Edição 106

Em discussão

Que terreno é você?

Gildha Salgueiro

Tomaz era um funcionário público que se enquadrava perfeitamente no rol das exceções, pois sempre estava de bom humor, tratava a todos com muito respeito e atenção e, invariavelmente, nunca faltara ao trabalho por motivo fútil. Em vinte e três anos de labuta no serviço estatal, as poucas faltas que tivera foram todas abonadas. No geral, Tomaz se sentia feliz em trabalhar naquela repartição, apesar dos conflitos de interesse e de convivência que sempre teimavam em dar o ar da graça e tornar o ambiente pesado, pois logo a tensão dava lugar à descontração, e a vida ali seguia seu curso.

Morando a pouco mais de uma hora do local onde trabalhava, Tomaz pegava o trem das sete horas da manhã e, para retornar ao lar, pegava o das dezessete horas. Tinha por hábito almoçar num restaurante próximo que abrira há alguns anos, o que lhe rendeu uma forte amizade com os donos do estabelecimento, que o tinham na mais alta conta.

Mas, nos últimos meses, algo vinha inquietando Tomaz. Talvez fosse uma ramificação da lesão por esforço repetitivo (LER), no seu caso seria lesão por trabalho repetitivo (LTR). Provavelmente todos os trabalhadores passassem por essa fase quando trabalhavam por muito tempo num mesmo local — pensou.

No entanto, aquela sensação inquietante persistia, e Tomaz se sentia cada vez menos motivado. Arrastava-se da cama para trabalhar todos os dias, porém a sua vontade era ficar embaixo dos lençóis. Estaria ele com depressão? — indagou. Todavia não se sentia em estado depressivo, pois aquela situação só se apresentava em relação ao trabalho, assim teve certeza de que não era a famigerada “doença da alma”.

Certa manhã, Tomaz tomou o seu assento costumeiro no trem, do lado da janela, e sobre a sua inquietude se pôs a pensar. Refletiu sobre a sua vida profissional e concluiu que fizera a escolha certa quando ingressou no serviço público, também estava feliz pela família que construiu, as amizades que tinha, e, como num passe de mágica, a resposta que vinha buscando nos últimos tempos apareceu inteligível e absoluta na sua mente. A verdade é que, apesar de trabalhar por tanto tempo naquele lugar, Tomaz ainda não tinha encontrado o sentido para o que fazia. Sabia o que tinha de fazer e por que o fazer, mas isso lhe soava mecânico e estéril.

A partir daquele momento, Tomaz decidiu encontrar um sentido para o seu trabalho, algo que ultrapassasse o limite do convencional, da zona de conforto e da repetição improfícua. Mas, para realizar o seu intento, o nosso amigo precisava de um fulcro para sustentar a sua investigação, foi quando avistou pela janela um lavrador no campo a semear, e aquela cena ficou gravada em sua memória como a lhe dizer algo muito importante.

Ao chegar à repartição onde trabalhava, Tomaz resolveu pesquisar na Internet sobre o ato de semear, e o primeiro site que a página do Google mostrou foi o de um texto bíblico: Jesus falou muitas coisas por parábolas, dizendo: “O semeador saiu a semear. Enquanto lançava a semente, parte dela caiu à beira do caminho, e as aves vieram e a comeram. Parte dela caiu em terreno pedregoso, onde não havia muita terra, e logo brotou, porque a terra não era profunda. Mas, quando saiu o sol, as plantas se queimaram e secaram, porque não tinham raiz. Outra parte caiu no meio dos espinhos, que cresceram e sufocaram as plantas. Outra ainda caiu em boa terra, deu boa colheita, a cem, sessenta e trinta por um. Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça!” (Mateus 13, 3-9).

Ali, diante daquela tela de computador, Tomaz teve a mais bela revelação da sua vida. Apesar de não ser um homem de Igreja, tinha uma fé viva e verdadeira em Deus e em suas obras, sempre soubera separar as coisas do mundo e aquelas do Alto, por isso jamais se decepcionara com os escândalos que envolviam as Igrejas pérfidas dos homens. O certo é que, através daquela parábola, Jesus lhe mostrou a resposta para a sua inquietação, e, sobre a mesma, construiu a seguinte reflexão análoga:

— Existem dois semeadores: um é representado pelo bem, e o outro pelo mal; as sementes que ambos carregam são, respectivamente, os bons e os maus sentimentos, e nós somos a terra, porém existem muitos tipos de solo. O bom semeador é sempre o primeiro a semear as boas sementes, e não há escolha de solo, apesar de ele saber que não são iguais. O resultado é o já esperado. A terra fértil acolhe a semeadura e dá frutos em abundância. A terra pedregosa recebe as sementes do bem, porém não tem profundidade para fazê-las germinarem, aí vem o semeador do mal e sufoca as boas sementes com as más, que não necessitam de muita coisa para vingar; são como ervas daninhas, que logo germinam e se alastram. Os frutos gerados são dor, sofrimento, tristeza, agonia, depressão, entre tantos outros. E assim são os outros tipos de solo: quanto menor for a fertilidade, maior será a propensão para as coisas das trevas.

O semeador do mal semeia sempre depois do bom semeador, que semeia em nós, todos os dias, os bons sentimentos, como o amor, a alegria, a bondade, a caridade, o perdão. O mau semeador age como ave de rapina, fica à espreita, à espera de suas vítimas — os solos inférteis, aqueles que não se abrem ao “adubo” do Senhor e não se deixam irrigar pela Sua Palavra.

Apesar de Deus não ser insensível ao sofrimento humano e não estar alheio às investidas das trevas contra os seus filhos, toda essa condição é parte do que somos, e disso não podemos fugir nesta vida. Todavia, quando o “fardo” fica insuportável para nós, somos resgatados para o Pai Celestial. Mesmo nos dando a liberdade de escolha, ou o livre-arbítrio, Deus não nos deixou à deriva neste mundo, abandonados à própria sorte ou à mercê do mal. Na alegria, Ele (o Senhor) está ao nosso lado, apesar de não percebermos a sua presença. Na dor, carrega-nos no colo e atravessa conosco o pântano sombrio das lágrimas nefastas.

Tomaz se sentiu regozijado pela reflexão suscitada. A questão que se mostrava latente cristalizou-se, e agora ele via com nitidez o que estava lhe causando aquela desmotivação no trabalho. Necessariamente não era a atividade que exercia, mas o fato de ter se deixado “contaminar” pelos “solos inférteis” que haviam no seu local de trabalho. Aquela convivência maléfica o tinha tornado um homem taciturno, e o ato de calar-se diante das maledicências que ouvia no dia a dia lhe fez muito mal, a ponto de confundir seus sentimentos e causar-lhe aversão ao trabalho que tinha escolhido para a sua vida.

Tomaz decidiu, naquele instante, que a transferência de “poder” acabava por ali. Não permitiria mais se deixar envolver por pessoas infelizes, e seu propósito, daquele dia em diante, foi descobrir que terreno ele era ou, pelo menos, o que sobrepujava em relação à semeadura de Deus. Agora, sempre que conversa ou atende alguém naquela repartição pública em que trabalha, antes de qualquer coisa o servidor Tomaz pergunta:

— Que terreno é você?

E as respostas? Ah, isso é uma outra história. Eu conto depois!

Maria Gildha da Silva (Gildha Salgueiro) é servidora pública do Estado de Pernambuco (pedagoga da Gerência Regional de Educação do Sertão Central) e professora efetiva do quadro de docentes da Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central (Fachusc). Escritora, já participou de concursos de literatura, e muitas de suas produções assina sob o pseudônimo de Nelson Salgueiro, uma homenagem ao pai (Manoel Felipe da Silva, popular Nelson), que partiu em 2013. Tem alguns textos publicados no site: recantodasletras.com.br.

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