como declaram os textos hindus: “Assim como pomos de lado uma roupa usada e vestimos uma nova, assim o espírito se desfaz da sua indumentária de carne e se reveste de uma nova”.

Transitando numa ala paralela, está o espiritismo, cujos seguidores acreditam na existência da vida após a morte — também em outro corpo humano, e não no de um animal, como acredita o hinduísmo. Todavia, o julgamento é diferenciado: os praticantes de atos benéficos terão um grau de evolução mais elevado, e os praticantes do mal ficarão na berlinda — mas terão oportunidades para se redimirem por meio dos inúmeros processos de reencarnação.

Por isso, a morte não assusta os espíritas, pois o espírito usa o corpo como um automóvel para uma magnífica viagem de pesquisas, estudos e experiências que proporcionam o processo de evolução.

Já o islamismo encara a morte como uma passagem necessária para se chegar à vida eterna. Para tanto, o corpo torna-se um objeto insignificante — o que tem importância é a alma, que, uma vez expirada, faz a matéria perder o valor —, embora se siga um ritual pós-morte em que o corpo é revestido por três tecidos brancos e levado à mesquita.

Mesmo o corpo não tendo valor após a morte, a cremação não é permitida, por seus seguidores acreditarem que Alá — Deus — trará todos no último dia para serem julgados, e estes recomeçarão — no céu ou no inferno.

Por horizontes peculiares, a Igreja Católica Apostólica Romana acredita que, após o último suspiro, a alma tem três fadários: céu, para os salvos; inferno, para os condenados; ou purgatório, aos que terão uma segunda chance para se purificarem. Mesmo acreditando na singularidade, na eternidade da alma e que a mesma jamais retornará em outro corpo, prega a imortalidade e a ressurreição.

No intrincado jogo de interpretações, de viagens a olam haba — mundo vindouro —, o judaísmo transita em meio à fé e à crença, abrindo um leque entre ressurreição — onde a alma vaga à procura de um novo corpo para se alojar — e reencarnação — quando tudo é consumado e a alma regressa ao corpo de origem —, desnorteando, enleando, instigando novos questionamentos. Seus seguidores encaram o fenômeno da morte com alta dose de misticismo, acreditando que a alma é fortemente protegida por uma blindagem de sete intocáveis camadas.

É preciso irromper nessas trincheiras para que a morte seja consumada, é preciso ir além dessas barreiras para se chegar à camada formidável, que é a que mantém a alma conectada à matéria — o físico. Na verdade, esse ritual se inicia desde a infância, quando a vida é encarada como um procedimento infinito e em constante processo de mutação.

Na contramão, transitam os seguidores do candomblé, cuja visão sobre a morte é a de que esta é uma sequência de etapas. Para eles, a vida é ministrada por uma força vital, e a pessoa tem oportunidades de reverter atos e decisões para redirecionar o próprio destino. Seus seguidores acreditam piamente que a morte não é a consumação, e sim a consequência de influências.

Quando a morte é tratada pelo protestantismo, a interpretação bíblica impera e abomina-se a reencarnação… Para os seus seguidores, morrer é transcender, como declarou o pastor Fernando Marques, da Igreja Metodista Central de São Paulo, numa entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, (2001):

A morte é um período de transição para outra vida, e não se aceita a reencarnação. Durante a vida, os fiéis devem ter fé na palavra de Deus, que julgará o destino da pessoa no céu ou no inferno não por suas ações, e sim pela sua fé…

Numa linha genuinamente teológica, a Igreja Evangélica encara a morte nos princípios do Evangelho:

“Morrer para o mundo para que possa viver para Deus”. Para seus seguidores, a primeira morte — a física — ocorre com a separação do material e do imaterial, e a segunda — a espiritual — ocorre quando acontece a separação da pessoa e de Deus — são os não salvos —, resultando na abdução, que significa morte eterna.

Mas mesmo a morte sendo irredutível no cumprimento da sua missão, o homem é incansável na caça de respostas. Para tanto, não mede esforços para traduzi-la, ludibriá-la e, assim, se enche de coragem, solicita auxílio a tudo e a todos para atingir, pelo menos, a essência do seu significado. Recorre, assim, ao latim para desvendar a origem do nome (mors) e entender que ela ainda pode ser denominada como óbito (obitu) ou falecimento (falecer + mento). Infatigável, o homem fortaleceu a fé com uma boa dose de misticismos e vislumbrou o desencarne (deixar a carne)…

Fracassou… A morte é um segredo, continua um mistério.

Bem que muitos sábios tentaram desvendá-la a partir desse ponto através da literatura, como o fenomenal escritor irlandês Oscar Wilde, que foi profundo quando escreveu: “[…] morte é o fim da vida, e toda a gente teme isso; só a morte foi temida pela vida, e as duas refletem-se em cada uma […]”. Entretanto, em outra literatura viva, inspirada por quem guarda o segredo da morte — Deus — escreveu-se em Filipenses 2. 12: “[…] desenvolverei a vossa salvação com temor e tremor”.

No entanto, se ousarmos ir um pouco além e enveredarmos pelo universo das mitologias — principalmente a indígena —, no qual a morte ganha outras proporções, atiraremo-nos num mundo onde um misto de deuses, lendas e heróis impera, transformando o mito morte em rituais que abrem trilhas que convergem para vários caminhos, muitos acreditando ser possível a ressurreição.

Mas quando a missão é encarar a extinção, o indígena, principalmente o guarani, tem três reações distintas: a primeira é a de um medo extraordinário dos mortos; a segunda é de adaptação, revelando que a morte não os assusta, mas, sim, o espírito do morto — a anguêry —, que passa a vagar. O medo é tamanho que os leva à terceira reação: um desejo ardente de chegar à “Terra sem Males”.

Esse temor é generalizado, porque, segundo a cultura guarani, existem três tipos de alma: a nhe’enguê ou nhe’em — alma do bem —, que segue o caminho que leva direto ao além sem incomodar os vivos; a anguêry, que é a alma animal — que, durante um período, permanece na Terra para assustar os vivos —; e a avyu-kuê, que se transforma numa sombra inversa à da pessoa, mas que vaga pela mata sem assustar os vivos.

Mas, entre respostas e interpretações, um questionamento deixa os especialistas, os educadores e, principalmente, os pais em saia justa: como informar a morte de um ente amado a uma criança?

É preciso que pais e educadores entendam que criança não é um presente gerado para ser manipulado como se tivesse manual de instrução, através do qual erros e conflitos podem ser reparados para ajustar falhas. Criança é ser humano e como tal tem personalidade distinta, vontade própria, desejos e uma densa carga de curiosidades.

Esse questionamento deve ser resolvido de forma coerente, pois pequenas falhas cometidas, principalmente pelos adultos — acreditando que estão fazendo grandes feitos —, caracterizam desajustes em jovens e adolescentes, pelo fato de os adultos admitirem que o viver é uma trajetória de lógicas cientificamente comprovadas e que se fecha numa contabilidade exata… Viver é errar, aprender e amadurecer e, desse modo, crescer, encarar a vida e a própria morte como trajetória natural. Esse cuidado é tudo que o mestre Rubem Alves nos alerta: “[…] a morte pode representar algo totalmente diferente entre as diferentes pessoas e algo totalmente diferente em diferentes épocas da vida de uma mesma pessoa”.

“Por que meu avô (meu pai, minha mãe, meu irmão, etc.) foi levado naquela caixa de madeira e não voltou para o jantar?”

De tão complexo, o contexto provoca desconforto. Principalmente ante o crescimento das tragédias ambientais, da violência doméstica e urbana, que provocam mortes súbitas. Negar essa verdade aos pequeninos pode originar gravíssimos problemas no futuro, e esses fantasmas perseguem, acossam, provocando desequilíbrios, pois a criança, na fase da formação dos laços afetivos, se apega demasiadamente a alguém ou até mesmo a um animal de estimação — cachorros, especialmente — e não pensa no fim. Por isso, deve ser preparada — de acordo com a faixa etária — para enfrentar separações repentinas sem afetar o ponto mais vulnerável: o psicológico.

Há uma necessidade de a escola inserir, no seu currículo, conteúdos que preparem as crianças para entender que a morte é uma etapa obrigatória, mas a vida continua com novos sonhos, novos desafios, novas batalhas, afinal o ciclo “viver” é como um brinquedo que tem prazo de validade, pode quebrar pelo mau uso ou por um mero acidente. Não se deve ludibriá-las com histórias que gerarão revoltas quando desmitificadas.

Infelizmente, a condição humana chegou ao estado deprimente ante a sede de ter, impelindo muitos a encararem esse milagre denominado vida como uma temporada sem fim, e não como um período que nos prepara para o fim.

shutterstock_10711753_O_optMas a expectativa da finitude provoca inquietude e silencia os homens. E é nesse silêncio que temores ecoam, medos se manifestam e fraquezas são contidas pela resistência… Os que se preparam para ouvir essa voz inquietante — a da razão — e preparam os que vivem a flor da vida — as crianças — para enfrentarem esse momento de perdas e separações não passam por isso.

Temos que admitir que explicar a morte para a criança é uma tarefa tão difícil quanto explicar a essência do viver aos que apenas absorvem a vida… Mas é preciso esclarecer para elas — e esclarecer sem provocar transtornos ou traumas psicoemocionais —, afinal preparar é a forma mais segura para superar medos e administrar inseguranças.

Perante a grandeza da complexidade da morte, o humano recua… Mas o questionamento ressoa com tanta frequência que gera tormentas. Explicar esse fim para uma criança é um processo extremamente delicado, pois esclarecer o enigmático é uma missão quase impossível, mas todo pai ou professor deve estar preparado para isso, principalmente na fase em que as indagações — por volta dos 4 anos — são frequentes, pois a criança quer saber de onde vem, qual sua missão e que fim tomou um ente amado que fazia parte do seu dia a dia.

A verdade é que eu, você, nós, não escaparemos das garras da impiedosa. Mas essa certeza não é suficiente para sabermos se esse instante será daqui a uma década, duas, três, dez… Amanhã, hoje, agora… Por isso, é preciso que estejamos preparados para enfrentarmos a perda de alguém que amamos ou para ampararmos alguém que depende da nossa maturidade.

Quem já viveu essa experiência tem consciência de que a morte de um ente amado é uma perda incalculável, mas fazer de conta que ela é um bicho- -papão e fechar os olhos temendo encará-la é tão sinistro quanto dormir à sombra de um vulcão.

É por isso que é bom estarmos preparados e prepararmos os nossos pequenos para esse momento… Morrer é um processo muito comum. Mas uma verdade deve ser enfrentada com seriedade: a morte do outro pode nos abalar, deixar-nos tristes, mas, quando é na família, a dor é inexplicável. Ignorá- la por medo é mentir para nós mesmos com o intuito de enganarmos o outro.

A omissão dos adultos — na maioria das vezes para poupar sofrimentos — é um erro grave, pois as vítimas dessa omissão pagam um alto preço para repararem as perdas, recolocarem-se no caminho e reencontrarem a trilha da vida.

Sabemos que a morte é como a mudança do tempo, acontece bruscamente. Para ela, não importa que a vítima tenha 1, 2, 7… 100 anos. Se chegou a hora, ela simplesmente arremessa a sua foice, deixando para os que ficam momentos de pura angústia, de pleno desespero. O Eu chega ao extremo da dor, que transita entre o íntimo e o coração, que apenas sangra, perde o compasso, provocando total desequilíbrio.

A ferro e fogo, aprende-se que o limite humano vai além da consternação, da dor… A ausência produz um fruto amargo denominado saudade, e esta, quando se choca com sentimentos e dependência emocional, abre um vácuo numa dimensão incalculável e simplesmente acossa, tortura ao emitir ecos, trazer imagens, reviver momentos… Momentos com trajetórias invertidas pelos abismos que se agigantam sugando emoção e avivando a agonia.

Buscar força interior para reagir é o caminho. Mas um íntimo que sangra é como um terreno de areia movediça: nada se equilibra, nada é compreendido… Lembranças é tudo que resta. E, nessa tempestade, superar exige mais do que vontade, auxílio… É preciso ânimo, capacidade para recomeçar sem alguém que era o tudo.

A perda, para muitos, se torna uma lição tão penosa que a maioria é marcada para sempre por não estar preparada para encarar a vida com a ótica de que o nascimento é um milagre, mas a morte é uma consequência. Pois a vida é como a de uma plantinha… A semente é lançada numa terra fértil, germina, nasce e, a partir daí, fica exposta às setas do mundo: pode ser vítima de secas intermináveis, enchentes assoladoras; ceifada em pleno crescimento… Ou crescer, florescer, produzir frutos… E morrer, para que assim se cumpra o circuito da vida.

Por isso é fundamental que o adulto — principalmente os pais — inicie esse preparo a partir dos “porquês” da criança, pois, nessa fase, a mente dela é um terreno fecundo, pronto para receber as mais variadas espécies de sementes. Ainda assim, mesmo tendo a curiosidade aguçada pelas coisas à sua volta, as crianças não têm maturidade para perceber nem compreender que a morte — mesmo sendo uma fatalidade — não é uma viagem, principalmente quando se trata de alguém que compartilha do seu dia a dia — como avós, pais, irmãos. Essa consciência é fundamental, pois desintegrar a criança da realidade é privá-la de um direito, o que pode acarretar problemas futuros.

O que deve ser evitado é atingir sentimentos, emoções e o psicológico. Esse processo exige habilidades, como dar respostas que saciem a curiosidade sem sobressaltar a criança. A solução holística do enigma pode estar na abordagem.

Mesmo com os extraordinários avanços da ciência — que insurreciona a medicina, com transplante de coração, fígado, pulmão, medula óssea, tecido pancreático —, a eficácia da imunologia — o sedicioso descobrimento dos antígenos de histocompatibilidade —, a evolução da farmacologia e da cirurgia plástica — que remodela, reconstrói o humano para ressaltar encantos — e a manipulação genética — capaz de criar a vida num ambiente in vitro, e que ainda não clonou a raça humana graças à contenção da lei —, jamais se evoluiu para chegar ao estágio de impedir que a vida siga o seu ciclo natural para encontrar- se com a morte… Morrer é trajetória de mão única de quem nasce… E o responsável por esse fim é ninguém além do próprio homem.

Se o homem tivesse acatado os conselhos do Criador — desde o Jardim do Éden —, não passaria pelo processo de morrer nem viveria num mundo de guerras, fome, tragédias e epidemias incuráveis. Tampouco sofreria com a expectativa de viver um dia, um mês, um ano, cem anos, sem saber para onde irá após a transição; muito menos os adultos teriam que inventar histórias, mentiras, para explicar às suas crianças que a morte é um fantasma tão real que o amanhã é uma promessa que pode não ser cumprida, pois esse fio pode ser cortado no passo seguinte pela violência urbana, pela guerra e, pior, pelos próprios entes queridos, graças à selvageria doméstica que a cada dia destrói lares e abala famílias.

Mas o humano é imbatível na busca de troféus que satisfaçam o ego. E, para tanto, é capaz de ir além do Eu alheio, porém cede, renuncia, ante uma barreira que, para ultrapassá-la, depende de estrutura psicológica, preparo emocional… O humano deve compreender que ir e vir, chegar e partir é o ritmo correspondente à sucessão da vida, e, sem essa estrutura, muitos desabam, despedaçam-se, desesperam- se diante de um fato esperado por todos.

Muitos se desequilibram diante da morte, como se o mundo extinguisse algo vital… Esquecem-se de que perdas e ganhos promovem o equilíbrio, principalmente o crescimento de quem busca uma vida contrabalançada, cujos sismos não a abalam.

shutterstock_1704132_Ya_optEsse aprendizado proporciona o amadurecimento, a base da estrutura humana, que não acontece para muitos devido à carência de fé, de amor pelo outro, e por isso eles simplesmente sofrem, padecem… E não vivem. Não vivem porque não aprendem com os tropeços. Não dominamos o tempo, não governamos a vida… Nada nos pertence a não ser a própria existência, e a dor, a morte do outro, é um alerta que devemos levar como lição. Precisamos educar-nos e aprender que viver exige estrutura, e faz parte dela o preparo para morrer ou para relacionar-se com a morte de alguém. Sem esses cuidados, muitos permitem que a pior das mortes aconteça — a morte do Eu —, permanecendo inertes apreciando o curso da vida. A morte física se torna a decorrência das ações de um ser que se atirou de peito nas entranhas de um mundo repleto de ciladas sem o kit básico de sobrevivência.

Por acreditar que é capaz de sanar todos os problemas, o humano julga-se no direito de ir além… Além do próprio Criador, por entender que a ciência responde perguntas, tem a fórmula que abre portas.

Somente quando se envereda pelo corredor do fim é que o homem percebe que a vida é o seu maior patrimônio e este é uma herança de quem gerou a vida, não um crédito que pode ser usado numa emergência, quando o existir entra no vermelho.

Na verdade, os adultos deveriam aprender com a capacidade que as crianças têm para contornar barreiras em vez de acreditarem que podem ultrapassar todos os obstáculos. Deveriam aprender a sorrir para a vida após uma lágrima derramada e encarar o horizonte sem receio de olhar para trás. Essa resiliência não é consequência apenas da inocência, que perdoa sem guardar rancores, da imaturidade, que recomeça sem contabilizar as quedas… Mas da sabedoria, que lhes permite não complicar a vida por motivos fúteis estes levam muita gente grande ao pó sem que experimentem a verdadeira essência da vida.

Essa lógica é tão coerente que uma das regras impostas para entrar no reino dos céus é: “Em verdade vos digo que se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus”, declarada pelo próprio Cristo em Mateus 18. 3. Afinal, a morte não desaponta as suas vítimas. A morte não é apenas terror, o fim de tudo… A morte é um sobressalto que nos desperta com tamanha genialidade que inspira o poeta, dá vida à melodia através das notas de um íntimo que sangra a dor de uma perda, de um coração que chora, mas que não desprende o olhar do horizonte…

A morte é sabedoria, pois instiga a Filosofia a retratá- la com tamanho fascínio que gerou frutos maravilhosos, como doutrinas filosóficas e religiosas e, mesmo deixando como herança muitos temores, um alto grau de ansiedade e elevadas doses de angústia, fortalece-nos com as perdas. Isso mesmo… As perdas nos fortalecem de tal maneira que impulsionam em nós a vontade de viver, despertando em cada ser a necessidade de valorizar a vida, para assim poder sonhar, fazer planos e alimentar com o combustível da esperança a chama da vontade de correr atrás da felicidade nesse breve trajeto entre nascer e morrer.

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