Edição 41

Matérias Especiais

Uma reflexão sobre formação: paradigma para um mundo melhor

Sérgio Murilo Magalhães

Neste artigo, pretende-se mostrar que, apesar das escolas, na modernidade, terem rompido com o ideal de formação humanista e privilegiarem uma educação que formata o indivíduo, capacitando-o para o mercado profissional, atendendo às necessidades sociais do presente e a sua utilização imediata, é possível a implantação de um projeto de formação humana. Acredita-se que é urgente a necessidade de um redirecionamento das práticas educativas no sistema escolar, a fim de que se implante uma educação que contribua para a humanização de indivíduos desumanizados, inseridos numa sociedade altamente excludente, violenta e sem esperança. Uma educação utópica, em que os sonhos possam ser sonhados na esperança de idealização de um outro mundo, mesmo que este se insira dentro da realidade social vigente.

Palavras-chave: educação, formação humana, indústria cultural, paidéia.

Na contemporaneidade — devido ao fato de as sociedades não possuírem mais um Estado-nação como centro ou princípio único formador da cultura e devido à existência de uma indústria cultural1 massificando os indivíduos com toda uma diversidade de informações, de imagens, predominando o imediato e o atual, tornando tudo tão descartável — chega a ser inconcebível pensar na possibilidade de um educador pôr em prática um projeto de formação humana. Pois como têlo numa sociedade sem memória, em que as tradições estão em declínio?

Nessa perspectiva, o próprio educador perde o seu referencial simbólico, não se percebendo como sujeito responsável, que pode desenvolver tal processo de formação.

Na Antiguidade, o mestre, pela sua vivência e experiência, era o portador dos saberes, cabendo-lhe o papel de transmitir aos educandos o patrimônio cultural do mundo, acumulado por gerações. Por exemplo, na Grécia Antiga, a figura do pedagogo, aquele escravo responsável por cuidar da formação do infante — e esta se dava em todas as dimensões —, preparava o discípulo para o vir a ser. Assim, tinha-se um referencial simbólico imprescindível para a formação dos mais jovens.

Esses saberes transmitidos serviriam de interlocução entre as diferentes gerações, pois, ao repassarem os seus valores aos mais jovens, os velhos acreditavam que estes seriam fundamentais para a formação futura daqueles; ao mesmo tempo, estes, ao receberem os valores culturais, poderiam tê-los como referências simbólicas, ressignificando-os e imprimindo uma nova marca e um novo olhar.

Anthony Giddens apud Hall (2005) argumenta que:

Nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes (1990, p.37–38).

Diante disso, percebe-se que o cerne da questão do projeto de formação seria propiciar a possibilidade aos mais novos — e isso a partir de certos referenciais culturais — de refletirem sobre o mundo, sobre as coisas e sobre os fatos existentes nele, aprimorando o seu olhar de forma que pudessem intervir e atuar autonomamente nele.

Ter consciência da importância desse olhar permite ao sujeito que está sendo formado a possibilidade de perceber-se como um indivíduo humanizado, capaz de operar mudanças em si mesmo, reinterpretando a realidade de forma crítica e intervindo no meio social no qual está inserido.

No entanto, neste contexto de globalização e capitalismo no qual estamos inseridos, quando se pensa em formação, logo se imagina a qualificação profissional, ou seja, a preparação do indivíduo para o exercício de determinados papéis sociais. E, nessa perspectiva, acredita-se que a educação tenha uma função imprescindível no processo. Sendo assim, a escola seria o único local de aprendizado e preparação, onde seriam repassados os conhecimentos formais necessários para a formação dos sujeitos.

Diante disso, a educação apresenta-se como uma atividade intencional e reguladora, imbuída de um conjunto de técnicas e ferramentas metodológicas que serão utilizadas na formação do educando. E essa forma de idealização pelo sistema de ensino tem a ver com o tipo de sujeito que a sociedade deseja ter. Portanto, a educação na escola da modernidade é instrução.

Mas o termo formação, no sentido de desenvolvimento do sujeito, vai além de uma dimensão do humano, da cognição, e procura abranger esse indivíduo em todas as suas dimensões, vendo-o como um todo, e não como um ser fragmentado. Uma educação com concepção interdimensional — Paidéia2 — em que o ideal educacional abrangia todos os processos formativos que se davam na família, na sociedade e nas atividades culturais, e não apenas no espaço escolar, como se acredita na modernidade. Assim, todo o saber que se transferisse pela educação deveria circular através das trocas interpessoais. Uma educação voltada para a pólis.

E não seria esta uma das funções da educação? Formar cidadãos para intervirem de forma crítica e autônoma na sociedade em que estão inseridos? Acredita-se que sim.

A educação é uma condição sine qua non para que ocorra o processo de transformação das pessoas e da sociedade, a fim de que se chegue ao equilíbrio ideal para o pleno desenvolvimento de todos os indivíduos no mundo. Porém, quando se fala em educação, entenda-se que esta não ocorre apenas no espaço escolar.

Lamentavelmente, na educação contemporânea, a imagem do educador foi reduzida à de mero transmissor de um conjunto de técnicas de conhecimento, totalmente diferente do conceito que se tinha dele na Antiguidade.

Naquele contexto, o mestre, através dos saberes adquiridos e por suas experiências construídas ao longo de uma vida, responsabilizava-se pela transmissão aos educandos de toda uma gama de conhecimentos, valores e fatos históricos, que contribuiriam para o processo de formação do jovem.

No entanto, faz-se necessário afirmar que, na concepção humanista de formação, aprendia-se por aprender, com o objetivo único de pertencimento a uma comunidade e compartilhamento dos valores culturais deixados pelos antepassados. Tinha-se a consciência de que a educação era um bem em si e, conseqüentemente, condição sine qua non na formação dos indivíduos.

Nas escolas hodiernas, esse ideal de formação humanista foi rompido. O importante é o professor seguir à risca os programas curriculares e apresentar os conteúdos, respaldado no discurso oficial de um sistema que visa a atender às necessidades sociais do presente, aos apelos de conhecimentos específicos com o objetivo de utilização imediata.

Nesse contexto, o próprio educador não se reconhece como aquele que será o mediador entre o velho e o novo, aquele que contribuirá para a formação das gerações mais novas, compartilhando os valores culturais acumulados pelos antepassados, e que servirá como referencial simbólico, possibilitando aos jovens um reconhecimento de si mesmos nas referidas tradições. Ao mesmo tempo, os próprios jovens poderão imprimir ressignificações a esses valores, se assim o desejarem, dando um novo sentido ao seu mundo.

Diante disso, percebe-se a necessidade da escola como instituição reguladora. Ela e o próprio educadordevem restabelecer, em suas práticas pedagógicas, o ideal de formação humanista. Assim, o ato de educar terá a sua intencionalidade política e transformadora concretizada, pois trará em si um compartilhar de ideais e valores.

Esse compartilhamento permitiria a aquisição de referências simbólicas, que possibilitariam aos educandos ouvir as narrativas do educador e reconstruir a história, imprimindo-lhes um novo sentido.

Lefort (1999) afirma que a escola, quando se torna um lugar onde as experiências não são intercambiáveis, tende a apagar a figura do mestre, que perde a sua própria identidade e condiciona-se em seu próprio trabalho, quando este deveria ter um caráter formativo.

Nesse sentido, Barbier (2000) esclarece que:

O educador se descobre a si mesmo como um buscador incansável, como um barqueiro de sentido e como um mediador de significado, que percorre um caminho, em um processo permanente de começo e de fim; de estrutura e de desestruturação do mundo. Ao final dessa trajetória de autoconhecimento, ele se transforma e alcança um ponto tal de existência, em que transcende o desejo de formar e de formar-se para simplesmente estar, ao mesmo tempo, na presença de si mesmo, do outro e do mundo.

Compreende-se, assim, que formação é a tomada de consciência da consciência. Isso é autoformação. Dessa forma, o eu só existe quando o outro aparece. É na ordem do reconhecimento do outro que nos tornamos pessoa. Essas relações ocorrem através das interlocuções sociais.

Como já foi abordado anteriormente, a instituição escolar atual privilegia a transmissão de saberes — saberes técnicos que permitem aos indivíduos atuarem sobre e no mundo. Nessas instituições educacionais, pouco ou quase não se priorizam as outras dimensões do humano, como a solidariedade, as relações afetivas, o respeito ao outro, entre outras.

Essa é a paisagem cultural na qual estamos inseridos. Foi nesse modelo de educação que fomos formados e, por ele, somos condicionados. Diante disso, acredita-se ser necessário promover uma contra-educação. Uma educação que rompa com o que está determinado pelo contexto histórico.

Se a realidade nos apresenta os fatos dados e as possibilidades reais — como centenas de sujeitos vivendo em favelas que se espalham em nossas sociedades e que, certamente, nunca terão a oportunidade de inserir-se no meio social para exercer de forma autônoma e consciente a sua cidadania —, cabe a nós uma postura ética que preceda qualquer racionalidade, num desejo intenso de transformar o predeterminado, consistindo na superação das injustiças e da exclusão social.

Adorno apud Habermas (2003) afirma que, na contemporaneidade, o ideal de formação não é mais possível, entretanto, devemos lutar por ele. Seria mais fácil nos adaptarmos à realidade e não nos comprometermos afetivamente com nada.

Nessa perspectiva, até concorda-se ser mais fácil adaptar-se e, de repente, manter-se neutro e omisso. No entanto, citando Freire (1996, p. 77), quando afirma em seu livro Pedagogia do Encantamento:

Meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História, mas seu sujeito, igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar, mas para mudar.

Assim, acredita-se que o ideal de formação humana preconizado pelos humanistas de Florença3 deve ser implantado numa sociedade como a atual, repleta de violência, carente de afeto, de respeito e de dignidade.

Compreende-se a urgência de buscarmos uma prática pedagógica que não vise apenas ao educar como um processo de desenvolvimento, mas a uma formação que contribua para o seu dever, com os outros e com o mundo. Uma educação de utopias, em que os sonhos possam ser sonhados na esperança de idealização de um outro mundo, mesmo que este se insira dentro da realidade social vigente.
¹ Indústria cultural é o nome genérico que se dá ao conjunto de empresas e instituições cuja principal atividade é a produção de cultura, com fins lucrativos e mercantis. No sistema de produção cultural, encaixam-se a TV, o rádio, os jornais, as revistas e o entretenimento em geral, que são elaborados de forma a aumentar o consumo, modificar hábitos, educar, informar, podendo pretender ainda, em alguns casos, ter a capacidade de atingir a sociedade como um todo. A expressão indústria cultural foi utilizada pela primeira vez pelos teóricos da Escola de Frankfurt Theodor Adorno e Max Horkheimer no livro Dialektik der Aufkärung (Dialética do Esclarecimento, no Brasil, ou Dialética do Iluminismo, em Portugal). Nessa obra, Adorno e Horkheimer discorrem sobre a reificação da cultura por meio de processos industriais.
² Paidéia – Inicialmente, a palavra paidéia (de paidos – crianças) significava simplesmente criação de meninos. Mas esse significado inicial da palavra está muito longe do elevado sentido que, mais tarde, adquiriu. O termo também significa a própria cultura construída a partir da educação, que era o ideal no mundo, para si e para sua juventude. Uma vez que o governo próprio era muito valorizado pelos gregos, a Paidéia combinava ethos (hábitos) que os fizessem ser dignos e bons tanto como governados quanto governantes. O objetivo não era ensinar ofícios, mas, sim, treinar a liberdade e a nobreza. Paidéia também pode ser encarada como o legado deixado de uma geração para outra na sociedade. Um pedagogo — um escravo, na época — conduzia o jovem, com sua lanterna iluminadora, até os centros ou as assembléias, onde ocorriam as discussões que envolviam pensamentos críticos, criativos, resgates de cultura, valorização da experiência dos anciãos, etc. Supõe-se que, no processo sócio-histórico, esse mesmo pedagogo libertou-se, talvez de tanto dialogar nos acompanhamentos do jovem até as assembléias, tornando-se um personagem da paidéia e seu consumador. Mas, se, até então, o objetivo fundamental da educação era a formação aristocrática do homem individual como kalos agathos (Belo e Bom), a partir do século V a.C., exige-se algo mais da educação. Para além de formar o homem, a educação devia ainda formar o cidadão. A antiga educação, baseada na ginástica, na música e na gramática, deixa de ser suficiente. É então que o ideal educativo grego aparece como Paidéia, formação geral que tem por tarefa construir o homem como homem e como cidadão.

³ Humanistas de Florença – Termo difundido no século XV, indicava um conjunto de indivíduos que se esforçava (desde o século XIV) para modificar e renovar o padrão tradicional de estudos das universidades medievais, que eram dominadas pela cultura da Igreja e voltadas para as três carreiras tradicionais: Direito, Medicina e Teologia. Esse sistema tradicional transmitia uma concepção estática, hierárquica e dogmática da sociedade, preservando a ordem feudal. Com as drásticas transformações históricas que dissolveram as condições de existência do feudalismo, as novas circunstâncias impuseram aos homens a necessidade de alterar suas atitudes com relação a seu destino, à sociedade, à natureza e ao próprio campo do sagrado. Iniciou-se um movimento buscando a atualização dos estudos tradicionais, baseado no programa dos studia humanitatis, que incluíam Poesia, Filosofia, História, Matemática e Eloqüência (fusão entre a Retórica e a Filosofia). Os humanistas eram os homens empenhados nessa reforma educacional baseada nos estudos humanísticos. Esses estudos humanos eram indissociáveis do aprendizado e do domínio das línguas clássicas (latim e grego) e, mais tarde, do árabe, hebraico e aramaico. Centravam-se em textos de autores da Antiguidade Clássica, excluindo os textos medievais. Eram um desafio para a cultura dominante e uma busca de raízes para uma nova cultura.

Este artigo foi apresentado ao Núcleo de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, como um dos requisitos básicos para obtenção do conceito final da disciplina Teoria Social – Formação Humana na Contemporaneidade, sob a orientação do Professor Dr. Alexandre Simão Freitas.

Sérgio Murilo Magalhães é bacharel em Música pelo Seminário de Educação Cristã – SEC; graduado no curso de Licenciatura Plena em Pedagogia com Habilitação em Educação Infantil/Educação Especial/Ciclo das Séries Iniciais do Ensino Fundamental e Gestão Educacional pela Universidade Salgado de Oliveira – Universo; e aluno especial do Mestrado em Educação pela UFPE.
E-mail: magalhaes_pedagogo@hotmail.com

Referências Bibliográficas

BARBIER, René. El Formador de Adultos como Hombre por Venir. (Article publié dans “Memore du XXI e siècle” éditions du Rocher, Paris, décembre 2000. ‘L”homme à venir” (traduction: Professeur José Gonzalez Monteagudo, Université de Séville).)
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
JÚNIOR, João. Formação e Autoridade: a Educação Humanista. São Paulo: Discurso, 1999.
SACRISTÁN, José Gimeno. A Educação que Ainda É Possível: Ensaios sobre uma Cultura para a Educação. Porto Alegre: Artmed, 2007.
SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Teoria Educacional Crítica em Tempos Pós-modernos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
STUART, Hall. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

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