Edição 108

Profissionalismo

O espaço sala de aula: a interface educação e psicanálise

Ednaldo Ferreira de Amorim

A sala de aula é palco de fenômenos que se intensificam a cada dia das duas recentes décadas em que se instalou a pós-modernidade. Incontáveis e surpreendentes acontecimentos incidem significativamente sobre o sujeito da educação, o que resulta expectativas não satisfeitas e desânimo para continuar nesse convívio. Todavia, ainda bem, não é suficiente essa frustração para anular a esperança do professor e do aluno que despertaram para a imperativa necessidade de continuar, de aprender, de buscar e laborar em favor de soluções para si, para a família, demais organizações sociais, sociedade como um todo, enfim.

Estamos em meio a um período histórico-social que impõe o predomínio do instantâneo. A ausência de fronteiras faz parecer diminuído o tamanho do mundo, em função da evolução tecnológica que une virtual e físico, que confunde as pessoas, em dias cada vez mais ocupados por aqueles que integram, sobremaneira, a população economicamente ativa. O que leva ao paradoxo: “A velocidade acelera o que se faz versus A velocidade não deixa tempo para realizar o que deve ser feito”. Cadê o tempo que sobraria? Foi ocupado por mais tarefas? Tanta tecnologia ainda não proporciona a desaceleração humana, que poderia ser obtida com a agilidade inerente a seu avanço.

A realidade dessa aceleração, em parte inconsciente, impacta no mundo da educação, especialmente na relação professor-aluno, professor-professor, aluno-aluno. Todos, aparentemente, sendo engolidos pela correria peculiar do “pós-quase-tudo” — pós-industrial, pós-urbano, pós-capitalismo, dentre tantos outros possíveis “pós”. A sensação é de que não se vive o momento, que o futuro é daqui a pouco. E não chega nunca. E o presente virou passado sem ter sido vivido como poderia. Acredito que nunca fora tão vital o papel do professor em sua relação com o aluno. Ambos mergulhados na pós-modernidade.

O professor e o descompasso na educação

Ao dizer de minha crença sobre o papel vital do professor em sua relação com o aluno, externo a necessidade que sinto de conhecer mais e melhor esse professor. Quem é esse educador? Inclusive a mim mesmo! Seguir em expedição exploradora de si, o que leva a autodescobertas e autoconhecimento.35

Consequentemente, a aprendizagem é atingida, a permanência na sala de aula em todos os níveis de ensino passa a ser objeto de especial atenção. A manutenção da inclusão — de fato — na própria instituição em que se encontra matriculado está sob alerta. Sobre esse pensar amplo da realidade escolar, a ótica da psicanálise contribui. Apresentada, ainda que sutilmente, neste artigo, parte de uma sequência de textos interligados à problemática do sujeito da educação e à metodologia do ensino.

Ao longo de quase duas décadas dedicadas à dinâmica desse maravilhoso ambiente de descobertas e autodescobertas, de provocações ao pensar e construção de conhecimentos, em um determinado momento não suportei mais conviver com o que entendo por descompasso entre o que é ensinado e o que é aprendido, entre o que é proposto e o que, de fato, é entregue. Senti a necessidade do socorro de um olhar que contemple aspectos subjetivos, além dos objetivos observados nos fenômenos.

Esse incomodo cresceu e levou-me, ao longo de dois anos, a observar, sistematicamente, sem interferir nos acontecimentos, situações preocupantes, relativas ao nível de aprendizado real e útil em que se encontrariam egressos contemplados com os programas das disciplinas ministradas por mim, nesse período, em uma instituição de Ensino Superior particular sediada no Recife.

No estudo em questão, ouvi centenas de alunos e dezenas de professores a respeito da aprendizagem em sala de aula, metodologias aplicadas, suas expectativas, frustrações e satisfações, além da importância do afeto nas relações entre professores e alunos.

Aspectos interessantes e posicionamentos intrigantes presentes nos discursos circulantes de discentes e de docentes convergiram para a construção de minha tese de doutoramento — O sujeito da educação sob a ótica da psicanálise: para além da metodologia do ensino, dando base à hipótese construída sobre a premissa de que a psicanálise contribui para o conhecimento de peculiaridades do sujeito que aprende. O aspecto afeto ocupou especial espaço quando apresentado aos pesquisados ou mesmo citado espontaneamente em suas falas.

Constatou-se, então, o descompasso entre o que é ensinado, a forma como o é, as expectativas do aluno e do professor, os objetivos e os resultados obtidos durante o processo ensino-aprendizagem e a construção do conhecimento. O fruto desse desencontro é revelado, inclusive, quando de demandas do mercado empregador e da aplicabilidade do saber, desenhando-se o desalinhamento entre a necessidade social e a entrega do produto ao egresso da educação, principalmente evidenciado quando este conclui o Ensino Superior, após ter acumulado deficiências desde o Fundamental II, passando pelo Ensino Médio.

O sentimento de angústia acentuou-se na observação de cenas em que professores e alunos parecem não se entender. Camargo (2006), em Educação: uma questão metodológica?, influenciou-me ainda mais, fortalecendo o sentimento e a crença de caminhar no sentido certo, enquanto educador que busca se autoconhecer e se permite ser conhecido pelo outro.

Desde a Antiguidade, a educação é vista como um problema com o qual o Homem se confronta na transmissão de seus valores. Os gregos já buscavam, no esforço do indivíduo e da comunidade, o conhecimento de si mesmo e do mundo. Ideal de princípio formativo a ser perseguido.

34A educação era a consciência dos princípios que regiam corpos e espíritos. Segundo Jaeger (1995), tratava-se de um processo de construção consciente. A moral, a ética, o pensamento, a noção de indivíduo e sociedade nasceram no âmago das questões filosóficas, ao passo que as concepções de ser natural e orgânico foram representadas através da arte e da literatura. A educação transmitindo para o âmbito social o aspecto individual humano.

Lembro educadores gregos da Antiguidade que marcaram o lugar do Homem na sociedade e situaram, no conhecimento, a força geradora do ideal. Esse conhecimento explicitava-se através de pensamentos, da fala e de um estilo próprio que regia o pensamento e a vida. O antropocentrismo fazendo da educação uma ação voltada para a construção do Homem e do Estado ideal.

A relação mestre-aluno desenvolvida entre Aristóteles e Alexandre, no século IV a.C., tomada aqui por exemplo, contribui ao pensar sobre algumas questões relativas ao educável, ao ineducável e à transferência amorosa de um saber. Uma passagem chega a me emocionar e até por isso a compartilho: o filósofo-educador via fracassar seus esforços com o aprendiz-imperador Alexandre da Macedônia, que se mostrara, desde cedo, ineducável, tomado por “paixões ancestrais”, entendidas por Aristóteles como passividades. Mesmo assim, “o Grande” se mostrava desejoso de viver e de aprender.

Quantos de nós, professores, mestres, educadores — como sejamos chamados —, experimentamos o desafio, quase que diariamente, de lidar com o educável, com o ineducável, bem como com a possibilidade da transferência amorosa de um saber?

O principal papel do professor sob a ótica da psicanálise

Para Freud, o campo estabelecido entre o professor e o aluno se dá na transferência e nos conteúdos ministrados. Com a manifestação do inconsciente, pode, o professor, tornar-se a figura a quem serão endereçados os interesses do aluno. Experiências vividas primitivamente com os pais são transferidas, entendendo, o professor, que a pretensa rebeldia tem sua significativa importância para o futuro desenvolvimento intelectual do aluno e que o ensinado e a subjetividade de cada um, integrados, possibilitam o pensamento renovado, a criação e a construção de novos conhecimentos.

e um professor souber aceitar sua morte enquanto mestre pelo aluno para que este se torne mestre de si mesmo, estará contribuindo para uma relação de aprendizagem autêntica. Estaria aí o seu principal papel, na perspectiva educacional. Assim, o papel do professor, para Freud, dentro da perspectiva psicanalítica, é o de aceitar e mostrar que existem outros saberes além dos já conhecidos. Nem educador nem aluno têm as verdades absolutas, e sempre haverá possibilidades de novos arranjos dos dados da realidade.

Jung, por sua vez, entende que o papel do professor vai além da transmissão de conteúdo. O que se trabalha com os alunos é muito mais importante que o método. Deve, o professor, exercer a capacidade de educar pelo exemplo. “Sua tarefa não consiste apenas em meter na cabeça das crianças certa quantidade de ensinamentos, mas também em influir sobre as crianças, em favor de sua personalidade total…” (Jung, 1981, p. 59).

A interface psicanálise-educação foi inaugurada por Freud e alguns colaboradores, como Ferenczi, Pfister, Bovet e Zulliger (Cerezer, 2005). Na visão de Pfister, seu grande amigo, uma pedagogia psicanalítica poderia descobrir nas crianças aquilo que as inibia e prejudicava vindo de seu psiquismo inconsciente. Isso remete à ideia de que “[…] o educador deve funcionar como analista, ao mesmo tempo que deve se lembrar de que persegue um fim moral” (Kupfer, 2000, p. 67).

Ao mesmo tempo que é prazeroso, o processo de formação é doloroso e evidencia a angústia vivida por professores e alunos. É preciso estar disponível ao inesperado e ao desconhecido para atuar em meio às diferenças e aos conflitos inerentes às relações humanas. Para o mestre apaixonado, mais importante que buscar seguidores é encontrar curiosos e caçadores de novos significados.

Considerações finais

Costumo dizer que os encontros na sala de aula são pretextos para amar; e o conteúdo, uma desculpa para aproximar pessoas, a partir de um suposto interesse identificado, considerando-se o cotidiano e as aspirações de aplicabilidade do que virá a ser aprendido. Um saber pode explicar sobre um determinado aspecto do conhecimento, mas não sobre ele todo. Compreende-se, pois, que a metodologia do ensino deva ser coerente na articulação de objetivos, nos procedimentos e nos instrumentos para essa construção.

A sala de aula é um local de ritualizações e possui uma dimensão antropológica, cultural e psicológica. Lugar de trocas simbólicas que mobilizam processos psíquicos, que se situam na origem do desenvolvimento cognitivo e afetivo humano.36

A possível interface psicanálise-educação nesse espaço alerta para a importância de o professor desenvolver, além das técnicas, competências diversas — intuitiva, relacional, reflexiva, dentre outras. É preciso ser capaz de envolver os alunos para que possam se interessar pela aprendizagem. Entretanto, curiosidade, ilusão e descobrimento fazem parte do encantamento que é o aprender. Nem todos encontram-se mobilizados em si para vivenciar isso. Por mais que se esforcem, há limites que vão além do “mínimo esforço”. É essencial a motivação e as condições para emergir toda a potencialidade.

A moderna neurociência confirma que tudo o que é registrado no cérebro recebe uma valência negativa ou positiva. Surge um conjunto ordenado de sentimentos secundários, todas as emoções que nos são familiares, desde a alegria e a raiva até o medo e a frustração. A experiência dolorosa não representa o fracasso, entretanto somos compelidos a acertar sempre, principalmente em uma sociedade que valoriza a competitividade. O que a educação pode fazer é ajudar a corrigir o fluxo que impede ou dificulta o aprendizado.

Ednaldo Ferreira de Amorim é Doutor em Psicanálise Aplicada à Educação e Saúde, especialista em Administração com ênfase em Marketing, bacharel em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas, docente em graduação e pós-graduação, presidente da Comissão Própria de Avaliação da Faculdade Nova Roma, personal coach e palestrante sobre comportamento humano e organizacional. Tem larga vivência no varejo de bens e serviços e certificado em Metodologia do Ensino Superior pela Fundação Getulio Vargas (FGV).

Referências

BAUMAN, Z. Modernity and the holocaust. Oxford: Polity, 1989.

CAMARGO, A. C. C. S. Educar: uma questão metodológica? Proposições psicanalíticas sobre o ensinar e o aprender. Petrópolis: Vozes, 2006. 141 p. (Coleção Psicanálise e Educação).

CEREZER, C. Escuta do mal-estar na sala de aula – um ensaio sobre psicanálise e educação na atualidade. In: OUTEIRAL, J.; CEREZER, C. O mal-estar na escola. Rio de Janeiro: Revinter, 2005. p. 57-64.

FREUD, S. (1893-1895). Estudos sobre a histeria: casos clínicos – Caso 3: Miss Lucy R., 30 anos. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. II). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis: Vozes, 1981.

KUPFER, Maria Cristina. Educação para o futuro. São Paulo: Escuta, 2000.

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