Edição 42

Matérias Especiais

Uma conversa com…

Daniel Munduruku

entrevista

Construir Notícias – Como nasceu seu encantamento pela literatura?
Daniel Munduruku – Acho que nasceu antes mesmo de saber as letras ocidentais. Fui alfabetizado primeiro na leitura da natureza. Meus pais e avós me ensinaram a ler o vôo dos pássaros ou as pegadas dos animais para conhecer o meio em que vivia. Depois que fui para a cidade grande e comecei a estudar, sofri um impacto muito grande, pois a escola formal nos ensina a esquecer o que sabemos quando criança e a lembrar as coisas que adultos criaram. A escola nega o conhecimento cultural, popular, e nos obriga a aprender algo a que chama ciência. Essa tal ciência é muito chata para a criança, que tem que dar um salto muito grande entre o saber tradicional e o científi co. Imaginem isso na cabeça de uma criança indígena, então!

Por tudo isso, passei a procurar pegadas por todos os cantos da escola, e foi numa biblioteca que uma aranha me ensinou a gostar de ler. Todos os dias, ela fazia sua teia sobre o mesmo livro, e todos os dias eu ia lá e a destruía. Um dia, eu resolvi abrir o livro. Descobri o encanto da leitura!

CN – Como aconteceu sua inserção como autor de literatura infantil e juvenil?
DM – Antes de mais nada, sou um contador de histórias e foi contando histórias que aprendi a lecionar para meus alunos do Ensino Médio. Percebi que eles fi cavam fascinados com as histórias. Desenvolvi, então, um método de ensinar fi losofi a contando histórias tradicionais. Um dia, um dos alunos me desafi ou a escrever um livro em que eu contasse aquelas histórias. Assim o fi z. Mandei para várias editoras aquele primeiro original, e apenas uma — Companhia das Letrinhas — me deu alguma esperança. Depois de algum tempo trabalhando os originais, nasceu meu primeiro livro. Depois disso, não parei mais.

CN – Qual a sua opinião sobre a situação atual da Educação Escolar Indígena, modalidade de ensino prevista na LDB de 1996 e no Plano Nacional de Educação de 2001?
DM – Vejo que há um signifi cativo avanço. Os grupos indígenas com maior inserção na sociedade brasileira têm desenvolvido interessantes modelos escolares próprios que são reconhecidos pelo MEC. Há, no entanto, para muitos grupos, uma difi culdade peculiar por conta de muitas questões que ainda não conseguiram resolver ou por ainda estarem num momento anterior de contato. Acredito que, nos próximos anos, as coisas tendam a melhorar signifi cativamente. Não dá para fazer uma previsão muito segura, mas creio que há uma tendência positiva no horizonte.

entrevista01

CN – Qual a sua opinião sobre a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 13 de setembro de 2007?
DM – Essa declaração demorou mais de vinte anos para ser aprovada. Muitos indígenas brasileiros participaram criativamente em sua elaboração durante todo esse processo. É mais um documento que reconhece que os povos indígenas têm lugar garantido nesse nosso planeta. E não apenas para enfeitá-lo com suas cores e sua música, mas para mantê-lo vivo. O documento é uma profi ssão de fé nas culturas indígenas existentes em todo o planeta. Cabe aos países signatários — o Brasil o é — colocá-lo em prática. Vale a pena dizer que grande parte do que está dito na Declaração é, de uma forma ou de outra, contemplada em nossa Constituição, e isso é um motivo a mais para o Brasil ser vanguarda em sua prática.

CN – Diante dessa Declaração, acha que teremos uma nova lei para a inserção da história dos povos indígenas no currículo escolar, a exemplo do que aconteceu com a Lei nº 10.639/03, que foi substituída pela Lei nº 11.645/08 e passou a incluir o estudo da História e Cultura Afro-brasileira nos currículos escolares? E em relação às cotas previstas para as vagas no Ensino Superior, também será importante termos cotas para os povos indígenas? Por quê?
DM – Na verdade, a partir de 2009 as escolas já terão a obrigação de inserir no currículo o conteúdo sobre as culturas indígenas, pois já houve uma ampliação da referida lei. Caberá às escolas criar condições para que esse conteúdo seja passado aos educandos de forma criativa, não se permitindo mais tratar a temática indígena apenas como um evento do mês de abril. Isso será um passo importante para a aproximação entre as culturas. Sou favorável às cotas. O sistema de ensino brasileiro continua elitista. Os negros estão fora do processo político há muitos séculos. Os indígenas, desde sempre. Se continuar como está, esses dois grupos continuarão marginais e marcados pelo estereótipo e pelo preconceito. Acredito que o sistema de cotas quebra um pouco o monopólio dos ricos sobre o conhecimento e oferece a possibilidade de outros saberes fazerem parte do futuro do Brasil.

CN – Existe a possibilidade, no Brasil, de uma educação intercultural, ou seja, uma educação que faça as culturas interagirem, promovendo o acesso a bens de outras culturas sem negar a cultura de origem? Se sim, como isso pode acontecer?
DM – O Brasil é um país multicultural. Isso foi reconhecido pela Constituição de 1988. Mas isso acontece não por força da lei, e sim por conta do próprio processo histórico que ocorreu no País. Negar essa multiculturalidade é negar nossa miscigenação, as migrações e o próprio conflito multiétnico que sempre existiu e que tomou forma de estereótipos e preconceitos. Na prática, portanto, já há uma troca cultural signifi cativa em andamento. Cabe às escolas deixar isso mais claro para os educandos.

CN – Qual o caminho para a integração e o respeito entre as diferentes etnias e raças?
DM – Integrar é uma palavra perigosa se for usada ideologicamente. Isso porque seu signifi cado pode servir para que a cultura dominante seja considerada melhor que as outras, o que é um risco. O caminho é a educação. Acredito que, ao colocar em prática a lei que estabelece a inserção das histórias indígena e africana nos currículos, já serão dados passos importantes para que se tire a venda etnocêntrica que ainda impera no País. Mais uma vez, repito que a tarefa hercúlea de mudar esse cenário é da escola.

CN – Que mensagem deixaria aos educadores brasileiros diante de tantos desafi os a serem enfrentados com vistas à melhoria da qualidade de ensino?
Educadores devem ser pioneiros sempre. Têm de ser água corrente, ir para frente sempre; ser cristalinos, porque assim as crianças nunca irão se cansar de brincar em seu regato. Ao contrário, se o educador ficar parado, apodrece e fica triste. Todos fogem da água podre. É preciso, pois, ser muito criativo e corrente para poder matar a sede de saber que nossas crianças trazem.

entrevista02

 

cubos