Edição 50

Professor Construir

O canto dentro das palavras

Manoel de Barros

img8

Para o poeta Manoel de Barros, a linguagem é mais importante do que as
ideias. E despraticar a norma é uma virtude em poesia. Manoel de Barros nasceu
cuiabano, mas com um ano de idade já era pantaneiro. Seu pai comprara
uma fazenda, e ali Neco cresceu, entre o gado, a lida dos vaqueiros, a natureza
exuberante do Pantanal e as “desimportâncias”. Conforme relata: “Ali o que eu
tinha era ver os movimentos, a atrapalhação das formigas, dos caramujos, das
lagartixas. Era o apogeu do chão e do pequeno”.

Depois de estudar em internato no Rio de Janeiro, onde se
encantaria com Padre Vieira e Rimbaud, e de passar um
ano em Nova York, onde estudaria Cinema e Artes Plásticas,
Manoel de Barros enfiou-se no Pantanal, em 1949, para
tornar-se fazendeiro, sem deixar de publicar seus livros, que
já passam de duas dezenas. Em 1969, recebeu o prêmio da
Fundação Cultural do Distrito Federal pela obra Gramática
Expositiva do Chão, e, em 1997, o Livro sobre Nada recebeu o
Prêmio Nestlé. No ano seguinte, receberia o Prêmio Cecília
Meireles, concedido pelo Ministério da Cultura.

Quatro livros de Manoel de Barros fazem parte do acervo
do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE): Poeminhas
Pescados numa Fala de João (Editora Bertrand Russel),
Memórias Inventadas para Crianças (Editora Planeta), ambos
de 2005; Memórias Inventadas – A Segunda Infância (Editora
Planeta Jovem) e Poemas Rupestres (Editora Best Seller), ambos
de 2006. Nesta entrevista, concedida a Ricardo Prado e
Maria José Nóbrega, o poeta comenta suas melhores leituras
por escrito. Manoel de Barros não gosta de gravadores
nem de computadores. Nem usa um deles para escrever sua
obra. “Sou metido. Sempre acho que, na ponta de meu lápis,
tem um nascimento.” E tem, como se verá.

Ricardo Prado e Maria José Nóbrega – Quando o senhor começou
a escrever poesia?

Manoel de Barros – Para não mentir, eu acho que não sei. Com
10 anos, arrebentou uma brotoeja. Com 12 anos, outra. Com
13, outras. A data pode ser escolhida. Mas penso que escrever
mesmo, na fiúza de que fazia literatura, foi aos 13 anos.

RP/MN – Manoel de Barros só foi reconhecido como um
grande poeta depois dos 70 anos de idade, mesmo tendo
publicado seu primeiro livro, Poemas Concebidos sem
Pecado, em 1937. Como é, para um escritor, esperar tanto
tempo pelo reconhecimento de sua produção? O poeta
precisa ser um pouco teimoso?

MB – Publiquei meu primeiro livro aos 19 anos. Ninguém me
viu, publiquei aos 22, aos 28, aos 70, e ninguém me viu. Me
acostumei com o silêncio. Eu sou conformado como um sapo.

RP/MN – Só em 1999 é que o senhor lançou livros para
crianças: Exercícios de Ser Criança. Há diferença em escrever
para adultos e para crianças?

MB – Acho que a palavra tem que chegar ao grau de brinquedo
para ser séria. Nesse primeiro livro infantil, talvez eu
tenha aproveitado melhor a inocência das palavras.

RP/MN – Que poetas ou escritores foram essenciais para a
sua formação? Quais os livros que o senhor gosta de reler?

MB – Ainda no Colégio São José, interno, eu li toda a literatura
quinhentista portuguesa. Ria muito com Gil Vicente
e tive vontade de ser Gil Vicente. Depois me deram Vieira,
Vieira lisonjeava as palavras mais que a sua doutrina. Até
hoje gosto de ler os quinhentistas portugueses.

RP/MN – O poeta Ezra Pound afirma que há três grandes
procedimentos básicos da linguagem poética: a que explora
a música, a imagem e a ideia. O senhor concorda com
essa afirmação? Se sim, de quais procedimentos sua obra
mais se aproxima?

MB – Tenho em mim uma certeza. Esta: o que marca a eternidade
de um artista é a sua linguagem, e não as suas ideias.
Não suprimo as ideias, mas acho que, em poesia, elas são
acessórios. Não são fundamentais. A imagem e a música são
fundamentais. Poesia é armação de palavras com um canto
dentro. A armação de palavras não seria para dar ideias, mas
para transmitir um encantamento.

RP/MN – No soneto A um Poeta [transcrito no final da
entrevista], Olavo Bilac refere-se ao trabalho do poeta de
modo a sugerir uma penosa atividade de reescrita. O senhor
também “trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua” a
cada poema? Reescreve-os muitas vezes?

MB – Acho que todo artista leva essa dor. A busca da perfeição
é uma dor incurável. Porque a perfeição foge sempre
de quem a procura. Quando o artista pensa que atingiu o
milagre estético, logo vai ver que não atingiu.

RP/MN – Como nasceu o amor pela poesia? A escola teve
algum papel nisso?

MB – Sabemos todos que poesia não se aprende na escola.
Acho que é um dom que se vai mostrando devagar. Outros
acham que poesia não é um dom — é uma disfunção cerebral.
É consequência de um parafuso a mais ou a menos na
cabeça. Porque despraticar as normas é virtude em poesia.

RP/MN – Quais suas principais lembranças do período escolar?
Houve algum professor decisivo para a sua carreira?

MB – Fui aluno interno do Colégio São José do Rio de Janeiro.
Havia lá um padre que ficou meu amigo, me mostrou e
me indicou livros de literatura verdadeira, livros feitos com
aplicação e vontade estética. Descobri meu gosto literário
lendo tais livros.

RP/MN – Que conselhos daria a um professor que lhe perguntasse
como despertar o gosto pela poesia em seus alunos?

MB – Acredito no incentivo à leitura de bons livros. Não sei
dar conselhos. Na minha pequena cidade, havia um personagem
de rua que sempre repetia esta frase: “Quem não
ouve ‘conseio’, ‘conseio’ ouve ele”.

RP/MN – O senhor já afirmou que se aproximou do escritor
Guimarães Rosa como se se aproximasse de um mito. Foi
sua influência literária mais marcante? O senhor conseguiria
selecionar uma frase de Guimarães Rosa que gostaria
de ter escrito?

MB – Eu aprendera antes com Vieira que literatura é linguagem.
Achei esse mistério no Rosa. Ele acrescentou esta frase
na nossa conversa: “Escrever é renascer”. Fiquei com essa
frase na minha vida.

RP/MN – O senhor escreve regularmente todos os dias?
Tem alguma rotina para escrever?

MB – Escrevo, leio, pesquiso palavras das 7 horas até 11 horas.
Pode ser que escreva alguma coisa também.

RP/MN – O grande repositório de sua obra se encontra nas
recordações de infância? Ou o que aconteceu ontem pode
ser objeto de poesia também?

MB – Tudo pode ser objeto de poesia, mas, no meu caso, as
percepções da infância costumam entrar no poema e até
comandar.

RP/MN – O senhor disse ter gostado muito de receber, recentemente,
o Prêmio Nestlé de Literatura “porque, além de
dinheiro, terá uma edição especial que será distribuída para
bibliotecas e escolas em todo o País”. O senhor costuma receber
cartas ou outras manifestações de seus leitores?

MB – Recebi alguns telegramas de amigos me cumprimentando
pelo prêmio. Prezo muito o Prêmio Nestlé porque sei
que a escolha do livro é feita por intelectuais da melhor
qualidade.

RP/MN – O cenário e as pessoas do Pantanal estão muito
presentes na sua obra. Atualmente o senhor reside em
Campo Grande. Ainda mantém contato permanente com o
ambiente pantaneiro ou dele se vale mais por memória? Dá
para imaginar um Manoel de Barros longe do Pantanal?

MB – Não tenho mais frequentado as terras e as águas do
Pantanal. Mas sei que as minhas palavras são nutridas e fertilizadas
pelo chão, pelas águas e pela natureza pantaneira.

RP/MN – Que livros o senhor pretende ler nos próximos
meses?

MB – Tenho lido muito pouco nestes últimos anos. Ando
relendo mais. Já escrevi que o livro mais novo que tenho lido
é o Velho Testamento.

A um poeta
Olavo Bilac

Longe do estéril turbilhão da rua,
beneditino escreve! No aconchego
do claustro, na paciência e no sossego,
trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
do esforço: e a trama viva se construa
de tal modo que a imagem fique nua,
rica, mas sóbria, como um templo grego.
Não se mostre na fábrica o suplício
do mestre. E, natural, o efeito agrade,
sem lembrar os andaimes do edifício.

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
arte pura, inimiga do artifício,
é a força e a graça na simplicidade.

img10

Brincadeiras

No quintal, a gente gostava de brincar com palavras
mais do que de bicicleta.
Principalmente porque ninguém possuía bicicleta.
A gente brincava de palavras descomparadas. Tipo assim:

o céu tem três letras,
o sol tem três letras,
o inseto é maior.
O que parecia um despropósito
para nós não era despropósito.
Porque o inseto tem seis letras, e o sol só tem três,
logo o inseto é maior. (Aqui entrava a lógica?)
Meu irmão, que era estudado, falou: “Que lógica que nada,
isso é um sofisma”. A gente boiou no sofisma.
Ele disse que sofisma é risco n’água. Entendemos tudo.
Depois Cipriano falou:
“Mais alto do que eu, só Deus e os passarinhos”.
A dúvida era saber se Deus também avoava
ou se Ele está em toda parte como a mãe ensinava.
Cipriano era um indiozinho guató que aparecia no
quintal, nosso amigo. Ele obedecia à desordem.
Nisso apareceu meu avô.
Ele estava diferente e até jovial.
Contou-nos que tinha trocado o Ocaso dele por duas andorinhas.
A gente ficou admirado daquela troca.
Mas não chegamos a ver as andorinhas.
Outro dia, a gente destampamos a cabeça de Cipriano.
Lá dentro só tinha árvore, árvore, árvore.
Nenhuma ideia sequer.
Falaram que ele tinha predominâncias vegetais do que platônicas.
Isso era.

Fonte: BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas para
Crianças. Planeta do Brasil, PNBE/2005, Acervo 13.

cubos