Edição 111

Profissionalismo

O Transtorno do Espectro Autista e o desenvolvimento da inteligência emocional

Kelly Simões Cartaxo Lima Costa

“Quanto mais longe uma criança com autismo caminha sem ajuda, mais difícil se torna alcançá-la.” Talk About Autism

Falar em Transtorno do Espectro Autista (TEA) é falar em dificuldade de interação social, de perceber-se num contexto social. O TEA é uma condição rara, relacionada a dificuldades na comunicação e nas relações sociais, que atinge um número considerável de pessoas. Estima-se, hoje, que 1 em 59 crianças tem autismo, sendo a sua maior incidência no sexo masculino.

Sobre o TEA, Varella Bruna, redatora do site Drauzio, explica que

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) engloba diferentes condições marcadas por perturbações do desenvolvimento neurológico com três características fundamentais que podem manifestar-se em conjunto ou isoladamente. São elas: dificuldade de comunicação por deficiência no domínio da linguagem e no uso da imaginação para lidar com jogos simbólicos, dificuldade de socialização e padrão de comportamento restritivo e repetitivo.

Diante dos dados e da condição apresentada por crianças com TEA, tornou-se imprescindível o desenvolvimento da inteligência emocional, pois, quando elas aprendem a lidar com as emoções, apesar do próprio desconforto, tendem a evoluir socialmente, uma vez que “O desenvolvimento da inteligência emocional da criança é uma das habilidades fundamentais para o seu crescimento como ser social” (Abecedário da Educação). É importante destacar que tanto a família como a escola são fundamentais nesse processo, uma vez que é no seio familiar que a criança autista tem o seu primeiro contato com os sentimentos e as emoções, através da verbalização e da sua demonstração na vida cotidiana de pais e filhos, e que é na escola que aprende, através da convivência diária com colegas e professores, a se relacionar com pessoas fora do seu convívio familiar. Sobre isso, faz-se necessário frisar que7

A inteligência emocional deve ser aprendida essencialmente em contexto familiar. No entanto, é principalmente no contexto escolar que a criança com autismo desenvolve as suas habilidades sociais, adquiridas através das trocas sociais com os seus pares, favorecendo, assim, o seu desenvolvimento emocional e social e também o das outras crianças, que aprendem a lidar com as diferenças. (ABECEDÁRIO DA EDUCAÇÃO, 2019).

A identificação e o controle das emoções são dificuldades explícitas em se tratando do espectro autista, pois o contato visual, a comunicação oral e os gestos são ações difíceis de serem compreendidas por pessoas com autismo, por isso detectar e entender as emoções é algo bastante complexo para elas, mas de suma importância para o seu desenvolvimento, uma vez que “as emoções permitem à pessoa regular a sua forma de agir, permitindo-lhe reagir perante os acontecimentos, tomar decisões e transmitir as emoções de forma não verbal” (Alves, 2013, p. 68).

Uma criança com autismo apresenta, obviamente, imaturidade emocional, pois a sua dificuldade em estabelecer contato visual compromete o reconhecimento das emoções, bem como a gestão das mesmas.

Para corroborar com o descrito acima, Szabo (1995) endossa dizendo que

Em relação às características socioemocionais os indivíduos autistas mostram-se geralmente apáticos, isolados, agressivos, desinteressados; rejeitam maiores contatos físicos e afetivos; têm movimentos inapropriados; não demonstram medo de perigos reais; resmungam; riem inadequadamente; possuem hábitos estranhos na alimentação; têm crises de choro e angústia sem motivos aparentes (SZABO, 1995).

Frente aos desafios postos acerca do trabalho com as emoções com crianças autistas, fica claro que é preciso ensiná-las a identificarem e entenderem o que significa cada emoção, seja por meio da “insistência” afetuosa do toque, das demonstrações cotidianas de afeto, da apresentação de imagens que simbolizam as emoções, da verbalização dos respectivos nomes, da contação de histórias com uso de fantoches ou através de dramatizações, a fim de inseri-las no mundo emocional, “já que as emoções são uma parte essencial da vida humana” (Ceia, 2013, p. 1), e, por conseguinte, estimulá-las a perceberem a presença do outro e a sentirem maior tranquilidade nas relações interpessoais.

Trabalhar cotidianamente as competências socioemocionais com criança autista favorecerá progressivamente a sua evolução social. Todavia, é imprescindível

trabalhar com eles a causa original da emoção sentida e, em conjunto, encontrar a melhor forma de expressá-la, identificando os gestos relacionados com cada emoção. A expressão emocional é fundamental para compreender as emoções dos outros, saber como se sentem e para poder partilhar emoções. Também a comunicação não verbal — a postura, o tom e a intensidade da voz, o olhar, os gestos, etc. — é crucial nas relações interpessoais. (MARTINS E CEIA, 2013, p. 04)

Uma das características evidentes no TEA é a dificuldade nas relações sociais; porém, se desde muito cedo a criança com autismo for inserida em um programa estruturado de Educação Emocional, no qual tenha a oportunidade de conhecer e vivenciar as emoções, o seu quadro social e cognitivo tende a melhorar e a desenvolver-se. Mas o que é inteligência emocional? De acordo com Goleman (2012), Inteligência Emocional é a “[…] capacidade de identificar os nossos próprios sentimentos e os dos outros, de nos motivarmos e de gerir bem as emoções dentro de nós e nos nossos relacionamentos”.

Salovey e Mayer (1997) complementa afirmando que

A inteligência emocional consiste na habilidade de manipular os sentimentos e emoções, discriminá-los e utilizar estes conhecimentos para direcionar os próprios pensamentos e ações. Posteriormente conceberam a inteligência emocional como um modelo de quatro componentes: percepção emocional (as emoções são entendidas e expressadas); integração emocional (as emoções sentidas entram no sistema cognitivo, influenciadores da cognição); compreensão emocional (sinais emocionais em relações interpessoais); regulação emocional (os pensamentos promovem o desenvolvimento emocional, intelectual e pessoal) (SALOVEY E MAYER, 1997, p. 10).

A psicóloga da WeCareOn Marcela Alves, parafraseando Goleman, diz que

Ser inteligente emocionalmente, ou seja, ter o potencial de ser capaz de traduzir sentimentos em si mesmo ou no outro, não significa necessariamente que se é competente, no que diz respeito a esta habilidade.

Ser competente, em termos emocionais, significa ser capaz de pensar e perceber os próprios sentimentos, emoções (e atitudes), incluindo o compreender a linguagem emocional do outro, a qual é fundamentalmente não verbal.

A partir do aprofundamento e maior compreensão acerca da inteligência emocional, cabe-nos um questionamento: como auxiliar as crianças com autismo a reconhecerem, expressarem e gerirem suas emoções?

Para responder ao questionamento acima, Puly (2016) oferece-nos algumas orientações:

1 – A criança dentro do espectro consegue aprender rapidamente as expressões de tristeza e alegria, mas pode ter dificuldades com outros sentimentos mais sutis, como medo, frustração, surpresa, culpa… Esses sentimentos podem ser trabalhados através de histórias, desenhos e até situações cotidianas. Nomear os sentimentos da criança durante suas experiências a fará compreender aos poucos o que cada um representa.

2 – Ajude-a a perceber características nos rostos que diferenciem as emoções, como sorriso, cenho franzido, bochechas rosadas, olhos arregalados, lágrimas… Vocês podem olhar em figuras e também treinar em frente ao espelho. Exagere nas expressões no início e seja mais sutil à medida que a criança compreende.

3 – Ensine sobre empatia nas situações cotidianas. Por exemplo: “Seu coleguinha ficou triste porque esqueceu seu lanche, vamos dividir o nosso?”, “Olha só, sua prima caiu e machucou o joelhinho, vamos buscar um curativo para que ela se sinta melhor?”, “Aquele menino não parece muito feliz, ele está brincando sozinho. Vamos convidá-lo para brincar no escorregador?”.

4 – Seja sensível ao identificar e conversar com a criança sobre os sentimentos dela também.

5 – Cartões com as expressões faciais (rostos reais ou desenhos) também podem ajudar a criança a expressar suas emoções.

6 – Se a criança ficar frustrada ou ansiosa em alguma situação, você pode desviar sua atenção no momento para evitar uma crise nervosa, mas converse sobre o assunto quando ela estiver mais tranquila.

7 – Promova a autoestima da criança. Dê a ela responsabilidades proporcionais às suas capacidades, elogie seus bons comportamentos e trabalhos bem-feitos, valorize os esforços, demonstre confiança.

8 – Demonstre respeito. Cada criança tem suas habilidades e preferências pessoais. Resista à tentação de compará-la aos amigos ou irmãos. Ao invés disso, apoie e incentive as suas realizações.

O desenvolvimento da inteligência emocional em crianças com TEA não é uma tarefa das mais fáceis. É preciso muito conhecimento, paciência e persistência, pois as reações das crianças frente ao trabalho com as emoções são imprevisíveis, ora podem demonstrar atenção e interesse, ora podem apresentar aversão por meio de choro, gritos e/ou agressões físicas. Isso acontece porque as crianças com autismo não sabem lidar com as emoções, principalmente com as negativas, como: raiva, medo, tristeza e vergonha. Infelizmente, “as emoções negativas são experimentadas com mais frequência do que as positivas” (Vallés e Vallés, 2000), daí a importância de se aprender a compreender e gerir as emoções, especialmente em se tratando do TEA.

A compreensão e análise de emoções envolvem a capacidade de classificar as emoções, abrangendo a capacidade de identificar diferenças entre elas, a percepção da possibilidade de sentimentos complexos, como amar e odiar uma mesma pessoa, bem como as mudanças de um sentimento para outro. O controle reflexivo das emoções refere-se à capacidade de aceitar reações emocionais, agradáveis ou desagradáveis, compreendê-las sem exagero ou diminuição da sua importância, controlá-las ou descarregá-las no momento adequado (ALVES, 2013, p. 34).

Gottman e DeClaire (1997) apud Alves (2013) complementam dizendo que,8

A criança tem de ser capaz de nomear as emoções, de lhes atribuir uma classificação, uma vez que as ajuda a transformar algo casualmente aterrador em algo definível, que faz parte do quotidiano. Alguns estudos revelam que a capacidade de rotular emoções tem um efeito calmante no sistema nervoso (GOTTMAN E DECLAIRE, 1997 QPUD ALVES, 2013, p. 39)

À face do exposto, é indubitável a necessidade e a importância de desenvolver a inteligência emocional em crianças com transtorno do espectro autista, pois, à medida em que elas aprendem a conhecer e gerir as suas emoções, conseguem, concomitante e progressivamente, autorregular-se, a manter relações saudáveis com o outro, seja este pai, mãe, irmão, colega ou professor, e, consequentemente, melhorar a expressão verbal e o desempenho cognitivo.

A criança autista que desenvolve sua inteligência emocional torna-se mais feliz e realizada consigo mesma, pois aprende a enxergar o mundo com o coração, aprende a iluminar o seu próprio caminho, já que “as estrelas são todas iluminadas…” e, claro, “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” (Antoine de Saint-Exupéry).

REFERÊNCIAS

ABECEDÁRIO DA EDUCAÇÃO. O Desenvolvimento da inteligência emocional em crianças com autismo, 2019. Disponível em https://www.abecedariodaeducacao.pt/2019/01/15/o-desenvolvimento-da-inteligencia-emocional-em-criancas-com-autismo/. Acesso em 28 de julho de 2019.

ALVES, Clara Manuela Guedes. Inteligência emocional em crianças com dificuldades de aprendizagem: uma perspectiva educativa. Dissertação de mestrado em Ciências da Educação. Escola Superior de Educação João de Deus. Lisboa-Portugal, 2013. Disponível em https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/4182/1/InteligenciaEmocionalemCrian%C3%A7ascomDificuldadesdeAprendizagemUmaPerspetivaEducativa.pdf. Acesso em 04 de agosto de 2019.

ALVES, Marcela. O que é a inteligência emocional e como desenvolver a competência em termos emocionais? Site WeCareOn. Abril, 2019. Disponível em https://wecareon.com/o-que-e-a-inteligencia-emocional/. Acesso em 05 de agosto de 2019.

BRUNA, Maria Helena Varella. Transtorno do espectro autista. Site DRAUZIO. Disponível em https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/transtorno-do-espectro-autista-tea/. Acesso em 02 de agosto de 2019.

GOLEMAN, Daniel. Inteligência emocional: a teoria revolucionária que define o que é ser inteligente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

MARTINS, Ernesto Candeia e CEIA, Helena Isabel F. Desenvolvimento emocional e compreensão social em crianças autistas (estudo de caso), 2013. Disponível em https://core.ac.uk/download/pdf/62720088.pdf. Acesso em 02 de agosto de 2019.

PULY, Amanda. 8 formas de desenvolver habilidades emocionais no autismo. Clube materno, 2016. Disponível em http://clubematerno.net/2016/12/03/8-formas-de-desenvolver-habilidades-emocionais-no-autismo/. Acesso em 02 de agosto de 2019.

Salovey, P. & Mayer, J. D. Emotional development and emotional intelligence. Educational implications. New York: Basic Books, 1997.

SZABO, Cleusa Barbosa. Autismo em questão. São Paulo: Mageart, 1995.

Vallés, A. e Vallés, C. Inteligencia emocional: aplicaciones educativas. Madrid: Editorial EOS, 2000.

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