Edição 70

Matérias Especiais

Multiculturalismo e o diálogo na Educação: a dificuldade de conviver com o outro

Rosangela Nieto de Albuquerque

escrevendo

Isonomia, ou igualdade da lei para todos; isotimia, ou idêntica consideração (idêntico respeito) tributada a todos; e isagoria, ou igual liberdade de palavra (BARKER, 1953, apud BONAVIDES).

O Brasil é um país preponderantemente multifacetado. São diversos “Brasis” com manifestações multiculturais, e essa diversidade brasileira é ilimitada: costumes, tradições, lendas e crenças constituem o imaginário do povo brasileiro.

Constituído de uma multiplicidade de identidades e modos de ser, negros/as, brancos/as, indígenas, mulheres, homens pertencem a uma sociedade miscigenada que foi instruída ao longo da historiografia brasileira por intermédio de políticas educacionais com orientação monocultural, que privilegiavam homens, brancos, heterossexuais, cristãos e favorecidos financeiramente. O reconhecimento do multiculturalismo no contexto da educação brasileira é uma questão de justiça social, pautada nos direitos humanos e articulada à práxis educativa. Desse modo, a discussão do multiculturalismo no campo pedagógico abarca um “posicionamento claro a favor da luta contra a opressão e a discriminação a que certos grupos minoritários têm, historicamente, sido submetidos por grupos mais poderosos” (CANDAU, 2008).

Refletindo acerca das origens do multiculturalismo como movimento teórico e prática social

O multiculturalismo é o reconhecimento das diferenças, da individualidade de cada um, do respeito ao gênero; é o resultado da mistura de raças — negra, branca, indígena; é a luta pela minoria; enfim, é o respeito pelos costumes, valores, pelo modo de vida. Portanto, o multiculturalismo perpassa pelo hibridismo da diferença, da maneira de viver que estabelece o convívio multicultural. Nessa coexistência de várias culturas, certamente se instaura o respeito entre as culturas estabelecendo-se atitudes de tolerância entre os indivíduos. O multiculturalismo é um princípio que defende a necessidade de se ir além das atitudes de tolerância entre diferentes culturas num mesmo território ou nação. Para que possa haver uma coexistência harmoniosa, devem ser respeitadas as diferenças entre culturas que habitam um mesmo Estado.

A ideia de multiculturalismo está associada a outros fenômenos contemporâneos, como o pós-modernismo e o relativismo cultural. No pós-modernismo, as diversas culturas dentro de uma mesma nação têm o direito de existir, havendo ou não um elo cultural comum. Assim, o multiculturalismo emerge não apenas como movimento social em defesa das lutas dos grupos culturais, das minorias, dos negros, mas também como uma fecunda abordagem curricular contrária a toda forma de preconceito e discriminação no espaço escolar.

É importante ressaltar que, inicialmente, a luta pelo movimento multiculturalista constituiu-se desvinculada dos sistemas de ensino. Na sua maioria, os movimentos sociais eram articulados, especialmente, por grupos culturais negros, e, no final do século XIX, o combate ao racismo e as lutas por direitos civis tiveram ênfase com a participação dos afrodescendentes, que buscavam a igualdade de exercício dos direitos civis e o combate à discriminação racial no País (GONÇALVES E SILVA, 1998).

O discurso da diversidade e do multiculturalismo

No contexto social atual, o discurso da diversidade, no que diz respeito à cultura, emerge num grande espaço de discussões, abordado muitas vezes superficialmente, voltado apenas para a tolerância entre os “diferentes”. No contexto mundial, a Unesco, enquanto agência encarregada da cultura, enfatiza que se deve promover uma “salutar diversidade de culturas” e o “trânsito livre de ideias em palavras e imagens”, assegurando assim a harmonia entre as diferentes culturas, com o objetivo de unir os sujeitos para que os seres humanos não se aprisionem em suas separações, mas, sim, compartilhem as riquezas de uma única cultura mundial diversificada (Relatório do Diretor Geral, 1947).

A Unesco busca o reconhecimento da diversidade primando pelo reconhecimento da igual dignidade de todas as culturas, o respeito pelos direitos culturais, a formulação de políticas culturais, a promoção da diversidade, um pluralismo construtivo e a preservação do patrimônio cultural.

Em 03 de novembro de 2001, foi assinada, na 31ª sessão da Conferência Geral da Unesco, em Paris, a Declaração Universal da Unesco sobre a diversidade cultural. Os membros que compunham a Conferência responsabilizaram-se por “assegurar a preservação e a promoção da fecunda diversidade das culturas” no que tange às diferenças no contexto social e educacional. Para McLaren (1997), a “diversidade é frequentemente interna à atividade criadora de símbolos daquela cultura, sendo melhor falar de hibridez da cultura”.

Na verdade, o multiculturalismo crítico enfatiza a pluralidade de identidades culturais, a heterogeneidade como marca de cada grupo e é contrário à padronização e uniformização definidas e impostas pelos grupos dominantes. É importante defender o direito à diferença nas relações sociais como forma de assegurar a convivência pacífica e tolerante entre os indivíduos em meio às relações de poder, que são construídas justamente pelas diferenças.

O discurso da igualdade na Educação

Na sociedade capitalista contemporânea, o discurso da igualdade na Educação apresenta-se como um mito bastante perigoso, pois o modelo pedagógico vigente evidencia que as oportunidades são iguais e afirma que o sistema educacional é o principal aspecto gerador de igualdade da nossa sociedade livre. O sucesso, então, pode ser alcançado pela inteligência, pelo trabalho árduo e com criatividade. Assim, como muitos outros mitos, esse faz parte da nossa vida diária, mesmo que sua falsidade tenha sido continuamente comprovada (MCLAREN, 1997).

Certamente, o mito da igualdade é injusto, tendo em vista que as pessoas que acreditam nela pensam na possibilidade de ter êxito nos estudos. Alguns estudiosos dizem que a raiz do problema da divisão de classes está no fator biológico, ou seja, os estudantes que se encontram em desvantagem herdaram um “talento cultural” inferior.

[…] o mito da oportunidade igual para todos mascara uma triste verdade: o sistema educacional é, na realidade, uma loteria social predeterminada, na qual cada estudante tem tantas chances quanto seus pais têm dólares (MCLAREN, 1997).

Segundo Bourdieu (1964), uma criança de classe social menos privilegiada, que convive em uma família que não domina a língua culta, recebeu certamente de seus pais uma “boa vontade cultural” esvaziada, considerando que os mesmos não possuem outra coisa além de boa vontade para o filho estudar. Já uma criança de classe social privilegiada recebe da família todo o estímulo para desenvolver a linguagem, portanto, o domínio da língua culta, entre outras habilidades próprias de sua cultura. Essa criança é aceita no grupo social, porque, além de dominar a língua, possui todo um referencial, tendo em vista que seus pais lhe passaram um “capital cultural”, mesmo que indiretamente.

Ao longo da história, construiu-se o mito de que todos eram iguais em direitos e oportunidades, inclusive na educação.

[…] a cultura escolar está impregnada pela perspectiva do comum, do aluno-padrão, do “aqui todos são iguais”, o que evidencia a ausência de uma educação pautada na diversidade em sala de aula. A escola trabalhava um currículo único, todos eram “iguais” (CANDAU, 2002, p.14).

Nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1997), consta que a Educação deve ser vivenciada como instrumento proeminente de promoção dos valores humanos universais, com qualidade dos recursos humanos e respeito pela diversidade cultural. O discurso oficial, portanto, enfatiza a educação para a cidadania considerando a capacidade de convivência com a cultura do outro. Ao incluir a pluralidade cultural como tema transversal, os Parâmetros (BRASIL, 1998) avançam no que tange à proposta educacional e curricular multiculturalista, na medida em que reconhece o valor da pluralidade e a diversidade cultural como fator preponderante para a cidadania, com base no respeito às diferenças.

E na escola… Como conviver com o outro?

Nas últimas décadas, observa-se a construção de novos paradigmas educacionais e a constante recriação da práxis pedagógica libertadora. Dentro desse contexto educacional, observa-se a falência da transmissão de conteúdos educativos fora do contexto social do educando, já que não surge do saber popular. A aprendizagem, na práxis pedagógica libertadora, tem a configuração centrada no aluno, enfatizando o diálogo, a discussão, a comunicação, respeitando o conhecimento do aluno e sua capacidade para assumir a sua própria aprendizagem. Portanto, a educação dialógica é imprescindível na pós-modernidade, pois é necessário conhecer o aluno, que certamente está inserido em um contexto social; precisa-se conhecer o universo dos educandos, sua bagagem cultural, e, numa tríade educando-educador-meio social, constrói-se o diálogo, busca-se reinterpretá-lo e recriá-lo. Nesse contexto, considerando que professor e alunos são sujeitos de uma relação recíproca de aprendizagem, torna-se possível diminuir as distâncias e as diferenças.

Ao estimular e promover o desenvolvimento, numa conexão mediada pelo diálogo, professor e aluno “fazem acontecer a Educação”. Segundo Gadotti, há, de acordo com o método de Paulo Freire, três momentos interdisciplinarmente entrelaçados: a investigação temática, na qual aluno e professor buscam, no universo vocabular do educando e no meio onde vive, as palavras e temas centrais de sua biografia; a tematização, que consiste na codificação e decodificação de temas — ambos buscam o seu significado social, tomando, assim, consciência do mundo vivido; e a problematização, que envolve a superação da visão imaginária por uma visão crítica, partindo para a transformação do contexto vivido. Portanto, Educação não é apenas uma transmissão de conteúdos entre professor e aluno, mas um diálogo entre os sujeitos, no qual todos estão em um ambiente de constante aprendizado.

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Para Freire, o fim maior da Educação deve ser desenvolvido a partir do diálogo e da consciência, contexto em que as pessoas podem lutar por sua liberdade, contra a máquina opressora do capitalismo. Pode-se, então, afirmar que toda aprendizagem é transformadora e acontece nas modalidades formal e informal, com embasamento na prática e na ação de suas experiências, portanto na interação com o meio social e através de uma ação plena de reflexão crítica do aluno e do professor. Nessa perspectiva, o educando é competente em exercer a construção de sua aprendizagem, mobilizando-a para transformar a si próprio, construindo sua alteridade e compreendendo sua identidade. Assim, a aprendizagem transformadora possibilita que o aluno aprenda a ser, a viver, a conviver, a conhecer e a fazer, sendo capaz de construir e compartilhar. Considerando esses aspectos, a manifestação do multiculturalismo na Educação fez emergir desafios essenciais sobre o conhecimento, abrindo possibilidades para se pensar em práticas curriculares e de formação docente voltadas à construção de identidades discente e docente multiculturalmente comprometidas com o ensino-aprendizagem, visando promover o respeito à diferença e à pluralidade cultural.

Considerações finais

Certamente, o multiculturalismo é um movimento teórico e apresenta-se como prática social que contesta preconceitos e discriminações a indivíduos e grupos culturais muitas vezes submetidos a processos de rejeição ou silenciamento por sua condição de pertencimento identitário, diverso dos padrões definidos como válidos e aceitáveis, seja no espaço escolar ou no contexto social mais amplo.

Portanto, viver e conviver com o outro no mundo atual passa pelo reconhecimento da pluralidade e diversidade de sujeitos e de culturas, fazendo prevalecer o respeito e a tolerância recíproca, aceitando as diferenças culturais como construtoras do que é plural e diverso, e não como causadoras de inferioridade ou desigualdade. É importante unir o multiculturalismo e suas origens aos seus significados e concepções teóricas como forma de evidenciar o sentido político-cultural de se educar as atuais e as futuras gerações a partir de uma visão multicultural crítica que leve em conta, no processo formativo dos sujeitos, a necessidade e importância de se reconhecer, valorizar e acolher identidades plurais sem representar quaisquer formas de preconceito e desrespeito à vida humana, independentemente de sexo, cor, gênero, credo, etnia, nacionalidade. Portanto, busca-se, com isso, superar atitudes discriminatórias ou silenciadoras da diversidade cultural pautada na justiça social.

É importante enfatizar que não se devem entremear exclusivamente os processos discursivos, mas combater o preconceito na sociedade, especificamente na escola, pois é ela formadora de opinião, de identidade e transformadora da sociedade. É ela que permeia novos saberes, novas competências, um novo jeito de pensar e de agir; enfim é ela que constrói um novo perfil de formação do cidadão. O desafio da escola pauta-se na busca de soluções para os problemas e impasses sociais, tendo em vista que, na sociedade contemporânea, a luta pelo poder não se desenrola somente no espaço político e econômico, mas amplia-se para o terreno cultural e da interdependência global. Faz-se necessário sucumbir à discriminação, ao racismo, à xenofobia, ao extremismo religioso, à exclusão social, econômica e étnica, que atingem grupos economicamente mais fragilizados. Torna-se urgente e inadiável a mobilização de esforços no sentido de solucionar e combater a opressão e reafirmar os direitos humanos, garantindo o direito à pluralidade e às diferenças culturais, em defesa da diversidade cultural, da vida humana acima de qualquer forma discriminatória, preconceituosa ou excludente, a fim de evitar abalos mais profundos nos alicerces da sociedade.

Rosangela Nieto de Albuquerque é doutoranda em Educação, Mestre em Educação, Mestre em Ciências da Linguagem, psicopedagoga, pedagoga e professora universitária.
Endereço eletrônico: rosangela.nieto@gmail.com.

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