Edição 21

Espaço pedagógico

O Ofício de Narrar

Ameaçado pela superação de sua própria humanidade, num mundo de clones e robôs, o homem moderno resgata o ofício de narrar…
Gláucia de Souza

Muito me instiga o contar. Ou melhor, ele me arrebatava desde a infância, sentada, envolta em revistas Recreio, com as quais construía castelos, recordava outras histórias de literatura ou de família. Contar começou com o ouvir o contado, numa corporação de ofício em plena época capitalista. Avó, mãe, tia, comadre, vizinha… o espaço do feminino ressuscitando o ofício do artesão e o seu tédio, essencial, segundo Benjamin (1936), para o ofício de narrar.

Narrar, tecer. Não o fio da memória, mas o da vida. Enquanto o tempo passa, mantê-lo estático na imersão em história retomada fio a fio, geração a geração, como os galos que João Cabral de Melo Neto (1973) fez tecerem a manhã.

Tecer, viver. Nas narrativas populares são freqüentes os tecelões, as tecelãs: Rumpelstiltskin salva a filha do moleiro ao tecer palha e fazê-la virar ouro. A moça, salva da mentira que seu pai inventara, a de que esta transformava palha em ouro, casou-se com o rei e, por dívida, teria que dar seu primogênito ao homenzinho que a salvou da morte. Tecer o fio, tecer a vida. Duas vidas envolvidas nas tramas do tear. Muitas outras, presentes nos contos de fada: Rapunzel (Grimm & Grimm, 1987) tece suas tranças, a Bela Adormecida do Bosque (Perrault, 1985) dorme, em estado de morte. Já disse Shakespeare, na voz de Hamlet: “To die — to sleep / To sleep! Perchance to dream” (Shakespeare, 1985). Benjamin destaca dois grupos, primeiros na arte de narrar: os camponeses sedentários, mais conhecedores da tradição, e os marinheiros comerciantes. Ambos conservavam o necessário distanciamento espacial e/ou temporal para uma boa narrativa. Do primeiro grupo, vieram-nos os contos de fada, como forma de resistência aos desmandos dos senhores feudais (Barbosa, 1991).

Benjamin considera os narradores dos contos de fada como os primeiros narradores verdadeiros. Isso porque os contos de fada sabiam dar um bom conselho quando ele era difícil de se obter. Ofereciam ajuda numa situação de emergência provocada pelo mito. O conto de fada é uma das primeiras medidas que a humanidade tomou para se libertar do mito (Benjamin, 1936). São uma forma de sobreviver à morte pela narrativa: “e viveram felizes para sempre”. Já Bojunga, em seu livro Tchau (1991), faz uma personagem sua desafiar a morte. No conto A troca e a tarefa, a narradora, ciente de que narrar é viver, estende sua narrativa o máximo possível: morre narrando, mas suas palavras são achadas em sua incompletude. Porta aberta para o continuar da história na boca de outro narrador: “Nota de Lygia Bojunga Nunes: a escritora morreu sem acabar a frase. Deram com ela debruçada na mesa, a ponta do lápis fincada na paixão”.

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Outros narradores, excelentes por seu distanciamento: as mulheres e os velhos.

As mulheres, já mencionadas nos serões que vivi na infância, na casa de minha avó, fiando, tecendo, faziam de suas narrações ofício de “alma, olho e mão” (Bosi, 1994: 90). Mãos cheias, pensamento livre para tecer para os da casa os relatos de memória. Tecelãs e doceiras (porque as doceiras também são muitas, como Delícia, de A mão na massa, de Marina Colassanti).

Em Fazendo Ana Paz, Lygia Bojunga faz a personagem contar-se independentemente da narradora. Ana Paz é a história que surge na boca do contador de história, quando este está imerso em sua tarefa, a ponto de esquecer-se dela e entregar-se ao narrar. É a personagem-narrativa que surge e se impõe: “já chega o tempo em que eu fiquei numa gaveta, já chega o tempo que eu fiquei na tua cabeça: tudo tão fechado, tão cheio de complicação. Eu quero ir lá pra fora!”, diz Ana Paz.

Já os velhos, por serem considerados improdutivos numa sociedade capitalista, fazem do preconceito que sofrem a liberdade de poder lembrar. Liberdade que, de acordo com Bosi (1994, 63), torna-se obrigação social, já que ao homem adulto não lhe é permitido lembrar. Para este, a memória é algo distinto da vida prática: é sonho, fuga, arte, lazer, contemplação. O velho, por estar no fim da vida, busca na memória a sua eternidade. Daí o ritual de não-tempo criado como atmosfera narrativa. Em Cazuza (Corrêa, 1984), Vovó Candinha encerra seu ato narrativo em um ritual de culto noturno ao deus-palavra, ritual próprio de muitos outros contadores de histórias: “Na sua boca, as coisas simples e as coisas insignificantes tomavam um tom de grandeza que nos arrebatava”, diz Cazuza. Vovó Candinha, o não-tempo de quem fuma pachorrentamente seu cachimbo e, na pachorra, desfia histórias de fadas.

Contar, para o velho, é viver. Seu único sentido na sociedade capitalista. Em Corda Bamba (Bojunga, 1988), Dona Maria Cecília compra para a neta uma contadeira de histórias, velha e faminta, que emenda histórias enquanto se enche de comida. Esvazia-se de história para ceder espaço para o alimento que ingere. Passa a contar histórias para não morrer de fome, mas, esvaziada do que conta, morre de tanto comer.

Contudo, faltam os narradores homens: que espaço é reservado aos homens no mundo do narrativo? Ao homem, o contar histórias só é permitido se este for viajante, artesão ou velho. Ao homem jovem, cabe o espaço da produção material. No entanto, Peer Gynt (Ibsen, 1985) apresenta-se como um contador de histórias pouco convencional.

A origem da narrativa está na experiência que passa de pessoa para pessoa. No mundo moderno, a experiência pouco importa; por isso, a narrativa, de tradição oral, perde importância e, com ela, os narradores. Assim acontece com Peer Gynt, ridicularizado por suas “mentiras”, na verdade fruto de sua criação: “Porque eu nunca tive coragem para resistir de verdade. E, então, sonhávamos. Tem gente que bebe, tem gente que mente. Nós contávamos histórias de príncipes, de trolls, de animais fantásticos e de noivas roubadas”, diz Aase, a mãe de Peer Gynt. Dessa forma, o jovem imperador de si mesmo raptava moças, seduzindo-as com suas histórias — em verdade, fruto do povo a que pertencia: o povo norueguês.

Ibsen escreveu Peer Gynt em 1867, quando os efeitos do capitalismo já se evidenciavam em sua atrocidade. De uma certa forma, Peer Gynt é uma crítica à perda da capacidade de ouvir, de narrar, que se iniciou com o advento da sociedade burguesa e da difusão da imprensa, e, conseqüentemente, uma crítica à sociedade moderna. Grieg nos traz em som essa liberdade, através do amanhecer de Peer Gynt: livre em sua imaginação e livre no contar/viver suas histórias. Peer Gynt é um avesso de Dom Quixote. Se Dom Quixote inaugura a era do romance, em que ser a reminiscência é loucura, Peer Gynt, também anti-herói, herói do antes, tenta resgatar esta oralidade, apesar de considerado louco.

O mundo pós-moderno retoma, de um certo modo, a oralidade. Ao conseguirem voz, na busca de sua vez, as minorias sociais fizeram vir à baila suas formas de expressão. No caso do Brasil, a literatura infantil começou a ser, especificamente no pós-64, portadora do discurso dessas minorias (Aguiar, 1994), já que se mostrou terreno livre de censura, porta para as críticas sociais, difíceis de serem feitas durante o governo militar. Ao falar das minorias sociais, a literatura infantil brasileira resgatou sua forma de expressão, a oralidade.

Na literatura infantil brasileira, o contar começa a ser resgatado.

Contar é estar em linha, é estar em trança, como Rapunzel: “trança de gente”, senda de história. É saber passado, presente, futuro: Bisa Bia, Bisa Bel (Machado, 1982). Bel acha o retrato da bisavó com sua idade: imagina a sua bisneta, a Neta Beta. As três são uma sucessão narrativa, uma teia de imagens, fluição de história. Através de Bel, uma pequena trajetória do feminino se traça: o feminino sai do tear e assume algumas instâncias do masculino. Bel sobe em árvores, decide, discute com Sérgio as possibilidades de roubar uma fruta…

Num mundo em que o espaço do masculino vem se restringindo, pois a mulher vem conquistando espaços que antes lhes eram negados, o contar histórias, tantas vezes atribuído ao feminino (Dona Benta, Sherazade, Emília…), passa a ser também uma necessidade dos homens. Afinal, numa sociedade que busca cada vez mais, no mercado de trabalho, trabalhadoras mulheres, os homens muitas vezes vêem-se responsáveis pela casa, pelos filhos, envolvendo-se com atividades que propiciem o necessário tédio gerador de narrativa. No mundo pós-moderno, a indefinição dos papéis sexuais muda a face dos casais e dos casamentos: homens e mulheres em busca de seus femininos e masculinos. O que é ser homem e o que é ser mulher na sociedade pós-moderna?

No livro Nós Três (Bojunga, 1987), dois homens: o Pescador, cuja mão ia apalpando a rede, por ter visão curta e cabeça branca, registrava as histórias de toda a aldeia de pescadores; Davi, jovem viajante, participante das histórias que vive. O Pescador é porta-voz da sabedoria narradora: a narrativa, para Benjamin, tem uma função de conselho, e “aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada” (1936). Por sua vez, Davi não é um narrador convencional, porque não é nem velho, nem camponês, nem marítimo, nem mulher. Porém, veio de longe e subverte a família dos contadores de história: é andarilho, filho de família mambembe, torna-se feminino em contraposição ao masculino de Mariana, que tenta interpretar a realidade. Sem o equilíbrio entre eles, o equilíbrio masculino-feminino, ambos têm que morrer: Mariana mata Davi (seu feminino) e, por isso, perde a si própria no mar, desesperada por não poder exercer sua criação.

Davi não quer isolar-se, é um narrador. Mariana isola-se, é romancista (Benjamin, 1936). Ambos são a alegoria de um mundo de informação que se apresenta ante a narrativa e o romance de forma ameaçadora.

Antes de Davi, contudo, Alexandre traz para o universo do masculino a narratividade: ele é um contador de histórias, como Augusto, seu irmão, que não só contava como inventava as histórias. N’ A Casa da Madrinha (Bojunga, 1986), Alexandre conta histórias para viver. É Vera quem o nutre. A função material mantenedora da sobrevivência, antes da esfera do masculino, vê-se transferida para Vera, representante da praticidade. A Alexandre se deve o papel de tecelão, por isso, o livro A Casa da Madrinha é um entrelaçar de histórias: a do pavão, a da professora, a da Gata da Capa, a do João das Mil e Uma Namoradas…

O contar de Alexandre é ritualizado na busca de um lugar mágico: a casa da madrinha, espaço da narratividade, onde tudo é possível. Esse é o espaço da imaginação, algo como o reinado de Peer Gynt, que, ao seduzir a filha do Velho de Dovre, criou “castelos” que não tinham, riquezas como as do Marquês de Carabás (Perrault, 1985). A casa da madrinha é o lugar que Augusto criou para que Alexandre-ouvinte a escutasse e a perpetuasse através da narrativa. O espaço onde contador e ouvinte se encontram é o espaço do mágico, do atemporal. Assim, a reminiscência funda a cadeia da tradição (Benjamin, 1936). Augusto e Alexandre formam uma teia de narração em que cada um deles pode imaginar uma nova história em cada passagem do que contam e podem, também, suscitar novas histórias em quem os ouve.

O contar, sempre, é da esfera das tarefas de paciência. Tinha paciência a mulher que tecia o fio, Penélope esperando Ulisses com seu manto interminável; tinha paciência o marítimo que viajava, Ulisses vivendo anos longe de sua Ítaca… Por isso, a casa da madrinha não tem tempo: o relógio que lá existe está quebrado. Numa sociedade em que tempo é dinheiro, o espaço da narratividade é o não-tempo. É o à margem, como Alexandre. Cabe a ele vencer seu medo do mágico. Coube a ele viver o mágico para sabê-lo real. O prêmio, a chave da casa da madrinha, a chave da porta da narratividade.

Contar, viver. E, nesta carpintaria, tecelagem, que é a criação, importa o narrar. Ameaçado pela superação de sua própria humanidade, num mundo de clones e robôs, o homem pós-moderno resgata o ofício de narrar: desta vez, sua própria história em homepages, em histórias ouvidas e recontadas de outra forma em telenovelas… Envelheço, como envelhecemos desde que nascemos. Por isso, posso também eu tornar-me narradora, mais um galo no tecido de João Cabral!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Maria T. Mitologia poética dos contos de fadas no Brasil. Diss. Mestrado. Porto Alegre: PUC/RS, 1991.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Brasiliense: São Paulo.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. 3. ed. Companhia das Letras: São Paulo, 1994.
HOMERO. Odisséia. Série Reencontro. Scipione: São Paulo, 1996.
MELO NETO, João Cabral de. Antologia Poética. 2. ed. José Olympio: Rio de Janeiro, 1973.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. 17. ed. Longman: Essex, 1985.

Gláucia de Souza — autora de livros para crianças, formada em Letras e Mestre em Educação pela UFRGS.

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