Edição 18

Lendo e aprendendo

Santos Dumont: um gênio, um artista, um sonhador…

Glória Tavares

Há 98 anos, em Paris, mais precisamente no dia 23 de outubro de 1906, um brasileiro inovador e audacioso, admirado pelo povo francês, colocava no ar uma invenção que mudaria o século XX: o 14 bis.

Alberto Santos Dumont concretizou um sonho que, há mais de um milênio, vem sendo um desejo do homem: voar pelos céus. Desde a Antigüidade, figuras míticas — como Dédalo e Ícaro, na antiga Grécia; Mercúrio, na mitologia romana; e Thor, entre os povos nórdicos — desejavam voar, já que isso representava poder, e só as aves o faziam.

Muitos foram os que tentaram alçar vôo ao longo dos tempos: o sábio Leonardo da Vinci, na metade do século XV; o brasileiro Pe. Bartolomeu de Gusmão, em 1709, com um engenho mais leve que o ar: o balão, que poderia erguer-se no ar; o sueco Swedeborg, em 1716; os irmãos franceses Montgolfier, em 1783; entre outros nomes que antecederam Santos Dumont e contribuíram para a história da aviação mundial.

A destinação de Santos Dumont manifestou-se desde a infância e, como as árvores, que, da semente, crescem, desenvolvem-se e dão frutos, a sua existência de aeronauta passou por todas essas fases de evolução: da ansiedade do menino aos estudos do rapaz, que prepararam o arcabouço das suas vitórias aeronáuticas; da dirigibilidade do mais leve à navegação com o mais pesado que o ar.

Ele assinava Santos Dumont para indicar que considerava igualmente importante tanto a sua ascendência luso-brasileira quanto a francesa. Seus pais, Henrique Dumont e D. Francisca de Paula Santos, trouxeram-no ao mundo em 20 de julho de 1873, na Fazenda Cabangu, na cidade de Palmeira, atual Santos Dumont, em Minas Gerais. Ele foi o sexto dos oito irmãos, o único que não chegou a completar qualquer curso superior, entretanto o mais ilustre membro da prole.

Toda a vida de Santos Dumont foi dedicada à conquista do ar. Na sua infância, a ascensão dos pequenos balões de papel que os meninos soltavam nas noites de São João despertava a sua imaginação. Mais tarde, já rapaz, quando o conhecimento e as primeiras luzes do saber lhe despertaram a inteligência, sua imaginação foi conquistada definitivamente pelas predições de um dos mais férteis escritores do século XIX: o famoso Júlio Verne. Os submarinos, os balões, os transatlânticos e todos os outros meios de transporte que o escritor francês previu com tanta facilidade envolveram o jovem Santos Dumont.

Em um trecho de seu livro autobiográfico, Os meus balões, Santos Dumont relembra: “Ser-me-ia impossível dizer com que idade construí os meus primeiros papagaios de papel. Lembro-me, entretanto, nitidamente, das troças que faziam de mim os meus camaradas, quando brincavam de ‘passarinho voa’”.

Essa brincadeira é bem curiosa. As crianças colocam-se em torno de uma mesa e uma delas vai perguntando em voz alta: “Pombo voa?”… “Galinha voa?”… “Urubu voa?”… “Abelha voa?”… E, assim, sucessivamente. A cada chamada, todos devem levantar o dedo e responder à pergunta. Acontece, porém, que, de quando em quando, uma criança grita: “Cachorro voa?”… “Raposa voa?”… ou algum disparate semelhante, a fim de confundir os participantes. Se alguma levantar o dedo, terá de pagar uma prenda. Quando Santos Dumont brincava com seus companheiros, eles geralmente perguntavam, maliciosamente, depois de piscar o olho: “Homem voa?”… E, no mesmo instante, um dedo era levantado, e ouvia-se a resposta: “Voa!”, com entonação de certeza absoluta, e o pequeno Alberto recusava-se, obstinadamente, a pagar a prenda.

Sempre empolgado com a possibilidade de ver concretizado o seu grande sonho, Santos Dumont, aos dezenove anos, parte para Paris, a então “capital do mundo”. Lá ele passou a residir em companhia de parentes paternos e teve a oportunidade de estudar as primeiras noções de Física, Química, Eletricidade e, como não podia faltar, de Mecânica. Realmente, a França, em especial a sua capital, foi a chave que abriu as portas do seu sucesso.

Paris fervilhava. No campo da Aeronáutica, a passagem do século foi marcada por muitas comemorações. Sucediam-se iniciativas. Uma delas foi a oferta de 100 mil francos do empresário Deutsch de la Meurthe, ligado à exploração e ao refino de petróleo, para quem conseguisse, tanto em dirigível como em aeroplano, contornar a Torre Eiffel, cumprir um trajeto e retornar ao ponto de partida no tempo máximo de meia hora.

Em 13 de julho de 1901, Santos Dumont concorreu ao prêmio com o Dirigível nº 5. Nessa tentativa, o aeróstato subiu, mas, após contornar a torre, o motor da aeronave parou, e o vento a arrastou, fazendo-a ir de encontro às árvores do Parque de Edmond de Rotschild.

Porém, isso não foi motivo de desistência, e, no mês seguinte, em 8 de agosto, iniciou a segunda tentativa. Fez o mesmo trajeto inicial, e, quando voltava, o balão perdia hidrogênio. As tentativas para conseguir concluir o seu objetivo foram inúteis. O aparelho caiu e bateu contra o telhado do Hotel Trocadero, causando uma enorme explosão. Santos Dumont ficou suspenso na quilha de seu Dirigível nº 6, concluído em dois dias.

Em 19 de outubro do mesmo ano, sob as vistas de juízes membros da comissão do Aeroclube da França e do próprio Deutsch de la Meurthe, a aeronave subiu meio de lado, ganhou altura gradativamente, alcançou a Torre Eiffel em plenas condições de segurança e, 9 minutos após a partida, já a havia contornado e iniciava a volta. O público aplaudia. Aqueles que estavam em suas casas e escritórios saíram às ruas. O trânsito parou. Mas Santos Dumont dispunha de apenas vinte minutos para regressar, contra o vento, com ameaça de pane no motor. O aviador conseguiu superar o problema, manobrou os lastros e restabeleceu o nivelamento do dirigível. Nesse momento, o público dava como certa a vitória. A manifestação era grande, chapéus eram atirados para cima, pessoas subiam em pontos altos para saudá-lo. Aquele homem pequeno, com pouco mais de 1,50 metro de altura, e seus magros 50 quilos; aparência sisuda; pele pálida; bigodes espessos; sempre metido em ternos escuros e bem cortados e debaixo de um chapéu panamá de copa alta, conquistara a Cidade Luz.

Ele recebeu o prêmio de 100 mil francos e cumpriu sua promessa de dividi-los: uma metade para seus mecânicos e a outra para os pobres de Paris. Imediatamente, o governo brasileiro também o contemplou com igual soma.

Daí em seguida, o seu objetivo foi a construção de um aparelho mais pesado que o ar. De repente, em julho de 1906, para surpresa de todos, Petit Santôs, como era chamado pelo povo francês, apareceu com um avião a motor pronto — era o 14bis.

No dia 23 de outubro, decolou com o aparelho para vencer o prêmio Archdeacon, destinado a quem conseguisse voar por mais de 25 metros. Ele conseguiu voar aproximadamente 60 metros a 2 metros de altura, para, em seguida, desabar desajeitadamente no chão. Mas pouco importava. A multidão presente no Campo de La Bagatelle, que havia acompanhado com a respiração suspensa seus 7 segundos de vôo, vibrou e aclamou Santos Dumont. Era a glória.

Após esse dia, outros projetos se sucederam. Depois do 14bis, vieram os modelos 15, 16 e 17. Em seguida, ele construiu o primeiro monoplano, o gracioso Demoiselle, que deverá sobrevoar os céus de Paris em 2006, em comemoração dos 100 anos da aviação. Vale salientar que a réplica está sendo fabricada no Brasil, em Americana.

Além do avião, Santos Dumont inventou o relógio de pulso — necessário aos seus vôos, para controlar o tempo e não ficar sem combustível no ar —, o hangar, a porta de correr e outras invenções que podem ser vistas na residência construída por ele em Petrópolis: A Encantada, no antigo Morro do Encanto. Lá, podemos conhecer a escada em forma de raquete — que dá acesso à residência e faz com que o visitante coloque sempre o pé direito ao subi-la —, entre outras invenções que valem a pena serem vistas quando em visita à cidade fluminense.

A polêmica sobre quem é realmente o Pai da Aviação persiste até os nossos dias. A revista Asas, em sua edição de fevereiro/março de 2003, traz a matéria Uma falsa polêmica, em que vários argumentos são expostos defendendo a posição de Santos Dumont como o pioneiro da aviação mundial. Dos argumentos apresentados, há vários que são muito convincentes e persuasivos e estão relacionados aos irmãos norte-americanos Wilbur e Orville Wright. As experiências deles eram às escondidas, e sequer a vizinhança sentia curiosidade em vê-las. Como provar a veracidade dos fatos? Algumas testemunhas oculares, entre elas Octave Chanute, deixaram claro que não houve nenhuma decolagem. Outra controvérsia foi o fato de terem solicitado uma patente em 1904, junto ao governo britânico, para um “planador sem motor” e afirmarem a invenção de uma aeronave dotada de motor no ano anterior. Mais tarde ainda, em 1905, eles enviaram uma carta ao Ministério da Guerra norte-americano, em que propunham a construção de uma máquina voadora, mas nenhum projeto ou especificação acompanhava tal proposta. Como o governo sugeriu que a máquina fosse construída e mostrada em operação real, sendo capaz de fazer um vôo horizontal e de carregar um operador, os irmãos Wright abandonaram o assunto. Por quê? Uma vez que tinham voado em 1903, facilmente poderiam realizar a demonstração pedida pelas autoridades. Ou não poderiam?!

Em 1907, não só Santos Dumont, mas também Voisin, Blériot, Farman e Delagrange estavam voando com máquinas mais pesadas que o ar. No ano seguinte, os irmãos Wright finalmente realizaram, na Europa, a primeira demonstração da sua máquina, o Flyer; ela era lançada ao ar por uma catapulta instalada numa rampa.

No auge de sua criatividade, Santos Dumont foi traído pela saúde. Com menos de 40 anos, já se sentia cansado e envelhecido e começou a sentir os sintomas de uma doença grave, a esclerose múltipla.

Inicia-se a 1ª Guerra Mundial, e ele é tomado como espião alemão; é preso, mas solto no dia seguinte pelo governo francês. Fica arrasado, em estado de choque, e queima seus arquivos, projetos e diários. Também o deprime ver seu invento usado para bombardear cidades. Volta ao Brasil. Tenta morar em Petrópolis, em São Paulo, em Cabangu, mas não se sente bem em nenhum lugar. A doença se agrava, a depressão aumenta. Refugia-se, desesperado, em um sanatório da Suíça. Em 1928, de volta ao Rio de Janeiro, vê um acidente em que um hidroavião batizado com seu nome espatifa-se, afunda e mata todos os tripulantes que o homenageavam. A depressão aumenta. Em 1930, o seu estado piora e, no ano seguinte, o seu sobrinho Jorge Dumont Vilela o leva para um hotel em Guarujá. O País estava em guerra civil, a conhecida Revolução Constitucionalista de 1932. Ele sabia que aviões de guerra sobrevoavam Santos, bem perto de seu refúgio.

No dia 23 de julho de 1932, aos 59 anos, enforca-se com uma gravata no banheiro do quarto do hotel La Plage. O governo paulista explorou politicamente a morte do inventor, dizendo que ele havia se matado por saber que Getúlio Vargas estava usando o avião como arma de guerra. Vargas, por sua vez, fez divulgar a versão de que o herói havia morrido de forma natural. Alguns dizem que seu sobrinho e companheiro o abandonara. Outros, que a cantora lírica Bidu Sayão o visitava no hotel. Há mesmo quem diga que o inventor era apaixonado por Yolanda Penteado.

Indubitavelmente, Santos Dumont fez as distâncias geográficas desaparecerem, absorvidas pelos vôos supersônicos que correm à frente do tempo cronológico. Entretanto, não pôde impedir que o Homem, na sua ganância em busca da supremacia do poder, usasse um invento tão maravilhoso como o avião só para fins pacíficos.

Maria da Glória de Melo Tavares de Lima – Professora de Redação e Língua Portuguesa, graduada em Letras, pós-graduada em Língua Portuguesa e professora da Escola Superior de Secretariado em Pernambuco – Esuspe. E-mail: glinfo@ig.com.br

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