Edição 11

Lendo e aprendendo

Poesia dura de pedra!

“É o tal negócio:
eu sou nordestino e o nordestino acho que é
muito mais marcado pela paisagem e pela paisagem humana onde ele vive, porque quando é uma região sofrida, quer dizer, é uma região à miséria da miséria, e eu tenho a impressão que nenhum nordestino é indiferente ao meio em que
ele vive ou em que ele se criou .” (João Cabral)

A vida nordestina é tão áspera e sólida quanto a poesia de João Cabral de Melo Neto, que viveu a maior parte da sua infância e adolescência no meio rural, nos engenhos de cana-de-açúcar, lidando com a vida no campo e isto perpassa toda a sua obra. Mas também viveu em centros urbanos e, diante dos contrastes e diferenças ali encontrados, sua poesia começa a tomar uma forma mais reflexiva, tratando dos problemas sociais, principalmente dos problemas dos nordestinos, tanto os da zona da mata como os do sertão. Por causa disso, dois livros seus “carregam” no título a palavra pedra: Pedra do sono e A educação pla pedra, fazendo alusão ao solo e à secura do sertão.

E por falar em livros… Foi um autor único para a sua época. Enquanto todos os escritores procuravam escrever enfocando o sentimento, o lirismo, Cabral acreditava que não era necessária a “inspiração” para escrever, tratava suas poesias de forma extremamente objetiva e rigorosa, retratando a dureza da vida nordestina. Por isso, defendia a idéia de que o livro não deveria ser um “depósito de poemas”, preocupava-se em estruturá-lo antes mesmo de escrever os poemas. Essa convicção fica muito clara no trabalho feito com o livro A educação pela pedra. Ao analisá-lo, podemos perceber que foi minuciosamente projetado, tendo sua organização e distribuição de temas e poemas conforme as letras. Assim impunha rigores para si que fariam com que os poemas crescessem à medida que a edição do livro fosse tomando forma. Sendo, portanto, chamado poeta do rigor.

Baseando-se nesse aspecto, podemos caracterizá-lo como um poeta construtivista, bastante preocupado com a estética da obra. Preocupação que desenvolveu ao entrar em contato com a arquitetura e as artes plásticas, especialmente quanto viveu em Sevilha (Espanha). Foi bastante influenciado por artistas como Miró e Mondrian, além das teorias arquitetônicas de Le Corbusier, que propunham uma racionalidade ao espaço, retirando a historicidade, ou seja, desfazer-se por completo da história.

Podemos, então, fazer uma relação entre sua poesia e as formas geométricas propostas por essas tendências. Na verdade, sua poesia valoriza o aspecto visual.

Sua poesia é dividia em dois módulos: água construtiva e água articipante, sendo proposta pelo próprio autor no livro Duas águas. Água construtiva corresponde à valorização da construção do aspecto visual da poesia e água participante tece as dificuldades sociais do homem do nordeste.

Entretanto, é muito difícil identificar estes módulos, pois eles sempre dialogaram em toda a obra de Cabral.

Por mais que tenha viajado e morado fora do Brasil exercendo a função de diplomata durante quarenta anos, Cabral sempre se sentiu como homem do interior. Preferiu ficar preso às raízes e, coerente com suas idéias, nunca gostou de dar entrevistas ou de receber homenagens, mesmo tendo feito inúmeras durante toda a sua via.

Pronto! Esse é João Cabral de Melo Neto.

O Cão sem Plumas
Passagem do Capibaribe

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.

Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre
grávido de terra negra.

Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.

Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa.)

Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?

Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?

“Não sei, existe toda uma literatura em volta dessa coisa de poeta. Quero dizer, como se o poeta fosse assim: estado intermediário entre o homem e o místico, entre o homem e o centro, compreende? Como se o poeta fosse um sujeito predisposto ou um homem de tipo diferente. E não é nada disso!
O poeta é um escritor que usa uma
palavra que tem determinada maneira
de assumir a linguagem.”
(depoimento de João Cabral definindo “o poeta”)

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