Edição 110

Professor Construir

O compromisso da família no ato de educar

Rosangela Nieto de Albuquerque

“Viu, setiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34)

 

A Campanha da Fraternidade de 2020 traz a possibilidade de discussão sobre o compromisso em várias áreas, como migrações, mobilidade urbana, sentido e valorização da vida, aborto, tabaco (câncer de pulmão), acidentes de trabalho, educação, trânsito, família, transtorno no espectro do autismo e saúde comunitária, entre outras, tendo em vista a generalização da proposta. O lema escolhido nos remete a “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34), que reforça a dimensão do cuidado. Neste contexto, é importante definir melhor qual o recorte e aprofundá-lo; a CNBB lembrou ser necessário delimitar as perspectivas pessoal, comunitária e social para que não se perca de vista a construção da fraternidade, o objetivo principal da Campanha.

A família no contexto contemporâneo

Os estudos sobre família enfatizam, na literatura contemporânea, que o termo família permeia um sistema vivo, que significa um conjunto de pessoas que estabelecem relações entre si, cada um com seus atributos (qualidades, defeitos, personalidade), e é através dessas relações que esse sistema se mantém integrado. Pode-se dizer,ainda, que é um sistema aberto e em transformação, uma vez que continuamente faz trocas com o meio extrafamiliar, apresentando capacidade de se adaptar às diferentes necessidades dos seus próprios estágios de desenvolvimento no decorrer de seu ciclo vital. Segundo Terkesen et al., (apud BOSSA, 1994, p. 85),

[…] a família é um pequeno grupo social composto por indivíduos relacionados uns aos outros em razão de fortes lealdades e afetos recíprocos, ocupando um lar ou conjunto de lares que persiste por anos e décadas. Entra-se na família através do nascimento, da adoção ou do casamento e deixa-se de fazer parte dela apenas pela morte.

Como finalidade principal, a família tem de oferecer um ambiente que permita a satisfação das necessidades, quer sejam elas de sobrevivência (segurança física, alimentação e moradia) e/ou relacionadas ao desenvolvimento cognitivo e emocional (senso de valor, aceitação e ligação afetiva permanente). Ambas as necessidades constituem o objetivo das finalidades básicas da família, que têm caráter variável decorrente da sociedade da qual faz parte.

“Entra-se na família através do nascimento, da adoção ou do casamento e deixa-se de fazer parte dela apenas pela morte.”

Para Bauman (2001), na sociedade contemporânea emergem o individualismo, a fluidez e a efemeridade das relações. “Vivemos em tempos líquidos. Nada foi feito para durar.” A modernidade imediata é “líquida” e “veloz”, mais dinâmica que a modernidade “sólida” que suplantou. A passagem de uma a outra acarretou profundas mudanças em todos os aspectos da vida humana. A modernidade líquida seria “um mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível”. Assim, as famílias elaboram/constroem outro paradigma na contemporaneidade, o que produz uma confusão nos papéis e compromissos de cada sujeito.18

Certamente, há famílias “saudáveis”, nas quais as relações entre seus membros se caracterizam pela preponderância de sentimentos positivos (amor, carinho e lealdade), e famílias “não saudáveis”, nas quais os sentimentos que dominam são inversos (ódio, culpa, vingança). Nos dois tipos, os vínculos são intensos e atingem totalmente a vida da família.

Outro aspecto a ser considerado é que a família é parte de um sistema social que a molda, fazendo com que assuma também uma função psicossocial, com a qual os membros precisam de suporte, pois estão em transição; esse suporte funciona como um molde para o processo de socialização da criança, por meio da transmissão, pela família, dos valores da sociedade de que faz parte. Vale ressaltar que o conceito, a estrutura e a função da família sofrem mudanças relacionadas ao surgimento de novas realidades econômicas, sociais e maneiras de pensar. Neste momento, pensamos no compromisso das famílias em educar essa criança para um futuro que também exigirá valores…

Certamente, a “função de suporte” da qual estamos falando, que abarca aspectos físicos, afetivos e sociais, no que diz respeito à criança, representa possibilitar-lhe desenvolver um “sentido de identidade” constituído por dois elementos: a ideia e a vivência de pertença (que lhe oferece o sentimento de fazer parte de um todo, que lhe dá um nome, garante-lhe proteção e amparo) e a noção de individuação (alguém que existe separado do todo, que interage com vários outros subsistemas familiares — avós, tios — e com inúmeros grupos externos à família). Primeiramente, é importante enfatizar a necessidade de quebra do paradigma da “família perfeita ou ideal”, na qual não existam conflitos de nenhuma ordem. Esta é uma idealização do conceito de normalidade desse sistema, que, como vimos, desempenha tarefas também de grande complexidade. O que se deseja é que a família tenha compromisso e responsabilidade no desenvolvimento da criança… é o cuidar…

Mediante essa impossibilidade de ausência de problemas, permeados pelo que é normal ou patológico, é mais indicado que utilizemos o referencial de funcionalidade, que certamente tem caráter dinâmico e deve ser entendido como processo no qual existam variações entre a plenitude e a total disfuncionalidade. Isto é, famílias que promovam o crescimento de seus membros são “famílias funcionais”, ao passo que aquelas que bloqueiam tal crescimento são “famílias disfuncionais”, diz Macedo (apud BOSSA, 1996).

Nesse contexto, para refletir sobre família é importante observar alguns aspectos da estrutura e do funcionamento familiar, tais como:

“famílias que promovam o crescimento de seus membros são “famílias funcionais”, ao passo que aquelas que bloqueiam tal crescimento são “famílias disfuncionais”.”

• Regras – É importante estar atento ao fato de como a família lida com tais regras, ou seja, se são colocadas explicitamente ou se são tratadas de forma velada, implícita. É importante ressaltar o ato de regulação e expressão da hierarquia na família. A questão do poder governa as relações (dentro e fora da família) e define a organização da família, se existem diferenças de poder entre pais e filhos e se há uma igualdade na distribuição da autoridade entre os pais. Compreende-se que essas regras são baseadas em crenças/valores adquiridos por uma boa parcela da família de origem das figuras parentais e permeiam as relações do dia a dia, sendo condicionantes das expectativas recíprocas dos indivíduos que formam o sistema familiar, uma vez que são originárias da concepção e representação do mundo social que o constitui.

Certamente, essa rede complexa está atrelada à capacidade de mudança dos sujeitos da família. Estes são possibilitados a mudar a partir de um princípio de estabilidade, responsável pelo limite e pelas flutuações do comportamento, que, quando extrapolado, gera situações de estresse ou crises.

• Subsistemas – A aprendizagem do desempenho dos papéis ou das funções de cada um acontece nos subsistemas, que são organizados por questões de idade, gênero. Os membros de cada família (sistema) fazem parte de subsistemas que possuem certo grau de poder, e as relações estabelecidas por estes membros são variáveis em função “da própria complementaridade que seu papel exige em cada situação”.

Fronteiras – Além de possuir a função de permitir que os membros da família se diferenciem, as fronteiras estabelecem os limites que servem para conduzir as relações que são estabelecidas entre os subsistemas.

A flexibilidade ou permeabilidade e a função de existência das fronteiras determinam uma gradação variável que passa da característica rígida à tênue ou mesmo inexistente. Como exemplo de famílias com fronteiras rígidas estão aquelas em que a comunicação é autoritária; e a hierarquia, fortemente estabelecida. Já nas famílias que não possuem vínculos de solidariedade mútua, as relações se mostram frouxas, nas quais cabe o dito popular “Cada um por si […]” e que são exemplos de fronteiras tênues.

Quando existem equilíbrio e clareza no estabelecimento das fronteiras, é oportunizado aos elementos da família um desenvolvimento adequado, favorecendo-os a estabelecer uma relação satisfatória com o meio e com os outros, seus familiares.

• Ciclo vital – Como um sistema vivo, a família possui uma história evolutiva que caracteriza seus aspectos funcionais nas etapas de desenvolvimento durante as suas gerações.

Segundo Macedo (ibid BOSSA, 1996), a importância de entender a família em seu processo evolutivo é de possibilitar “[…] apreender a estrutura específica da família em cada fase desse ciclo, com as funções que são esperadas dela para que se cumpra sua tarefa básica na sociedade, bem como sua flexibilidade para mudar a cada fase”.

Como exemplo de formação de subsistemas, temos o nascimento do primeiro filho de um casal, que exige mudanças de papéis (filhos para pais) e requer uma reorganização familiar para que seja permitida a entrada desse novo membro da família. Outros exemplos são: entrada de filhos na adolescência, casamento dos filhos e, consequente, entrada de noras/genros, morte de pais/avós.

“[…] apreender a estrutura específica da família em cada fase desse ciclo, com as funções que são esperadas dela para que se cumpra sua tarefa básica na sociedade, bem como sua flexibilidade para mudar a cada fase.”

Considerações finais

As exigências do capitalismo e os avanços tecnológicos, já bastante abordados em qualquer literatura que trate de educação, exerceram grande influência na organização (ou desorganização) da família. As transformações causadas por tais fatores atingiram os pontos mais profundos do contexto familiar, inclusive quanto à identidade do mesmo. Como não poderia deixar de ser, a questão educacional também foi alcançada. Hoje, é comum e verdadeira a constatação de que foi atribuída a sistemas externos à família (escola, grupos sociais, instâncias judiciais) a tarefa de educar, portanto é fundamental que a família reconheça o compromisso com o ato de educar.

A f21amília contemporânea vivencia novas demandas, não só a de preparar os filhos para serem capazes de enfrentar as solicitações da vida moderna/globalizada, que requer profissionais a cada dia com mais habilidades em desenvolver as atividades produtivas e competência para o mercado de trabalho, como também a de desempenhar a função socializadora, uma vez que as atividades em grupos ou paritárias estão cada vez mais escassas. A garantia de um “futuro melhor” assume, atualmente, uma posição elevadíssima para a vida familiar e ocupa um espaço gradativamente maior em tal contexto. Assim, cada vez mais há uma enorme ansiedade dos pais em formar filhos competentes.

É importante lembrar que um fato incontestável é o de que toda família “deseja” que seus filhos estudem e, assim, tenham sucesso. Logo, o sucesso da criança está relacionado ao compromisso dos pais.

Como sistema vivo e aberto, a família necessita receber, tanto de outros sistemas sociais como dos seus membros, reconhecimento e validação de sua estrutura e funcionalidade. A proposta da Campanha da Fraternidade emerge neste sentido, de efetivar a responsabilidade e o compromisso com a vida; à família, cabe orientar, educar e cuidar… para que as crianças tenham um futuro saudável e feliz. Certamente, “FRATERNIDADE É VIDA: DOM E COMPROMISSO”.

 

Rosangela Nieto de Albuquerque é ph.D. em Educação (Untref), pós-doutoranda em Psicologia (Universidad John F. Kennedy), Doutora em Psicologia Social (Universidad John F. Kennedy), Mestre em Ciências da Linguagem, psicopedagoga clínica e institucional, pedagoga, licenciada em Letras (Português/Espanhol), consultora ad hoc do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), professora dos cursos de graduação e pós-graduação (Mestrado e Doutorado), autora e organizadora de doze livros.

E-mail: rosangela.nieto@gmail.com

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. São Paulo: Zahar, 2001.

BOSSA, N. A. A psicopedagogia no Brasil: contribuições a partir da prática. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994.

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