Edição 11

Matérias Especiais

O jeito de cuidar de Leonardo Boff

Leonardo Boff é conhecido mundialmente por seu trabalho, além de ser autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística.
Em seus livros A Ética da Vida e Saber Cuidar, ele trata assuntos como a sobrevivência do planeta Terra e do próprio homem, da importância do cuidado na nossa vida, das diversas ecologias.
Mesmo com a agenda lotada, nos concedeu a seguinte entrevista:

Construir Notícias – Em seus livros a ética está muito presente. Como define a “ética”.  Por que ela é tão necessária e importante atualmente?

Leonardo Boff – A ética surge quando o outro emerge diante de nós. Que atitude tomar diante do outro? Não podemos ficar indiferentes. Mesmo o silêncio é uma atitude. Podemos acolher o outro, podemos rejeitá-lo, subordiná-lo e até agredi-lo e eliminá-lo. Essas atitudes configuram a ética. Ela será benfazeja quando faz do distante um próximo e do próximo um aliado e um irmão e irmã. Nesta perspectiva, bom é tudo aquilo que aproxima as pessoas ou que corresponde de forma benfazeja às realidades circunstantes; bom é tudo o que cuida e expande a vida em todas as suas formas; mau é tudo o que ameaça, diminui e destrói a vida. A regra de ouro da ética quando confrontada com o outro é: “faça ao outro o que você quer que lhe façam a você”.Hoje pesa sobre a humanidade e o sistema da vida o pesadelo da depredação e até da destruição da vida e do projeto planetário humano. Somos todos vítimas de práticas  que exploram pessoas, classes, paises, ecossistemas e o sistema Terra. São éticas anti-vida. Em razão disso, faz-se urgente uma ética salvadora e benfazeja que garanta a vida e o futuro do Planeta. Sem ética e uma cultura de valores espirituais que a acompanham não afastaremos o pesadelo e o encontro com o pior. Precisamos de uma ética mínima fundada do cuidado de uns para com os outros, com a vida e o Planeta, uma ética da cooperação e da solidariedade de todos com todos pois somos interdependentes e só podemos viver e sobreviver juntos, uma ética da responsabilidade que toma consciência das conseqüências benéficas ou maléficas de nossas práticas e uma ética da compaixão que se mostra sensível para quem menos tem e menos é, para que não se sinta excluído mas inserido na comunidade de vida.

CN – A ética é um dos temas transversais da educação. Como os professores podem e devem vivenciá-la em suas salas de aula, escolas e famílias? Quais os benefícios e conseqüências trazidos por uma convivência fundamentada na ética?

LB – O primeiro passo consiste em despertar nos educandos a dimensão ética, respondendo à pergunta básica: como você trata seus pais, irmãos, amigos, colegas, o pobre que encontra na rua, o bichinho que atravessa a estrada, a planta que temos em casa? Como me trato a mim mesmo (eu sou o outro diante de mim mesmo), sou veraz, transparente? Como vejo atitudes éticas e anti-éticas nas novelas, na propagada, nos programas de televisão? Aqui se trata de desenvolver o espírito crítico. Em seguida, lembrar a regra de ouro: o que você gostaria que fizessem a você? Elencar as coisas e atitudes que você gostaria que se fizessem. Em seguida, faça a mesma coisa aos outros,  como prescreve o preceito ético mínimo. Por fim, suscitar uma utopia ética: como imaginamos o mundo globalizado dentro de padrões éticos de cooperação, respeito à vida, sinergia com a natureza, reverência face ao mistério do universo, chamado Deus? E por fim como podemos fazer as revoluções moleculares, quer dizer, que passos concretos, bem práticos, cada um pode fazer para ser uma pessoa mais ética, mais sensível a valores, mais cooperativa, mas aberta a aprender com os diferentes? Como se depreende, aqui há todo um programa ético, dignificado da vida e atento ao futuro, à integridade e à beleza da natureza.

CN – Na verdade, as pessoas sabem o que é eticamente correto, no entanto, suas atitudes, por inúmeras razões, tendem a “passar por cima” dela, pois a ética já existe, ela não  é respeitada, mas existe.  O Sr. propõe  uma nova ética. Qual a diferença entre a “antiga” ética, que acredito ser a que conhecemos mesmo não sendo respeitada, e esta nova ética? Como  é esta nova ética? Como ela se estabelece?

LB – Não proponho uma nova ética. Mas o resgate de uma ética mais originária, ligada imediatamente, à vida e tudo o que pertence à vida. Esta ética ancestral precisa ser redita e atualizada para o contexto de nossa cultura dominante. Esta possui também a sua ética. A cultura dominante se estrutura ao redor da categoria poder. O poder é entendido e exercido como dominação da natureza, de povos sobre outros, de classes sobre classes, de pessoas sobre outras pessoas. Predomina a lógica do interesse individual e não a lógica do diálogo, do encontro e da comunhão. A lei mais forte é a da competição e não da cooperação. Por isso há tantos excluídos e marginalizados, pois na competição só um ganha e todos os demais perdem, como é exemplar no esporte e no mercado. Precisamos da lógica da gratuidade, do respeito do outro e da cooperação de todos com todos.  É a lei de John Nash, do ganha-ganha, onde  mediante o diálogo, negociação e aliança todos ganham e todos co-evoluem, projeto tão bem mostrado no filme “Uma mente brilhante”. Hoje somos urgidos a viver esta lógica, pois não há mais uma arca de Noé que salva alguns e deixa perecer os demais. Agora ou nos salvamos todos ou nos perdemos todos.

CN – No seu livro Saber Cuidar o Sr. analisa uma fábula de Higino sobre o cuidado. Nele o CUIDADO é proposto com essência humana, sendo mais fundamental até do que a razão e a vontade. Qual a explicação para essa concepção?

LB – Vida sem cuidado não existe. Se não cuidarmos de um recém nascido em poucas horas ele morre. Mesmo depois, tudo deve ser cuidado para durar mais e mesmo para sobreviver. Se não cuidarmos dos alimentos nos podemos envenenar, se não cuidarmos no tráfego podemos ser atropelados e morrer e assim por diante. O cuidado é a pré-condição que permite a reprodução da vida, cria espaço para que surja a inteligência, a liberdade e a criatividade. Sem o cuidado essas coisas não teriam condições de emergir. Por isso o cuidado é como dizia o poeta Horário, a sombra que nos acompanha sempre. É a essência do humano, pois é aquela instância mínima que condiciona, suporta e garante a existência de tudo o mais no ser humano. Daí pertencer o cuidado à essência em grau zero de todo tipo de vida, especialmente, da vida humana. E o cuidado representa uma relação amorosa para com a realidade, relação que protege e dá segurança à vida. Onde há cuidado não há violência. Bem dizia Gandhi: a política é o cuidado para com a coisa pública, o gesto amoroso para com o povo e suas necessidades.

CN – O Sr. defende que devemos ter como perspectiva a fase planetária e ecológica da humanidade. O que é esta fase, como ela se encontra presente no nosso cotidiano e qual a sua relação  com a ética?

LB – Graças à inter-relação que os seres humanos estabeleceram entre si pelo comércio mundial, pelas comunicações, pelas viagens e trocas culturais, entramos numa fase nova da humanidade, a fase planetária. Os povos que estavam reclusos em suas culturas e regiões começam a se encontrar num único lugar, vale dizer, no mesmo planeta Terra. Descobrimos a família humana, com muitos membros, de cores e valores diferentes, mas todos, representantes da mesma família humana. E nos damos conta de que Terra e humanidade possuem uma mesma origem e teremos um mesmo destino. Comparecemos juntos face ao futuro. E aí se levantam questões fundamentais: como garantirmos uma convivência minimamente pacífica e humana entre todos? Como preservar a Casa Comum para que todos possam caber dentro dela, a natureza incluída? Como evitar digladiações e lacerações que podem comprometer o futuro de todos? Ai se impõe um consenso mínimo em termos de comportamentos e atitudes. Ora a ética se ocupa exatamente destas questões. Dai a preocupação de estabelecer um consenso mínimo sobre alguns valores sem os quais não poderemos viver juntos nem garantir o futuro comum, na linha que expus na primeira questão respondida acima, o cuidado, a cooperação, a co-responsabilidade e a compaixão.

CN – O Sr. propõe um novo olhar sobre a concepção de ecologia, inclusive propõe uma classificação: ecologia ambiental, ecologia social, ecologia mental e ecologia integral. Quais as características de cada uma delas e como se relacionam com a ética?

LB – A ecologia é a ciência que estuda as relações que todos os seres entretém entre si e com o meio circundante. É a ciência da casa, hoje, coletiva, que é o Planeta Terra. A primeira relação é com o mundo circundante, o assim chamado meio-ambiente. Dele tiramos nosso sustento e do conjunto das relações garantimos nossa vida. Mas se repararmos bem, não existe meio-ambiente, mas o ambiente inteiro, pois nós fazemos parte dele. Na verdade o que existe, é a comunidade de vida da qual nós somos um dos membros. Face à ela surge uma indagação ética: como devemos agir para que conservemos esta comunidade de vida e juntos possamos coexistir e co-evoluir? Como seres sociais nos descobrimos dentro de uma rede de relações que podem ser de cooperação, de competição e de conflito. Aqui é o campo da justiça ou injustiça social.Juntos podemos manter relações de benevolência para com a natureza ou de depredação e expoliação. Aqui pode surgir  a injustiça ecológica, pois agredimos ecossistemas ou exploramos de forma irresponsável recursos escassos como a água potável  ou não renováveis como o petróleo. Como criar sociedades integradas cujo desenvolvimento seja feito com a natureza e não à custa dela? Dentro de nossa mente vigem pulsões, preconceitos, visões de mundo distorcidas, concentração apenas no ser humano, como se os demais seres só tivessem valor e sentido quando ordenados ao ser humano. Em razão de tais conteúdos mentais podemos desmatar, poluir águas, discriminar pessoas por causa de sua etnia, religião ou opção sexual. Desmontar tais estruturas é permitir que as pessoas se aproximem, que a natureza seja respeitada e que se reduzem os conflitos desnecessários nas sociedades humanas. Integrar o mundo interior dos desejos, dos arquétipos e dos conteúdos mentais com o mundo exterior da natureza com sua imensa diversidade é desafio posto para o processo de individuação e para a serenidade e a paz do ser humano pessoal e coletivo. Por fim existe a ecologia integral. O ser humano se dá conta que é parte e parcela de um todo maior, do Planeta Terra, do sistema solar, de nossa Galáxia, enfim, do universo. Captamos a majestade do céu estrelado, a imensa complexidade e biodiversidade da natureza, a profundidade do amor. Colocamos indagações terminais, como: de onde viemos, para onde vamos, que estamos fazendo nesse mundo, qual é o nosso lugar no conjunto dos seres, que podemos esperar depois desta vida? E por último, percebemos o fio condutor que une e re-une todos as coisas fazendo que não estejam desconectadas por aí, mas interconectadas entre si formando uma imensa harmonia e sinfonia. É a dimensão espiritual e integral da ecologia. A ecologia hoje representa o novo paradigma civilizacional, holístico, integrador e espiritual. Ela nos ajuda a voltar à comunidade de vida da qual nos exilamos e nos desperta reverência e devoção diante do Mistério de todas as coisas que chamamos Deus.

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