Edição 33

Matérias Especiais

Partem caravelas

Paulo Geraldo

partem_caravelasHá muito tempo — antes que existisse a abundância de bens de consumo a que agora estamos habituados —, a sabedoria popular considerava o nascimento de uma criança como receber um dom, uma prenda sem preço.

As nossas avós repetiam isso, com aquele espanto sempre renovado perante o mistério da vida.

Agora, o nascimento de uma criança é freqüentemente considerado como uma catástrofe. Deve ser evitado a todo custo. Prefere-se o nascimento de uma vaca ao de uma criança.

A vaca é útil.

Faz-se aquilo que for preciso para evitar um nascimento. Mesmo que seja a esterilização, mesmo que seja o aborto.

As crianças eram, antes, bem-vindas, mas agora não são.

Que foi que perdemos, entretanto? Como pudemos chegar a este ponto?

É verdade que nos tornamos materialistas. Tudo se tornou, para nós, num negócio. Todos os nossos pensamentos giram, agora, à volta de números: crédito, débito, mensalidades, multibanco…

Nasceram-nos calos nos dedos de tanto contarmos dinheiro.

Mesmo as poucas crianças que deixamos nascer são fruto de umas quantas contas, feitas antecipadamente, com todo o cuidado.

Não parecem ser resultado do amor. São filhas do cálculo.

E dizemos: “Agora, ainda não; mais à frente, se verá”. Fazemos contas. Fazemos sempre muitas contas.

Pesamos muito bem os prós e os contras. Quanto trabalho nos darão? Quanto tempo nos farão perder? Que bens teremos para lhes dar? E — temos de reconhecer que fazemos esta pergunta — que ganharemos com a vinda desse ser? Que trará ele à nossa vida?

O que aconteceu, porém, não foi apenas nos termos tornado materialistas. É que continuamos, cada vez mais, a falar dos direitos humanos. Trazemo-los na boca com uma facilidade que impressiona. Ora, os direitos do homem começam pelo direito a nascer, evidentemente.

Quando, com a boca cheia, dizemos direitos humanos, estamos a referir-nos apenas aos nossos próprios direitos. Ao nosso direito ao bem-estar, à comodidade e à satisfação dos nossos apetites.

Falamos de direitos humanos — nós, os que contamos dinheiro e fazemos abortos — e, por isso, somos hipócritas.

Acrescentamos, ao materialismo, a hipocrisia.

Não sei como suportamos nos olhar no espelho.

Transformamo-nos em canalhas e não nos demos conta disso.

Uma criança é, antes de mais nada, um dom. O dom mais belo que uma mulher pode oferecer ao marido; o dom mais belo que um homem pode oferecer à sua mulher; o dom mais belo que uma família pode oferecer à sociedade.

É verdade que o nascimento de um filho não produz nada de material, que não recebemos grande ajuda do Estado e temos de gastar muito dinheiro com ele. Mas, ao mesmo tempo, um filho é um poderoso estímulo para os pais, que desejam oferecer-lhe um ambiente agradável, uma boa educação, roupa, férias.

É também um estímulo para os poderes públicos, que terão de se modernizar, de melhorar as infra-estruturas e o sistema educativo.

Mas, se calhar, não estamos dispostos a receber estímulos. Estamos muito bem assim como estamos. Temos a barriga cheia, aquecimento em casa e uma conta confortável no banco. Não estão a correr nada mal os nossos planos para, em breve, podermos comprar um novo carro ou para, finalmente, tirarmos aquelas férias com que sempre sonhamos.

Aventuras? Sim, ouvimos falar delas nos bancos da escola.

Que grandes homens eram esses nossos antepassados que atravessavam mares imensos naquelas frágeis caravelas! E que vidas cheias tinham!

Ter uma criança significa que aceitamos embarcar numa dessas caravelas que, através de mares desconhecidos e tormentas, tentaremos levar a um bom porto. E que não há caminho de regresso.

Mas, hoje, o nosso sonho não vai sequer até a beira-mar. O nosso olhar tem um horizonte que não ultrapassa o nosso umbigo, que não chega sequer lá, no caso de a barriguinha estar demasiado pejada de prazeres…

Cada vez que parte outro navio, nós ficamos a olhar. Somos sempre aqueles que ficam na praia.

Terra firme! Terra firme! As mãos e os pés bem apoiados, não vá acontecer qualquer coisa…

Cada vez que parte outro navio, sentimos — mas fazemos por esquecer isso depressa… — que há algo em nós que gostaria de ter partido também. São vestígios das loucuras da juventude, pensamos. E, rapidamente, fazemos por retornar ao “bom senso”…

É também isto: envelhecemos antes do tempo. Revestimos de cinza a alma que devia ter ainda as cores do sonho e do ousar.

E quando, às vezes — talvez num passeio pelo parque ou na missa do domingo —, deparamos com uma família daquelas que têm muitos filhos, a mexerem-se agitadamente em brincadeiras e risos, calamos um não-sei-quê de inveja. Apressamo-nos a pensar coisas do estilo de “Estes pais são loucos… Nos tempos que correm…”.

O que nos acontece é que estamos a precisar de um pouco dessa “loucura” de ousar.

E como seria depois?, perguntamos prudentemente.

Depois… — sirvo-me de novo da sabedoria popular — cada filho que chega traz um pão debaixo do braço.

Texto extraído do site: http://cidadela.com.sapo.pt/prosa.htm

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