Edição 66

Reunião de Pais e Mestres

“Pais maus”

Carlos Hecktheuer

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Um dia, quando os nossos filhos estiverem crescidos o suficiente para entender a lógica que motiva os pais a serem “maus”, nós, pais, haveremos de dizer-lhes: “Nós os amamos”.

Nós amamos o suficiente para ter perguntado aonde vão, com quem vão e a que horas regressarão!

Nós os amamos o suficiente para não termos ficado em silêncio e por fazermos com que vocês soubessem que aquele novo amigo não era boa companhia.

Nós os amamos o suficiente para fazê-los pagar as balas que tiraram da mercearia e dizerem ao dono: “Nós roubamos isto e queremos pagar”.

Nós os amamos o suficiente para ter ficado em pé junto de vocês por 2 horas, enquanto limpavam seu quarto — tarefa que teríamos realizado em 15 minutos.

Nós os amamos o suficiente para deixá-los ver, além do amor que sentimos por vocês, o desapontamento e também as lágrimas nos nossos olhos.

Nós os amamos o suficiente para deixá-los assumir as consequências das suas ações, mesmo quando as penalidades eram tão duras que nos partiam o coração.

Mais do que tudo, nós os amamos o suficiente para, diante de nossas limitações, dizer-lhes não, quando sabíamos que vocês poderiam nos odiar por isso. Essa era a mais difícil batalha de todas.

Estamos contentes: vencemos! Porque, afinal, vocês também venceram! E qualquer dia, quando nossos netos forem crescidos o suficiente para entenderem a lógica que motiva os pais, nossos filhos vão lhes dizer quando eles perguntarem se seus pais eram maus: “Sim, nossos pais eram maus, eram os piores do mundo”.

As outras crianças comiam doces no café, e nós tínhamos de comer cereais, ovos e torradas. As outras crianças bebiam refrigerantes e comiam batatas fritas e sorvete no almoço, e nós tínhamos de comer arroz, feijão, carne, legumes e frutas. E eles obrigavam-nos a jantar à mesa, bem diferente dos outros pais, que deixavam os filhos comerem vendo televisão.

Eles insistiam em saber onde nós estávamos a toda hora. Era quase uma prisão. Nossos pais tinham que saber quem eram os nossos amigos e o que nós fazíamos com eles.

Insistiam que lhes disséssemos que íamos sair, mesmo que demorássemos só uma hora ou menos.

Nós tínhamos vergonha de admitir, mas eles violaram as leis do trabalho infantil.

Nós tínhamos de lavar a louça, fazer as camas, lavar a roupa, aprender a cozinhar, aspirar o chão e esvaziar o lixo.

Eu acho que eles nem dormiam à noite, pensando como nos fazer cooperar. Eles insistiam sempre conosco para lhes dizer a verdade, apenas a verdade; e quando éramos adolescentes, eles até conseguiram ler os nossos pensamentos. A nossa vida era mesmo chata.

Eles não deixavam nossos amigos tocarem buzina para que nós saíssemos. Tinham de subir, bater à porta para os conhecerem. Enquanto todos podiam sair à noite com 12, 13 anos, nós tivemos que esperar pelos 16 anos.

Por causa de nossos pais, nós perdemos imensas experiências na adolescência.

Nenhum de nós esteve envolvido em roubos, atos de vandalismo, violação de propriedade, nem fomos presos por nenhum crime. Foi tudo por causa deles, tudo muito monótono.

Agora que já saímos de casa, que somos adultos, honestos e educados, estamos a fazer o nosso melhor para sermos ‘pais maus’, tal como nossos pais foram”.

Eu acho que este é um dos maiores males do mundo de hoje: não há suficientes “pais maus”.

Carlos Hecktheuer é médico psiquiatra.

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