Edição 22

Espaço pedagógico

Protegendo as Tartarugas Marinhas do Brasil

O que parecia aventura de uns certos jovens oceanógrafos, com seus sonhos maravilhosos de salvar as tartarugas marinhas do Brasil, hoje, é tão real quanto a vida. Com muito trabalho, pesquisa, conhecimento técnico e científico, amor e dedicação, eles foram aonde estavam as tartarugas.
O Projeto Tamar, executado pelo Ibama em parceria com a Fundação Pró-Tamar, monitora mil quilômetros de praia, com vinte bases cobrindo oito estados brasileiros. Nesse trabalho, 90% das pessoas envolvidas são membros das comunidades onde as bases estão instaladas.
O sucesso da ação preservacionista e a importância do papel social que exerce deram ao Tamar prestígio, credibilidade e reconhecimento nacional e internacional.
São 25 anos de vida e trabalho na proteção e pesquisa das tartarugas marinhas.

A história do Tamar

Até o final da década de 70, praticamente não havia no Brasil qualquer trabalho de conservação na área marinha. As tartarugas marinhas foram incluídas em uma lista de espécies ameaçadas de extinção, elaborada pelo antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF. As tartarugas estavam desaparecendo rapidamente por causa da captura em atividades de pesca, da matança das fêmeas e da coleta dos ovos na praia. Houve reação e denúncias, inclusive com repercussão internacional.
Em 1980, o IBDF criou o Projeto Tamar, com o objetivo de salvar e proteger as tartarugas marinhas do Brasil. Pesquisadores levaram dois anos percorrendo o litoral brasileiro para identificar as espécies, os locais de desova, o período de reprodução e os principais problemas relativos à exploração. Depois de identificados os principais pontos de reprodução, o trabalho de conservação começou na Bahia (Praia do Forte), no Espírito Santo (Comboios) e no Sergipe (Pirambu). Em 1982 e 1986, a Superintendência de Desenvolvimento da Pesca – Sudepe, publicou portarias proibindo a captura de tartarugas de quaisquer espécies. Atualmente, normas nacionais e internacionais visam proteger esses animais. Assim nasceu o Projeto Tamar, hoje ligado institucionalmente ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Não-renováveis – Ibama, órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. O Tamar conta com a ajuda de empresas e instituições nacionais, além de organizações não-governamentais. Nos Estados Unidos, mantém convênios para intercâmbio e cooperação técnica com a University of Florida (Archie Carr Center For Sea Turtle Research), Conservation International – CI, Wider Caribbean Sea Turtle Network – Widecast, e Frankfurt Zoological Society – FZS, Alemanha. A metodologia desenvolvida pelo Tamar é reconhecida internacionalmente e obedece às diretrizes da Union For Nature Conservation – UNC.
Em 1998, o Tamar ganhou um aliado imprescindível: a Fundação Pró-Tamar, entidade sem fins lucrativos, criada para apoiar, agilizar e possibilitar o desenvolvimento do trabalho de conservação das tartarugas marinhas. Conveniada ao Ibama, a Fundação é responsável por parte das atividades nas áreas administrativa, técnica e científica e pela captação de recursos junto à iniciativa privada e agências financiadoras — além das atividades de arrecadação, integrantes do seu programa de auto-sustentação.
A Fundação gerencia mais de 60% da operação do Projeto, inclusive grande parte dos recursos humanos. Realiza monitoramentos constantes e dá informação, apoio logístico e operacional a diversas atividades de fiscalização de Unidades de Conservação e ecossistemas costeiros protegidos pela Constituição Federal, junto com o Ibama e outros órgãos estaduais e municipais de proteção ao meio ambiente. O Projeto usa criatividade para cumprir uma das funções que lhe cabe: desenvolver técnicas conservacionistas pioneiras e promover, junto às comunidades costeiras locais, a busca de alternativas econômicas não predatórias capazes de melhorar a qualidade de vida do homem.

Como funciona o Tamar

Ao longo dos seus 24 anos, o Tamar–Ibama foi aperfeiçoando sua forma de trabalhar, sempre com soluções criativas para preservar as tartarugas marinhas. Da Bahia, do Espírito Santo e de Sergipe, foi se espalhando pelo litoral brasileiro e ilhas oceânicas.
Hoje são vinte bases, espalhadas por oito estados, em pontos estratégicos da costa — pontos de desova e de alimentação. Todas as estações têm estrutura operacional proporcional à demanda e ao tempo de implantação de cada uma. Algumas funcionam ininterruptamente, e outras, apenas nas temporadas de desova.
A pesquisa aprimora as técnicas de conservação e treina estudantes para trabalhos futuros.
Desenvolve programas de pesquisa em parceria com várias universidades e oferece estágios destinados à formação e ao aperfeiçoamento de estudantes recém-formados nas áreas de Biologia, Engenharia de Pesca, Veterinária, Oceanografia e outros cursos que enfoquem a questão ambiental. Cinqüenta estagiários são treinados por ano, no período de desova.

As bases de campo estão vinculadas a cinco sedes regionais:

Ubatuba (SP)
Regência (ES)
Praia do Forte (BA)
Pirambu (SE)
Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha (PE)
Cada estado tem uma ou mais bases — nesse caso, uma funciona como base-mãe. Praia do Forte, na Bahia, é sede da Coordenação Nacional e, junto com a base de Arembepe, registra o maior índice de desova de todo o litoral brasileiro.

As tartaruguinhas se orientam pela claridade do horizonte marinho

No período da desova — de setembro a março, no litoral, e de janeiro a junho, nas ilhas oceânicas —, as áreas principais são patrulhadas, todas as noites, pelos pescadores contratados pelo Tamar, além de estagiários e executores das bases para proteção dos ovos e das fêmeas. Utilizando técnicas de conservação e manejo internacionalmente aceitas, os técnicos do Tamar–Ibama marcam as nadadeiras anteriores, identificando o animal com um número individual e uma inscrição com o endereço do Tamar e a solicitação de que seja notificado quando e onde aquela tartaruga foi encontrada.
Quando isso acontece, é possível estudar o comportamento da desova e as rotas migratórias, possibilitando um maior conhecimento das populações. Sabe-se, por exemplo, quantas vezes uma fêmea adulta retorna à praia para desovar em um mesmo período reprodutivo, o intervalo dos retornos, o local escolhido e o período entre uma estação de desova e a próxima. É feita, ainda, análise biométrica para cada espécie, medindo comprimento e largura do casco.
Durante as rondas noturnas, em áreas de estudo intensivo, os ninhos são localizados através dos rastros deixados na areia pelas tartarugas. Os que estiverem em loa a sobrevivência dos filhotes são transferidos para trechos mais protegidos, na praia, ou para os cercados totalmente abertos, expostos a sol e chuva, nas bases do Tamar, onde se tenta reproduzir as condições naturais para a incubação dos ovos. Nesses locais, ficam protegidos de qualquer ação predatória (natural e humana), da erosão e das marés, possibilitando um manejo adequado e melhores resultados de eclosão.
Hoje, como resultado do trabalho de educação ambiental desenvolvido pelo Tamar junto às comunidades, a maioria dos ninhos não é mais violada nem os ovos coletados para servir de alimento. Assim, já não precisam ser transferidos com a freqüência de antigamente. Ficam nos locais de origem, onde a equipe de pesquisadores do Tamar acompanha as condições de incubação em ambiente natural — importante ferramenta para indicar, a partir da análise comparativa entre ninhos naturais e transferidos, se o manejo está adequado. Sabe-se, por exemplo, que o sexo das tartarugas não se define na fecundação, pois sua determinação sofre influência decisiva da temperatura da areia: temperaturas médias mais altas determinam o nascimento de fêmeas, e as mais baixas, o de machos. Também por isso o ideal é que se mantenha na praia o maior número possível de ninhos naturais. Quando finalmente os filhotes saem à superfície, são contados, identificados e soltos para seguirem até o mar. Nesse caminho, enfrentam novas ameaças, como a ação de animais predadores e a iluminação artificial. Os filhotes possuem fototropismo positivo, ou seja: guiam-se pela claridade do horizonte para seguirem até o mar. Na presença de qualquer fonte de iluminação artificial, são atraídos pela luz e vão em direção à terra, morrendo atropelados, de insolação ou pela ação de predadores.

Nem tudo que cai na rede é peixe

Respeitando as características regionais e as diferenças de realidade, o Tamar–Ibama define metodologias e prioridades. Mas, de um modo geral, as atividades seguem um padrão, em todo o País. Em cada temporada de reprodução, aproximadamente oito mil ninhos são protegidos, possibilitando a liberação de cerca de 350 mil filhotes, das cinco espécies de tartarugas marinhas encontradas no Brasil.
Além das atividades realizadas nas áreas de desova, o Tamar–Ibama mantém bases de conservação e pesquisa em áreas onde esses animais se alimentam, e a captura acidental pela pesca artesanal é significativa. Acreditando que a solução para o problema seja o maior conhecimento das populações e, conseqüentemente, o desenvolvimento de alternativas econômicas eficazes, o Tamar criou o programa Nem Tudo que Cai na Rede é Peixe. Nas bases localizadas em áreas de alimentação, a dinâmica de trabalho é diferente, pois o monitoramento é quase todo realizado no mar, muitas vezes junto às atividades pesqueiras.
Apesar de utilizar a mesma filosofia — integrar as pessoas das comunidades no desempenho das atividades de rotina da conservação das tartarugas marinhas —, nessas áreas os pescadores são orientados a salvar as tartarugas que ficam presas nas redes de espera, nos cercos e nos currais (principais artes de pesca envolvidas nesse trabalho). Muitas tartarugas presas nas redes parecem mortas, mas na verdade estão apenas desmaiadas. É possível reanimá-las adotando o mesmo procedimento utilizado em casos de afogamento de seres humanos. Completando o processo de reanimação, as tartarugas são marcadas, medidas, registradas e libertadas no mar, logo que se mostram recuperadas.

Pesquisa aplicada para resolver questões práticas

Desde sua criação, o Projeto Tamar–Ibama investe em recursos humanos e materiais para adquirir mais conhecimento sobre a biologia das tartarugas marinhas. Prioriza pesquisas aplicadas que resolvam aspectos práticos para a conservação desses animais. Conhecidas pela alta capacidade migratória, com um ciclo de vida de longa duração, as tartarugas marinhas ainda são um mistério para pesquisadores do mundo inteiro. Pesquisas já realizadas no Brasil nas áreas de reprodução abordam estudos sobre comportamento reprodutivo, condição de incubação de ninhos e sua distribuição espacial e temporal para as diferentes espécies e áreas de reprodução. Há ainda estudos comparativos referentes à temperatura de ninhos naturais e transferidos pivotal (temperatura da areia durante o período de incubação que origina 50% de filhotes para cada sexo); e DNA mitocondrial para verificar a estrutura genética das tartarugas e conseqüentemente das populações.
Nas áreas de alimentação, existem duas linhas básicas de pesquisa. A primeira refere-se ao salvamento de animais capturados acidentalmente em diferentes artes de pesca, através de análise quali-quantitativa, marcação e biometria. A segunda estuda o comportamento dos animais através de captura durante mergulho livre, quando se coletam dados biométricos para estudo de parâmetros de crescimento em ambiente natural. Seguindo a metodologia empregada nas áreas de desova, foi criado um banco de dados para organizar e padronizar a coleta de dados em nível nacional. A equipe do Tamar–Ibama já produziu 120 trabalhos científicos publicados em congressos e revistas especializadas nacionais e internacionais, incluindo teses de mestrado e doutorado.

As tartarugas

As tartarugas marinhas existem há mais de 150 milhões de anos e conseguiram sobreviver a todas as mudanças do planeta. Mas sua origem foi na terra e, na sua aventura para o mar, evoluíram, diferenciando-se de outros répteis. Assim, o número de suas vértebras diminuiu e as que restaram se fundiram às costelas, formando uma carapaça resistente, embora leve. Perderam os dentes, ganharam uma espécie de bico e suas patas se transformaram em nadadeiras. Tudo para se adaptarem à vida no mar. Existem sete espécies de tartarugas marinhas, agrupadas em duas famílias — a das Dermochelydae e a das Chelonidae. Dessas sete espécies, cinco são encontradas no Brasil: Cabeçuda (Caretta caretta), de Pente (Eretmochelys imbricata), Verde (Chelonia mydas), Oliva (Lepidochelys olivacea) e de Couro (Dermochelys coriacea).
As tartarugas marinhas são répteis e, como tal, possuem pele seca, coberta de placas, respiram por pulmões e a temperatura do corpo é regulada pela temperatura ambiente. Pertencem à mesma ordem das tartarugas de água doce e de terra, como o cágado e o jabuti, mas são muito maiores, podendo atingir até 750 quilos. Mas, em vez de patas, têm nadadeiras e vivem todo o tempo no mar.
Somente as fêmeas saem da água, por um curto período de tempo, para a desova. Na terra, são lentas e se tornam vulneráveis, mas no mar se deslocam com rapidez e agilidade. O corpo das tartarugas marinhas é recoberto por um casco, formado por placas córneas e ósseas, cuja função é protegê-las dos predadores e aumentar a hidrodinâmica, facilitando o deslocamento na água. Embora tenham pulmão, podem permanecer algumas horas embaixo d’água, prendendo a respiração. Para isso, o organismo funciona lentamente, o coração bate devagar, num fenômeno chamado bradicardia, em que o fornecimento de oxigênio é auxiliado por um tipo de respiração acessória, feita pela faringe e cloaca.

A reprodução ocorre em intervalos de um a três anos

As tartarugas não são animais de cérebro evoluído, mas têm a visão, o olfato e a audição extremamente desenvolvidos, além de uma fantástica capacidade de orientação. Por isso, mesmo vivendo dispersas na imensidão dos mares, sabem o momento e o local da reunião para reprodução. Nessa época, realizam viagens transcontinentais para voltar às praias onde nasceram e, ali, desovar. Os pesquisadores ainda não conseguem explicar muito bem esse fantástico senso de orientação. Sabe-se, porém, que o ciclo de reprodução das tartarugas pode se repetir em intervalos de um, dois ou três anos, variando conforme a espécie e as condições ambientais, especialmente a distância entre as áreas de alimentação e reprodução.
O acasalamento ocorre no mar, em águas profundas ou costeiras. A fêmea escolhe um entre vários machos, e o namoro começa com algumas mordidas no pescoço e nos ombros. A cópula dura várias horas e uma fêmea pode ser fecundada por vários machos. A fecundação é interna, e uma fêmea pode realizar, em média, de três a cinco desovas para uma mesma temporada de reprodução, com intervalos médios de dez a quinze dias.

As tartarugas voltam para desovar na praia onde nasceram

As fêmeas sempre voltam para desovar na mesma praia em que nasceram e fazem as posturas em locais próximos uns dos outros. Procuram praias desertas — no Brasil, entre setembro e março — e, via de regra, esperam o anoitecer, porque o calor da areia, durante o dia, prejudica a postura, e a escuridão as protege de vários obstáculos. Quando a noite vem, as tartarugas escolhem um trecho da praia livre da ação constante das marés e, com as nadadeiras dianteiras, escavam um grande buraco redondo, de mais ou menos dois metros de diâmetro — a cama —, onde vão se alojar para iniciar a confecção do ninho. Elas podem fazer várias camas, até escolherem uma para pôr os ovos.
Escolhida a cama, elas fazem, com as nadadeiras traseiras, um outro buraco para o ninho, que tem cerca de meio metro de profundidade e se parece com uma garrafa enterrada na areia, com uma boca que vai se alargando para o fundo. Aí ela coloca os ovos, redondos e brancos, parecidos com uma bola de pingue-pongue. Os ovos ficam bem protegidos, recobertos por uma espécie de muco e pela areia com que a tartaruga cobre o ninho. Em cada postura, uma tartaruga coloca, em média, 120 ovos, mas os pesquisadores do Tamar já registraram ninhos com apenas 16 e outros com até 240 ovos.
Depois da postura, a mãe volta para o mar, e, de 45 a 60 dias depois, os ovos se rompem e nascem as tartaruguinhas. Um filhote vai ajudando o outro, com movimentos sincronizados, retirando a areia, até alcançarem a superfície do ninho e correrem para o mar.

O ano perdido: ainda há muito o que aprender

O nascimento ocorre quase sempre à noite, e, para chegarem ao mar, elas se orientam pela luminosidade do horizonte. Mas uma chuva forte, causando o resfriamento da areia, pode provocar o nascimento de uma ninhada durante o dia. Os filhotes são pequenos e frágeis, medindo apenas cerca de cinco centímetros. Muitos são devorados por siris, aves marinhas, polvos e principalmente peixes. Outros morrem de fome e doenças naturais. Estima-se que, de cada mil tartarugas nascidas, apenas uma ou duas vão chegar à idade adulta. Mas, depois de adultas, poucos animais conseguem ameaçá-las — à exceção do homem.
Durante cerca de catorze meses, as novas tartarugas desaparecem — os pesquisadores chamam de ano perdido —, quase não há informações sobre o que se passa com elas nesse tempo. Imagina-se que fiquem boiando por entre as algas ou vagando no mar aberto.
Após um ano, podem ser vistas nos recifes e nas praias do litoral, buscando alimento. As tartarugas marinhas são oportunistas, geralmente onívoras (comem de tudo), embora uma espécie se alimente apenas de algas após o primeiro ano de vida e outra prefira alimentos gelatinosos, como medusas e águas-vivas. Somente na fase adulta vão se tornar visíveis as diferenças entre machos e fêmeas. A cauda do macho, por exemplo, se torna mais grossa e chega a ultrapassar as nadadeiras posteriores. As tartarugas ganham muito peso. Um filhote recém-nascido da tartaruga de couro tem 30 gramas em média e, na idade adulta, chega a 750 quilos. Para atender às suas necessidades alimentares, freqüentemente mudam de lugar.

Fonte: Revista do Tamar nº 3 – 1999 – Brasil – Projeto Tamar–Ibama. E-mail: protamar@e-net.com.br

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