Edição 17

Projeto Didático

Organizando oficinas de não-violência na escola

Marcelo Rezende Guimarães

A técnica da oficina como recurso pedagógico tem ganho espaço ultimamente no modo como tem se organizado o processo de aprender e ensinar entre nós, mesmo que, sob o termo oficina, possam se esconder múltiplas e diversas concepções e, inclusive, práticas pedagógicas bancárias retrógradas.

Também entre os que militam e educam para a paz, a oficina — e cunhou-se, então, o termo Oficina da Paz — ganhou espaço e aceitação, com resultados e produções muito interessantes.

No presente texto, levantam-se alguns elementos importantes para quem deseja continuar e multiplicar esse caminho. Trabalhamos em três momentos: primeiro, levantando alguns pressupostos básicos para a prática de oficinas da paz; segundo, delineando alguns elementos metodológicos; e, finalmente, trabalhando algumas sugestões.

1. Pressupostos básicos

Entre os pressupostos sobre os quais se fundamentam as práticas de Oficinas da Paz, poderíamos lembrar:

a) Paz se aprende. A paz, além de raízes sociais, econômicas e políticas, possui um enquadramento cultural. A cultura, por um lado, diz respeito às expressões produzidas e criadas pela humanidade e, portanto, a uma realidade ligada ao ato de aprender, transmitir e educar.

b) A paz não é um estado, mas uma construção. A paz não é um estado dado, mas algo a ser instaurado e construído por nós, do qual não somos clientes ou beneficiários, mas os sujeitos e co-criadores. Como construção, a paz é “uma criação do exercício generoso do diálogo entre as pessoas que não pode ser outorgado. Um dever de direitos que nos cabe, porque somos individual e coletivamente responsáveis, seres da sociedade, dos povos e das nações da Terra”.1

c) A paz se constrói empoderando pessoas. A possibilidade da paz funda-se na habilidade humana, não apenas para agir, mas para agir em concerto, constituindo-se em uma das mais decisivas experiências humanas. Nesse sentido, a paz se constrói, exatamente, a partir do poder que temos, que todos temos, que cada um tem e que necessita ser fortalecido (empoderado). O empoderamento de jovens e adolescentes para a paz pressupõe, fundamentalmente, o protagonismo infanto-juvenil, o jovem e o adolescente como sujeitos desse processo.

d) A paz se constrói a partir da não-violência. As soluções para o problema da violência terão alcance muito reduzido enquanto permanecerem no campo restrito da resposta à violência. Faz-se necessário, para se conseguir uma resposta eficaz, criar pólos positivos de não-violência. A humanidade somente acabará com a violência através da não-violência, reiterava Gandhi. A não-violência, por um lado, significa a recusa do ódio e do que destrói o outro (ahimsa); por outro, implica a substituição por uma outra força, a força da verdade e do amor (satyagraha). Como método, a não-violência está baseada no respeito absoluto à integridade das partes implicadas e faz da coerência entre fins e meios a sua estratégia e condição para a sua eficácia, pois renuncia implicitamente à violência como meio.

e) A paz se constrói num processo dialógico-conflitivo. Os conflitos são compreendidos como integrantes dos processos humanos, sendo determinante a maneira como os conflitos são enfrentados e resolvidos, de forma violenta ou não-violenta. Nesse contexto, a paz se apresenta como um conceito dinâmico que nos leva a provocar, enfrentar e resolver conflitos de uma forma não-violenta e cujo fim é conseguir a harmonia de pessoas consigo mesmas, com a natureza e com os outros. Emerge aí a importância da luta como forma de “criar condições de diálogo, estabelecendo uma nova relação de forças que obriga o outro a reconhecer-me(nos) como interlocutor, senão válido, pelo menos necessário. Luta é a prova de força, energia necessária para toda mudança. É aquilo que faz com que o direito seja respeitado”.2 Assim como a luta não se identifica necessariamente com a violência, os estudiosos estão também distanciando agressividade de violência, conceituando agressividade como a força vital de cada pessoa, necessária para superar os obstáculos e as limitações próprios do cotidiano. “A sua ausência provoca passividade. Em princípio, ela é neutra, mas, através de condicionamentos socioculturais (educação, trabalho, história ou sistema social), provoca comportamentos violentos ou não-violentos”.3 Nesse processo, o diálogo, o resgate e a devolução do direito à palavra, a criação de espaços coletivos de discussão, a sadia busca do dissenso e da diferença revelam-se como elementos importantes.

2. Metodologia

Para que as Oficinas da Paz possam cumprir sua proposta, utilizando a metodologia do planejamento participativo, é importante atentar para os seguintes momentos metodológicos:

a) Espaço de construção coletiva. Como construção, a paz deixa de ser um atributo individual para assumir uma compreensão mais coletiva e comunitária, como evento do ser-no-mundo. Trata-se mais, fundamentalmente, de estabelecer relações e referenciais do que formar atitudes, desenvolver o sentimento de pertença (como, por exemplo, na expressão “Sou membro das Oficinas da Paz”) do que o de posse (como na afirmação “Tenho paz em mim”). As Oficinas da Paz configuram-se, assim, não tanto como um espaço onde os indivíduos tornam-se pacíficos, mas onde as pessoas firmam-se como pacifistas, inserindo-as no quadro global da humanidade que caminha para a paz e fazendo repercutir para o seu cotidiano aquilo que é a busca das pessoas comprometidas com a paz no mundo. Fundamentalmente, torna-se uma experiência de descoberta e de articulação com o movimento pacifista e de suas múltiplas frentes, como a luta contra o armamentismo, o movimento de objeção de consciência e de desobediência civil, o esforço de solidariedade para fim dos conflitos, os trabalhos de educação para a paz e as ações em defesa da vida e em prol da cidadania.

b) Exercício de ação. O próprio nome Oficinas da Paz traz em si um dinamismo que implica o abandono da compreensão pedagógica limitada ao processo intelectual, a superação do discurso e a ligação visceral com a ação. A faculdade para a ação é o que faz do ser humano um ser político: ela o capacita a reunir-se a seus pares, agir em concerto e almejar objetivos e empreendimentos que jamais passariam por sua mente, deixando de lado os desejos de seu coração, se a ele não tivesse sido concedido este dom — o de aventurar-se em algo novo.4 As Oficinas da Paz não querem mascarar a ação política e substituir o agir em concerto por uma justaposição de indivíduos isolados ou trocar a ação criadora do novo por uma coletânea de atividades predeterminadas — copiar, escrever, desenhar, etc. —, que se aproximam mais do eterno retorno do mesmo do que da condição de natalidade e criatividade. Querem ser um espaço de ação propriamente dita, não de sua ilusão, experiência marcante de ação pública, comunitária, política, com todos seus percalços, enfrentamentos e dificuldades.

c) Espaço de debate. A paz, atualmente, tem-se constituído num campo muito propício para discursos fáceis, emocionalismos e falta de consistência teórica. Nesse contexto, é importante considerar a relevância de uma fundamentação teórica consistente, segundo a advertência do filósofo francês Paul Ricoeur: “Não se faz idéia de tudo quanto se vai encontrar ao prospectar o império da violência; eis por que uma anatomia da guerra que se gabasse de ter descoberto três ou quatro grossos cordéis, que bastaria cortar para que os marionetes militares caíssem inertes no tabuado do palco, condenaria o pacifismo à superficialidade e à puerilidade”.5 Daí a importância de desvelar os germes culturais do desentendimento, dos sentimentos e das intenções sociais contrários aos valores mais indispensáveis da experiência humana, partilhando “os significados da verdade de nossas intenções, de nossas vocações pessoais e culturais a isto ou àquilo, de nosso verdadeiro entendimento sobre o destino da vida e dos homens”.,6 Sem perder o entusiasmo e a mística, sem encobrir ou idealizar, as Oficinas da Paz querem oportunizar um instrumental para enfrentar o trágico da violência que nos é imposta e construir a paz tão sonhada. Sem ceder à tentação de uma abordagem simplista ou superficial, desejam ser momentos privilegiados de aprendizagem e de construção de novos conhecimentos, de apropriação da reflexão desenvolvida até agora na construção da paz. Como afirmou Paulo Freire, ao receber o Prêmio de Educação para a Paz, da Unesco, em 1986: “A paz se cria, se constrói, na e pela superação das realidades sociais perversas. A paz se cria, se constrói, na construção incessante da justiça social. Por isso, não creio em nenhum esforço chamado de educação para a paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças, o torna opaco e tenta miopizar suas vítimas”.7

Desta forma, as Oficinas da Paz se conduzirão no esquema metodológico práxis–teoria–práxis.

3. Organizando uma Oficina da Paz

Para organizar bem uma Oficina da Paz, além da consideração dos itens acima, é bom lembrar que a oficina é um instrumento usado para que um grupo relativamente pequeno se aproprie de um determinado tema. Segundo o dicionário, é o lugar onde se exerce um ofício. No senso comum, é o espaço de criar, consertar e construir coisas, mas é também onde se repassa essa construção, esse saber. É o caso da oficina de carro, de sapato, de costura e de muitas outras.

No caso da Oficina da Paz, é o lugar de fazer pensar, redescobrir, reinventar novas formas de ver e rever a prática de construção da paz. É um trabalho comum em que todos compartilham e vivenciam idéias, sentimentos e experiências em torno do sonho da paz. O que caracteriza uma oficina é a construção gradativa, pessoal e coletiva. Numa oficina, todos participam. É um grande mutirão. Tudo se cria, descobre, compara, constrói, aproveita e transforma. O que caracteriza uma oficina é sua dimensão de construção coletiva do conhecimento. Fundamental numa oficina é sua preparação anterior, especialmente a discussão pelo grupo da temática e dos objetivos. Um roteiro que pode ser seguido:

a) Acolhida e sensibilização. Trata-se de criar uma comunidade de trabalho e convivência, condição indispensável para a eficácia da oficina. Além de alguma técnica de integração, é bom pensar como ajudar o grupo a entrar no clima do tema escolhido. Por exemplo, uma oficina que trabalha o tema da guerra pode começar com o grupo olhando e comentando a foto daquela menina, na Guerra do Vietnã, fugindo, nua, diante do bombardeio. Numa oficina sobre minas terrestres, as pessoas foram convidadas a escolher uma de muitas fotos de vítimas de minas e responder a três perguntas: O que sinto? O que sei? O que posso fazer? O modo como se estrutura esse primeiro elemento é fundamental para a continuidade e, mesmo, para o sucesso da oficina.

b) Percepção e aprofundamento do tema/problema. Uma vez sensibilizado, o grupo deve ser convidado a entrar mais fundo na questão. Filmes e textos, aqui, podem ser de grande valia. Várias técnicas, como a de grupos de trabalho que estudam, cada um, um subtema, podem ser desenvolvidas para que, num razoável espaço de tempo, se estude verdadeiramente e se descubra todas as nuanças da temática. A introdução à temática, de modo que as pessoas possam ter uma visão geral da questão, pode ajudar. Este momento é o que, em termos de tempo, possui a maior duração.

c) Síntese. É o momento central da oficina, sua pedra-de-toque, quando os seus  participantes constroem e sistematizam um saber sobre o tema trabalhado.  Aqui, uma pergunta geral sobre a temática pode ser de muita valia. Por exemplo, numa oficina sobre protagonismo infanto-juvenil, os jovens analisaram e debateram várias experiências e trabalhos de jovens na linha da cidadania; depois, foram convidados a escrever num cartaz o que era protagonismo infanto-juvenil.

d) Reconstrução da prática. É o momento em que os participantes, em grupos, planejam ações que expressem os conhecimentos adquiridos e que visem contribuir para a realização de transformações sociais, no sentido da solidariedade e da justiça social.

e) Avaliação. Como espaço coletivo, a avaliação oportuniza o momento de os participantes expressarem seus sentimentos e suas opiniões, não apenas sobre o modo como a oficina foi desenvolvida, mas sobretudo sobre o sentido e o significado dos procedimentos em suas vidas.

f) Encerramento e confraternização. Como celebração da vivência, a oficina se encerra com um momento de confraternização, ao mesmo tempo, alegre e profundo. Dizer os compromissos assumidos; expressar as descobertas e as inquietudes; cantar, através de uma música pertinente, a temática estudada e as perspectivas vislumbradas possibilitam que a oficina seja integrada pelas pessoas no seu itinerário e percurso pessoal como um momento realmente significativo.


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[1] BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Em campo aberto: escritos sobre a educação e a cultura popular. São Paulo: Cortez, 1995. p. 48.
[2] AGUILLERA, Beatriz et alii. Educar para la paz. Madrid: Centro de Investigación para la Paz, s/d. p. 16-17.
[3] Idem, ibidem.
[4] ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 59.
[5] RICOEUR, Paul. História e Verdade. Rio de Janeiro: Forense, 1968. p. 227.
[6] BRANDÃO, Carlos. Op. Cit. p. 47.
[7] Apud GADOTTI, Moacir et alii. Paulo Freire: uma biobibliografia. São Paulo: Cortez, Instituto Paulo Freire; Brasília: Unesco, 1996. p. 52.

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