Edição 90

Matérias Especiais

O caracol e a concha: o sentido do erro no ato de aprender

Rosangela Nieto de Albuquerque

Certamente, a metáfora do caracol e a concha se encaixa no sentido do erro no ato de aprender. Os caracóis não têm audição e utilizam, especialmente, os sentidos do tato e do olfato, que se situam em todo o corpo, principalmente nas antenas. Assim é o educando, todo o seu corpo, através dos sentidos, está captando sensações, percepções, emoções, enfim, buscando aprendizagem. Os caracóis enxergam pouco, e os olhos estão situados nas pontas das antenas maiores; pode-se então dizer que o educando, ainda em fase de desenvolvimento, “enxerga pouco” e precisa de um condutor para levá-lo pelo caminho seguro e em direção ao sucesso. O caracol anda com a casa às costas, a concha abriga os órgãos e é uma proteção extra contra a desidratação. A concha do caracol tem ainda outra vantagem: protege-o dos predadores, funciona como um bom esconderijo e é dura de partir. A concha (o educador) é a proteção do educando contra os predadores. Percebe-se então a importância do papel do educador, protetor, com a função de dar continuidade à vida; oportunizar aprendizagens, conhecimento de mundo; e desenvolver habilidades e competências. O caracol carrega a concha nas costas (sua casa)… ele necessita dela para viver (para não desidratar), e a concha sem o caracol não tem vida, não tem sentido; assim são o educador e o educando: vivem numa simbiose….

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A escola e o erro

A escola é um espaço de múltiplas aprendizagens. Na pós-modernidade, não há mais espaço para um engessamento nas ações pedagógicas e, portanto, para uma base teórica única. A escola deve caminhar pelo fazer — aprender fazendo —, como o caracol e a concha: professor e aluno seguem para uma descoberta pessoal rumo ao conhecimento, rumo à vida. Aluno e professor, caracol e concha, emergem numa interação, na curiosidade, na criação, na reinvenção, nas descobertas, oportunizando um movimento de aprendizagens, desaprendizagens e reaprendizagens.

A aprendizagem não é somente do aluno, o professor vive aprendendo, e nessa dinâmica é preciso desaprender para aprender a aprender. Chamamos de
deslocar as aprendizagens, isto é, ressignificar as aprendizagens. E isso acontece quando, na práxis educativa, o professor busca analisar e refletir sobre os acertos e erros
dos educandos.

Segundo Ferreira (2007), a escola contemporânea ainda persiste em mecanismos disciplinares, trazendo como principal efeito o aprisionamento do corpo e do pensamento. Portanto, esse paradigma de aprender parado e calado, sem movimento, conforme afirma Foucault (2007), é um modelo de escola que se assemelha à fábrica e à prisão, instituições formadoras de subjetividade; elas funcionam como “instituições de sequestro”, que capturam subjetividades, modelam conforme a fôrma, idêntica para todos. Esse modelo escolar — que trabalha com padrões, que significa mais o erro do que o acerto do educando, que castiga no erro em vez de buscar a reconstrução da aprendizagem, que pune quando o educando erra em vez de educar, que engessa com padrões estabelecidos — certamente estará forjando assujeitação.
O caracol precisa da concha, e a concha não tem sentido sem o caracol.

O que é o erro?

“O erro não é um corpo estranho, uma falha na aprendizagem. Ele é essencial, faz parte do processo” (DEMO, 2001, p. 50).

A compreensão do erro só emerge no contexto da existência de um padrão considerado correto. Sem um padrão, não há como se considerar erro. O que pode existir (e existe) é uma ação insatisfatória, no sentido de que não se atingiu um determinado objetivo. Se não se atingiu o objetivo, há insucesso no resultado, e não erro. A solução insatisfatória de algo só pode ser considerada errada quando se tem uma forma considerada correta de resolvê-la. Em Metodologia da Ciência, há um caminho de se fazer Ciência: o método da tentativa do acerto e do erro. Então, para se produzir conhecimento, trabalha-se com hipóteses que ainda serão testadas e trabalhadas com acerto e erro. Portanto, se atentarmos bem, “o erro” ou desconformidade-padrão é sempre uma relação simbólica para se chegar a um resultado.

Na aprendizagem escolar, pode ocorrer o erro desde que já se tenha o padrão do conhecimento, das soluções, das habilidades a serem aprendidas. Portanto, no momento em que um aluno, numa avaliação, manifesta não ter adquirido determinado conhecimento ou habilidade, através de uma conduta que não condiz com o padrão existente, então se pode dizer que ele errou, isto é, cometeu um erro em relação ao padrão.

Na escola, no processo de aprender, observa-se que o erro permeia um significante e um significado de punição, de castigo. Para Foucault (2007), os mecanismos sociais encontrados em várias instituições (hospitais, prisões e escolas) retratam as vertentes do poder e do castigo. Na ação pedagógica diária e nas avaliações, o educador propõe uma certeza absoluta, uma verdade comum, o que o coloca numa posição de poder, o que gera um novo poder de castigar. Em geral, observa-se que, na avaliação escolar, a escola (os educadores) trabalha com os erros dos alunos, e não com o sentido do erro para se chegar à aprendizagem. É comum ouvir: “O aluno obteve nota 8 porque errou 2 questões” (numa prova com 10 questões e cada uma valendo 1 ponto), e não “[…] porque acertou 8 questões”. Essa postura docente, que existe desde o período do ensino tradicional, certamente perdura até hoje. Foucault (2007) afirma que a escola usa a prática da punição gentil, pois as avaliações são verdadeiras torturas; para ele, na escola, esse ato configura-se como uma tortura pública, usada no século XIX, evidentemente com algumas modificações, uma mutação gradual. É comum a escola usar o teatro do suplício público, até então utilizado nas prisões e condenações, e que hoje cedeu lugar a novas formatações na sociedade moderna. É o que Foucault chama de punição gentil.

O castigo escolar a partir do erro

Outrora, castigava-se fisicamente com régua escolar e com palmatória quando um aluno não sabia a lição. Era comum também colocar o aluno de joelhos sobre grãos, colocá-lo de frente para classe ou até para a parede com braços abertos; portanto, sofrendo “pequenos martírios”.

Não existiam somente essas formas de castigar, havia também algo que transitava entre o físico e o moral, por exemplo: deixar o aluno “em pé”, em sala de aula, enquanto os colegas permaneciam sentados. Esse castigo físico e moral tinha o objetivo da exposição pública do erro. Hoje, essas formas de castigo são raras, mas o castigo não desapareceu da escola. Ele se apresenta de outras formas, que não atingem o corpo físico, mas a personalidade — Bourdieu enfatiza que é uma “violência simbólica”.

Observa-se também a prática da implantação do medo pelos educadores, com propostas de avaliações orais, testes-relâmpago. Assim, a vergonha e o medo de não saber apresentam-se como lição para o aluno que não aprendeu e também de exemplo para os colegas. Assim, essa forma de castigar e deixar o aluno tenso ou com medo de ficar em sala de aula durante o recreio (ou intervalo entre uma aula e outra), suspender o lanche e realizar tarefas extras em sala de aula ou em casa são modalidades que promovem uma ruptura na simbiose, afastam o caracol da concha.

O castigo, que emerge do erro, este que pode ser verdadeiro ou suposto, marca o aluno tanto pelo seu conteúdo quanto pela sua forma. A postura de ameaças empregadas, e com continuidade, garantem a instalação do medo, da ansiedade e da vergonha de modo ininterrupto. Essa sensação permanente tem um preço: desinteresse, falta de atenção, fuga das responsabilidades escolares, questões emocionais e dificuldades de aprendizagem.

O mecanismo didático-pedagógico que a escola usa para trabalhar o erro do educando na prática escolar irá desenvolver e reforçar no educando uma compreensão culposa da vida, pois, além do castigo, algumas vezes ele sofre ainda a autopunição. Claro que nem sempre a escola é a responsável por todo o processo culposo do indivíduo, mas ela reforça esse processo.

O clima de medo, ansiedade e culpa e o castigo que se instala no educando a partir do erro são fatores que impedem a escola e a sala de aula de serem ambientes de satisfação, de alegria, interesse e espaço de vida feliz. Assim, as crianças se desinteressam e se enfastiam desse espaço de descobertas, de conhecimento, de prazer e de vida.

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O erro como reconstrução do conhecimento no processo ensino-aprendizagem

O erro tem grande importância e pode se transformar em suporte para o conhecimento. Para se compreender o significado do erro, é preciso definir claramente o que se busca aprender, qual é o conteúdo formal e qual a sua aplicação na vida diária. Assim, esse momento é fundamental, pois irá levar o aluno a construir funções cognitivas que permitam pensar e atuar sobre sua realidade, desenvolvendo o pensar, o agir, traçar caminhos de hipóteses, e oportunizará a formação de atitudes e valores para as condutas individual e social.

No processo de construção do conhecimento, se a criança erra, o professor pode perceber a estrutura do pensamento em relação ao problema, os esquemas cognitivos do saber fazer e se o erro não se refere à construção do conhecimento, mas à falta de aprimoramento do conhecimento. É possível analisar se o erro pode ser classificado como erro construtivo, isto é, erro de sistematização do código escrito, de distração e até mesmo por falta de atenção. É também importante analisar se a criança erra porque a estrutura do pensamento ainda está no estágio de compreensão do problema, de selecionar procedimentos, ou se a criança não dispõe de todos os esquemas estruturais. O erro deve ser considerado fonte de aprendizagem, pois, assim, oportunizará caminhos de descobertas e desafios que estimularão o prazer de aprender, de saber.

Neste contexto, o erro não pode ser desprezado, pois é um retrato da construção do conhecimento e revela o que o aluno já conquistou. O professor tem a missão de utilizar o erro como instrumento no sentido de construir o conhecimento.

mulher-apontandoO papel da concha (educador) frente ao erro do caracol (educando)

“[…] todos tenham direito de errar para evoluir. Ninguém aprende sem errar. Errando, reflete-se mais sobre o problema e sobre as ações usadas para resolvê-lo” (PERRENOUD, 2009).

Certamente, busca-se que todos os educandos tenham oportunidade de crescer no que se refere à educação, no entanto, o educador precisa conquistá-lo, investir em cada momento em sala de aula. A interferência do educador frente a um erro da criança no processo ensino-aprendizagem denota uma práxis pedagógica com um outro olhar, um outro sentido… através do tato… do sentir… das emoções… com uma perfeita simbiose… como o caracol e a concha…

A tarefa de educar não é nada fácil e vem alicerçada em vários fatores. A autoestima é o combustível principal no espaço escolar; o educando que aprende cheio de motivação, com certeza, terá um desenvolvimento educacional de sucesso.

É muito importante como o professor trabalha frente ao erro do educando, a sua práxis educativa irá direcionar o futuro da criança; se optar por uma atitude menos afetiva, poderá produzir uma baixa autoestima no educando, desinteresse e até transtornos emocionais; mas, se o educador optar por uma postura pedagógica de mediador na construção do conhecimento, se ensina a criticidade, a arte de pensar e de refletir, irá desenvolver habilidades e competências e, assim, terá cumprido sua missão. Uma oportunidade de desenvolver competências é através da reflexão do erro, o porquê daquela construção, como o aluno pensou, como ele construiu aquela resposta, o resultado. Infelizmente, ainda hoje, alguns educadores usam o erro do educando como meio de reprovação e de atrofia; ainda se tem uma educação massificadora que não promove crescimento.

Considerações finais

Na prática escolar, em geral, o erro tem sido uma prova do fracasso ou da incapacidade do aluno. No entanto, o professor deve usá-lo como ponto de partida para a aprendizagem, e, para isso, é preciso estar preparado e conhecer os erros ligados ao saber, ao uso de princípios e regras, às informações, às capacidades — erros de raciocínio — e aqueles ligados ao saber/fazer.

Há professores que consideram o erro um reflexo do pensamento da criança. Certamente, seu papel não é o de corrigir a resposta, mas de descobrir como foi que a criança cometeu o erro.

O erro e o acerto não acontecem somente com quem sabe, mas são caminhos necessários ao conhecimento. O erro em algumas propostas pedagógicas não pode ser sinônimo de fracasso, com mecanismos de castigo, mas como um instrumento riquíssimo no processo de estruturação do pensamento do aluno, dos esquemas cognitivos e de desenvolvimento. Portanto, a postura do professor diante do erro deve ser de transformá-lo em situação de aprendizagem e de reconstrução do conhecimento.

É importante ter uma relação como a do caracol e da concha: educador e educando em situações de construção, com o mesmo objetivo. As correções necessárias no processo de aprendizagem devem conter significado; usar o erro como virtude é uma conduta que oportunizará o desenvolvimento da aprendizagem.

Rosangela Nieto de Albuquerque é Ph.D. em Educação, pós-doutoranda em Psicologia Social, doutoranda em Psicologia Social, Mestra em Ciências da Linguagem, professora universitária de cursos de graduação e pós-graduação, coordenadora de cursos de pós-graduação em Educação, psicopedagoga clínica e institucional, analista em Gestão Educacional, pedagoga. Autora de projetos em Educação, autora da implantação de uma clínica-escola de Psicopedagogia como projeto social. Autora de três livros: Neuropedagogia e Psicopatologias, Psicoeducação e Neuropsicologia.

E-mail: rosangela.nieto@gmail.com

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