Edição 15

É dia...

No coração da poesia: redemoinho de palavras na sala de aula

Lenice Gomes

A poesia brotou dos cantos sagrados. O canto era a viva poesia, e a poesia se traduz na própria música. O verso era cantado à chuva, à lua, ao fogo, ao sol, aos rios, aos ventos, para serenar tempestades e vulcões, para guardar a tribo das forças do mal, das doenças e das pragas. Assim, o canto se presentificava no rito das celebrações dos homens aos deuses da natureza no período da colheita do fruto. Enfim, um universo a ser compreendido, dominado e explicado, semeado pela palavra. Os tempos se agitavam dentro de nós. Presentes, passados, futuros num tempo só, tudo junto flui na nossa vida imersa no sagrado e no poético em busca, como deseja o poeta Pablo Neruda: “Caminho, como tu, investigando a estrela sem fim…”. É a busca de cada um. A vida se sente quando é transformada em palavras no sagrado da poesia em tudo o que se vê, se sente e se é.

Nessa cumplicidade poética, ecoam as canções de ninar, tão impregnadas dentro de nós e que constituem o primeiro contato com a vertente tradicional popular da poesia. Os trava-línguas, as parlendas, as quadrinhas, mantêm fresca a poesia nos primeiros anos de vida, deixando a criança à vontade para a criação de universos imaginários transcorrentes da diversidade de imagens, em particular as de natureza fônica. Graças a uma memória muito viçosa, a criança recolhe e saboreia os ritmos novos, a originalidade das imagens, o humor, o nonsense e a ludicidade desses brincares poéticos. O antigo costume de contar histórias populares, de brincar de roda, de cantar canções de ninar, além de provocar o interesse por idéias e esquentar a imaginação, estimulam a curiosidade, o entusiasmo e o interesse por essa impressão sensorial pura, que é transmitida pelos sons e pelos timbres.

“Junto a minha rua, havia um bosque / Que um muro alto proibia / Lá, todo balão caía / toda maçã nascia / E a dona do bosque nem via…”
Chico Buarque

A criança é vulnerável ao fascínio das palavras. É bem verdade que uma vivência com elas admite ao imaginário um contato poético e íntimo. Assim como observa Vygostsky, um imaginário enredado, desenhado, representado, repassado pela linguagem e pela matéria verbal. Lembramo-nos, a propósito, de Denise Escarpit, que, com sutileza, observou: “Ter uma linguagem que escape ao professor, isto é, à instituição escolar, incorreta, imposta pelos adultos é o sonho de todas as crianças”. Nesse fascínio com as palavras, a criança deságua em outros jogos sonoros, construindo sentidos para o texto e alargando seu repertório, isto é, através do “jogo-vivido-no-texto”, ela pensa e cria imagens correspondentes como parte unida da função estética. A poesia, em especial, carrega um teor lúdico, gerando um jogo da encantação com as palavras, capaz de levar o leitor à transformação.

A criança brinca e experimenta, pela via do humor, a relação existente entre o som e as palavras. Talvez seja isso o que permite dizer que a criança precisa dessa linguagem, para que a palavra tenha valor e que esteja atenta à beleza do mundo, às suas expressões específicas, participa do espaço criativo deste. Com efeito, os diversos jogos de faz-de-conta se tornam uma “vivência-viva” que está impregnada de vida diária. Cabe lembrar que Nietzsche aconselhava a “fazer do conhecimento a mais potente das paixões” . Os fios da meada são longos e destecê-los é unir prazer, afeto e sensibilidade, com o compromisso de descortinar a capacidade de ir além do que está estampado. E somente sob esta condição, saberemos conviver com os desafios que nos lança a contemporaneidade.

Sem sombra de dúvida, pensar e pensar-se nessas vivências é querer que a escola não se furte desses momentos ricos de aprendizagem. Em suma, o fascínio e a sedução que a arte literária exerce encaminha a criança para a construção e a apreciação do saber. Mas pensar na poesia de sala de aula tem de iniciar com o gosto do professor pela literatura de poesia. Ora, se as palavras surpreendem e encantam as crianças, por sua vez podem e devem maravilhar os professores. É valioso ter isso bem claro no nosso “fazer-dizer-expressar”. Certamente é necessário alimentar/nutrir as crianças para (re)descobrirem o mundo, uma vez que as formas tradicionais de explicar a vida e o mundo não são mais suficientes e válidas. Faz-se necessário olhar o mundo que nos contorna em suas múltiplas formas e rico de significações. Em suma, uma consciência crítica, própria, exprimindo a fruição da vida em suas variadas modulações.

Johan Huizinga diz: a poiesis é uma função essencialmente lúdica e coloca lado a lado o poeta e a criança; e mais, para compreender a poesia, o adulto deveria carregar uma “capa mágica”. Nessa conversa que ora desatamos em torno da poesia, é nossa intenção provocar e inquietar o professor-educador para esse bem-querer com as palavras, uma vez que poesia constitui fonte inesgotável do gozo estético e de elementos a que entregam suas relações com o mundo.

E a escola, como se nutre no contexto poético? Ela impõe padrões, reprime a poeticidade das crianças, inibe produções. Ao mesmo tempo, coloca para lerem poemas que nada têm a ver com sua visão da realidade circundante. Ainda se assusta quando as crianças rejeitam os poemas. Como criar espaços para o poético em nossas vidas? Como romper com a alienação, criando projeto de educação capaz de despertar a criança para o encanto das palavras? O prazer de ter a poesia em nossas vidas, pelo tempo que quisermos, poderá ser tudo o que uma pessoa grande ou pequena pode ter ousadia de querer… Clarice Lispector queria Reinações de Narizinho e nós queremos reinações e a poesia invadindo a fantasia das crianças num redemoinho de palavras. Assim, a ênfase sobre a vivência da poesia na sala de aula é uma boa maneira de notarmos que, no coração da poesia, teremos a delicadeza de sonhar.

“Certa palavra dorme na sombra/ De um livro raro./ Como desencantá-la?/ É a senha da vida, / A senha do mundo / Vou procurá-la…”

Carlos Drummond de Andrade

 

cubos