Edição 56

Matérias Especiais

O catador de histórias

João Valadares

img-1711-01Amigo mesmo ele só tem um rádio, desses velhos. Passa horas grudado no bicho de pilha. O único carinho que se permite é o chiado da informação no pé do ouvido. É vontade gigante de saber do mundo, com todos os detalhes. José João da Silva, 56 anos, é este senhor envergonhado da foto acima. Vive depositado dentro de um quarto minúsculo, na Vila dos Pobres, em Limoeiro, Agreste de Pernambuco. Solidão é pouco para explicá-lo. Virou João Gordinho nas esquinas do Agreste, catando livros no lixo. Morador de rua, sempre tinha dois sacos de histórias nas costas para contar. Era essa a sua profissão. Quando esgotava as histórias numa cidade, quando todas as pessoas já sabiam o final ou as crianças antecipavam o momento exato em que a princesa seria roubada das mãos do mocinho, partia para outro lugar. Comia o que davam e dormia em qualquer canto. E foi assim, reunindo tudo que é tipo de gente para espalhar pelas ruas os contos literários jogados fora por alguém, que ganhou fama. Do nada, deu um bicudo na vida e sumiu há mais de vinte anos. Desapareceu sem nem avisar. Para todos, já estava morto.

Vez por outra, as rádios do interior lembravam de João Gordinho. “Era a pergunta mais frequente. Cadê o nosso João? Tá morto? E todo mundo tinha certeza disso”, lembra o professor José Célio Gomes de Souza, morador de Bom Jardim, no Agreste de Pernambuco. Foi a mulher dele, Rosângela Lira, que, há dois meses, durante visita a um abrigo coordenado pela Conferência Vicentina, reconheceu o rosto mais famoso de sua infância. “Lembro bem quando eu tinha 12 anos. Todo mundo parava para escutar as histórias do homem do saco aqui em Bom Jardim. Cheguei junto dele e perguntei se ele era o João. Ele emendou um João Gordinho, Cheirosinho, Bonitinho e por aí vai. Era como ele se apresentava para as crianças.” Os incontáveis diminutivos são o seu sobrenome oficial. Diz todos numa rapidez que arranca risos de qualquer um.

A história de João parece aqueles sonhos que misturam tudo e, no fim, ninguém entende nada. Não faz o menor sentido. Aos 14 anos, saiu do sítio Campos do Borba, onde morava com a mãe, na zona rural de João Alfredo, e foi andando até a cidade. “Encontrei uma televisão e fiquei impressionado com aqueles homens dançando dentro daquela caixa. Fiquei olhando durante horas.” E não voltou mais. Resolveu continuar andando e descobriu a paixão pelos livros. Virou artista de rua. Aprendeu a usar o nariz como instrumento musical. Toca, até hoje, clássicos da jovem guarda. Sabe decorado todas as músicas de Teixeirinha, Leo Canhoto, Reginaldo Rossi, Trio Nordestino e Luiz Gonzaga.

A memória dele impressiona. Diz de um fôlego só todas as 67 cidades que conheceu. É engraçado. “Vitória, Carpina, Caruaru, Casinhas.” Repete todas elas na mesma ordem, quantas vezes for necessário. É capaz de dizer todas as imagens das cédulas, também sem nem respirar, desde quando a moeda brasileira era o cruzeiro. “A de 2 cruzeiros é Duque de Caxias; 5 é Barão de Rio Branco; 10 era Getúlio Vargas; 20, Marechal Deodoro; 50, Princesa Isabel; 500, Dom João VI; 10 mil, Santos-Dumont.” E continua até os dias de hoje. Nunca tocou num computador, mas, pelas leituras, sabe todos os perigos da Internet. Fala como um técnico experiente em proteção de redes de informação.

Ele vive no abrigo há cinco anos. Não sabe ao certo como parou lá. Durante mais de uma hora de conversa, é possível perceber que João está engasgado com alguma coisa. Após várias pausas, revela que todos os seus livros, acumulados durante anos, foram jogados fora.

“Elas jogaram fora porque disseram que acumulava barata. Foi como se tivessem jogado uma parte minha fora. Não deixaram nem eu escolher alguns livros e revistas. Me mataram um pouco.” João precisa dos livros para viver.

Não consegue mais andar direito. O diabetes engoliu seu pé esquerdo. Também não tem um dos dedos da mão esquerda. “É ruim porque não posso mais fazer o que gosto. Vivo aqui.” Numa gaveta, ele guarda alguns livros e algumas revistas. “Só sobrou isso.” Do gesto mais brutal que presenciou, restaram apenas livros didáticos de História, Geografia e Matemática. Agora, passa o tempo lendo a Bíblia e fazendo dobraduras em papel. Sua especialidade é a televisão. “Com tubo de imagem e tudo.”

A volta

No dia 26 de setembro, José Célio e Rosângela Lira fizeram o caminho de volta. Levaram João Gordinho até Bom Jardim. A cidade parou. A igreja ficou lotada. “Muita gente não acreditava que ele estava vivo. Foi uma comoção”, contou o professor. Hoje, João diz que queria voltar no tempo. “Ele reclama. Queria apenas alguém para ouvir suas histórias.” Ele mesmo se diverte. As pessoas não têm mais paciência.

Em Bom Jardim, José Célio trabalha para consolidar um projeto nas escolas. A ideia é fazer de João um contador de histórias para crianças de várias séries de ensino. “Temos que resgatá-lo daquele abrigo. Queremos trazer João de volta. Precisamos de ajuda. Estamos procurando uma casa para alugar. Ele precisa ficar aqui perto. João é querido por todos, um patrimônio da nossa cidade. Não pode ficar trancado num quarto, sem conviver com ninguém.” Nadiia Gerbish

 

Fonte: Jornal do Commercio. Recife, 24 de outubro de 2010.

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